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3.2 Do Espaço Público Tradicional ao Espaço Público Digital: o que mudou?

Na secção anterior tivemos oportunidade de nos focar nas profundas mudanças sociais e políticas ocorridas, sobretudo no dealbar do último quartel do século XX e nas décadas subsequentes e suas respetivas implicações ao nível cultural e da perceção e vivência da própria atividade política. Foi dito, em breves parágrafos, que o modelo teórico proposto por Ronald Inglehart (1990;2005) tinha/tem pontos criticáveis, nomeadamente o acentuado evolucionismo, para além de colocar a tónica num certo pendor teológico. Muito embora estas criticas, a perspetiva do referido autor é meritória ao captar como poucos algo como o “zeitgeist”32 do momento.

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Quando falamos em mobilização política e também cívica, estamos a aludir à natureza das causas que de eminentemente coletivas, passaram a ter um forte pendor individualista. Esta mudança decorre fundamentalmente por termos assistido nesse período à decadência do domínio das grandes ideologias, consubstanciadas das duas visões capitalismo e comunismo. Ora, estas alterações de ordem eminentemente estrutural, têm a jusante um diversificado conjunto de implicações, não só nos valores, mas também nas formas e modos de vida. Esta questão, aparentemente pode parecer apenas um mero pormenor, porém a verdade é que a participação política e o próprio exercício cívico acompanham tendências sociais mais amplas, como é o caso da individualização, tal como é explicado por Ulrich Beck (2000).

A emergência do role de questões associadas aos designados valores pós-materialistas tem na sua génese e natureza na escolha pessoal, sendo uma alteração de fundo, que coloca em causa todo um complexo empreendimento social e cultural até ai vigente (Inglehart, 1990 e 2005). Deste modo, estamos perante um duplo processo social e histórico, que são no fundo a dupla face da mesma moeda. É neste contexto, que Miguel Cardina e José Soeiro (2013:37) associam a década de 1990 a um recrudescimento do ativismo politico e cívico, sobretudo em torno de questões, que a designada “nova esquerda” vinha já tratando a abarcar desde as décadas de 1960 e 1970. Como alegam supra mencionados autores

“A partir de meados da década de 1990, contudo, assistimos a uma transformação. O consenso em torno da globalização neoliberal e da ideia de que teríamos chegado ao “fim das ideologias” começou a ser posto em causa. Foi também nesse período que renasceu uma esquerda radical com expressão” (aspas do original).

Se é verdade, que foram as décadas de 1950 e 1960 que assistiram a profundas mudanças estruturais, a verdade é que este período teve o seu cobro logo com a crise do “choque petrolífero de 1973/1974, trazendo consigo as novas políticas neoliberais personificadas em Margaret Thatcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (EUA) sob a designação do “consenso de Washington”. Quando, se assistia ainda à queda do Muro de Berlim (1989) e a tudo o que representava, pensou-se que finalmente estava aberto o caminho para o “fim das ideologias”, todavia iniciou-se uma onde de contestação, à escala global sem precedentes. Esta onda de contestação apresenta grande diversidade de causas e objetivos: desde separatismo, até a movimentos alter-globalização e feministas, muitas e de largo espectro são as motivações, que levam cidadãos a mobilizarem-se por todo o mundo.

O que se pode verificar, não é mais do que uma clara reorientação por parte dos atores das suas motivações e causas, que os levam á mobilização. Nesta linha de pensamento, o que temos é no fundo, o recrudescer de forma e práticas de ação política e cívica que se

enquadram, muitas das vezes, naquilo a que designamos como formas alternativas de participação política e cívica. Esta é maioritariamente realizada em torno de questões específicas, como já anteriormente tínhamos mencionado. Facto este que também não passou despercebido a Noam Chomsky (2013:57) ao sublinhar que: “esses movimentos procuram sobretudo concretizar objetivos específicos”. Este autor continua e reafirma a importante “missão” que estes movimentos, como por exemplo os Occupy Wall Street, têm como exemplo para as outras organizações do mesmo género.

