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2.2.2 O republicanismo e a sua conceção de autonomia: potencialidades e constrangimentos

A discussão em torno dos diferentes modelos de cidadania encerra grande poder gravitacional na presente pesquisa. Na pretérita secção tivemos oportunidade de traçar o percurso histórico do paradigma liberal, através da identificação e discussão de algumas das características basilares deste, bem como das limitações e criticas teóricas de que tem sido alvo. Um marco teórico importante no debate sobre cidadania e participação política é o conceito de autonomia, de que gozamos enquanto atores numa dada sociedade ou comunidade. Oldfield levanta deste modo a intrincada importância que existe num processo cívico e político como é a cidadania, relativamente à autonomia dos atores. Implicitamente o referido autor está a aludir às competências racionalizadoras do individuo como ator social, na implementação e execução de planos e estratégias, que concretizem interesses pessoais. Ora, esta premissa assume-se como nevrálgica no debate teórico e académico.

“The concept of “action‘ is a starting point here – action as distinct from “behaviour”, draws attention to reasons, to motive, purpose and will. It thus refers to two further, closely – related concepts: self- determined is to say that they are product of his or her will. Following Rousseau and Kant this means that the self’s will is not subject to, or constrained by, that of another. To say that a person’s actions are authentic is to say not only that the will which wills them belongs to the self, and not to somebody else, but that it belong to the self in some special way