Ora, considerando o facto de que a mobilização tendencialmente se passa a fazer sobretudo em torno de causas muito concretas e até por vezes circunstanciais e particulares, não deixa de ser de todo relevante o papel que deverão ter os objetivos e a sua definição. Para Chomsky (2013), é esta uma das vertentes destes movimentos, que os fazem claramente distinguir da política convencional, ou seja é relevante que haja algum objetivo, por elementar e abstrato que seja, mas sobretudo que a definição deste seja tomada num amplo diálogo horizontal entre todos os atores que se queiram associar à iniciativa. No fundo, é primordial trazer os atores, novamente para a discussão política, ou nas palavras de Beck (2000) subpolítica. Ora, importa deste modo distinguir política da subpolítica, como o faz Beck (2000:22). A linha de argumentação do autor passa essencialmente por dois vetores: o vasto domínio da subpolítica é bem mais aberto e democrático, no que toca á presença de atores, que participam em nome individual, comparativamente á política convenciona; em segundo lugar, a subpolítica como espaço de discussão e de conflito social, constitui-se como uma arena onde “conflituam” não só agentes coletivos, mas também atores individuais, pelo poder configurador da política atual.

Se considerarmos a perspetiva de Inglehart (1990 e 2005), já anteriormente exposta, seria expetável que levasse à consolidação de um tipo de ativismo político e cívico que assenta-se fundamentalmente a sua ação sobre questões ditas pós-materialistas. Todavia, e para contrariar uma certa componente teleológica da proposta do referido autor, verificamos que há variadíssimos casos, em que os do Occupy Wall Street são os mais mediáticos, se mobilizam em torno de questões como a distribuição mais equilibrada da riqueza. Em atalho de foice, podemos também “suspeitar”, dado que esse é um dos objetivos da presente pesquisa, verificar que no caso português, as questões mobilizadoras gravitam em torno de questões materialistas: de distribuição da riqueza, defesa de direitos sociais, redução do rendimento do trabalho e pensões etc. Reforçamos, que esta alusão, tem um certo caráter especulativa apenas poderemos aceitar ou rejeitar esta possibilidade, aquando da análise empírica dos dados, realizada no 5º capítulo da presente pesquisa. Adicionalmente, assinale- se que mesmo o caso de Portugal, foi sempre ao longo dos vários trabalhos (1990 e 2005), sempre interpretado como um caso distinto, de grande parte dos congéneres europeus. A atual conjuntura económica de forte depressão tem levado para a rua vários movimentos, que de formal e/ou informal têm revelado alguma dinâmica nesta nova vaga participativa.

Estes movimentos, assentam a sua parca agenda programática em questões como a luta contra a política de austeridade, a defesa do Estado-Social, a precaridade laboral, bem como o galopante desemprego em todos os grupos etários, mas muito em especial nos jovens. Ora, em todas estas questões, podemos encontrar motivações que são eminentemente de natureza materialista, contrariando a proposta do referido autor e comprovando que o desenvolvimento dos valores que norteiam a política e a participação política, não tem um carater teleológico, são também suscetiveis a forças contextuais, como é o caso da profunda crise económica atual. Mais, o clímax em Portugal desta inversão de tendência, foi a manifestação de 15 de Setembro 2012, que teve como grande aglutinador a contestação a uma proposta do Governo, que consistia basicamente numa redução da Taxa Social Única (TSU) para os empregadores e uma proporcional subida para os trabalhadores. Esta medida foi percecionada como uma transferência direta do trabalho para o capital, no fundo a clivagem clássica da era da Modernidade.

Em geral, o que temos observado nas últimas décadas e muito particularmente nos últimos anos, tem sido o avolumar da distância percebida pelos cidadãos em relação às instituições e aos seus representantes. Numa sociedade portuguesa, pautada por esta disjunção, o papel dos media sobretudo pela forte mediatização do espaço público assume grande relevância, de variadas formas, mas desde logo pelo acesso a informação. É neste mesmo âmbito que John B. Thompson (2000) elabora uma pertinente categorização dos escândalos. O referido autor alega que:

“Financial scandals in the political field are based on allegations about the misuse of Money or other financial irregularities. They generally involve the disclosure of hidden linkages (or allegations about hidden linkages) between economic and political power, linkages which are regarded as improper and which, on being disclosed, precipitate the scandal. The activities which lie at the heart of financial- political scandals are likely to involve the infringement of rules governing the acquisition and allocution of economic resources” (2000: 159).

Thompson, coloca precisamente o dedo na ferida, ao aludir a relações de promiscuidade entre o poder político e a elite económica e financeira, que ao serem alvo de tratamento jornalístico, entram na circulação do espaço público – do debate político e público – numa fase da modernidade tardia em que aliadas ao poder do trabalho jornalístico, as novas tecnologias de comunicação e informação levam à disseminação rápida e extensiva da informação, tornando o escândalo financeiro e político como uma figura relevante do debate público contemporâneo. Contudo e reforçando um postulado basilar da presente pesquisa, a crónica crise da participação política. Como indica Luc Rouban (1994:293- 294) os fatores de crise da participação política são diversos, como a proliferação de assuntos técnicos e

tecnológicos no campo político, o ganho de preponderância da ação racional em detrimento da ação ideológica, para além da profusão de escândalos com atores políticos. Deste modo, fica “campo aberto” à emergência de uma opinião pública onde proliferam notícias sobre figuras públicas do campo político, relacionadas a escândalos, contribuindo de forma decisiva para o forte desgaste da imagem desta classe.

Ainda que de forma indireta, estamos perante um lado da utilização das tecnologias de informação, potencialmente pode contribuir para um maior e melhor esclarecimento da opinião pública. Todavia, num contexto recente de forte incremento técnico e tecnológico, onde as comunicações tendem a uma forte digitalização, levando autores como Anthony Giddens (1990/2005) a falar em compressão do espaço-tempo, em claro antagonismo com as sociedades pré-modernas. É com toda a clareza relevante reequacionar o papel das tecnologias no campo do espaço público e do(s) debate(s) aí realizados, ainda assim temos assistido à multiplicação de fontes de informação, que podem potenciar um espaço público em que o debate político, se possa processar de forma profícua. Neste contexto, as redes sociais, mormente o Facebook, com a sua “arquitetura de divulgação” tem permitido pelo menos a diversificação das fontes de informação, ainda que sabendo que isto não é sinónimo de riqueza do debate político, de forma linear. A justificar esta nossa enfase é de todo imune ao facto de um cada vez maior número de atores políticos e organizações deste domínio marcarem presença. A título meramente exemplificativo, vale a pena chamar a atenção para as mediáticas comunicações do atual Presidente da República, Cavaco Silva, que ao longo de um período de alguns meses remeteu-se ao silêncio por via dos mecanismos comunicacionais mais tradicionais. Durante este período apenas houve lugar a comunicações via Facebook, sendo estas por sua vez objeto de notícia nos meios de comunicação tradicionais (televisão, rádio e imprensa escrita), chegando mesmo ao ponto de existirem debates, compostos por painéis de comentadores desde jornalistas, peritos e políticos no ativo, a tentarem decifrar em forma de comentário, o que o Presidente havia dito no Facebook.

Desta forma e dada a forte degradação da imagem das instituições políticas e da crescente abstenção eleitoral, que em última análise poderá ser interpretada como um aviso de desagrado da relação entre representados e representantes, assume especial relevância teórica e empírica, para além de atualidade, o estudo e análise das redes sociais, concebidas como artefactos tecnológicos e o seu potencial, para a promoção do debate publico e político.

Chegados a este ponto da presente discussão pensamos estar em condições (teóricas) para elencar o problema teórico de investigação. Assim, dada a crónica crise da participação política e cívica num regime demoliberal, como é o caso de Portugal, em que a representação é a chave de toda a organização política, importa-nos entender e interpretar, de que modo o Facebook, pode-se constituir-se como uma forma de revigoramento da participação política e

cívica alternativa. Mais, esta investigação pretende seguir o rasto dos movimentos que têm estado no centro da organização das manifestações já identificadas no capítulo anterior. Para um melhor entendimento das idiossincrasias de uma putativa participação política e cívica alternativa, por via da utilização do Facebook, faremos nas subsecções subsequentes um breve períplo teórico e conceptual, que englobará o contributo de diversos autores.

3.3 - Transformações e Reconfigurações do Espaço Público

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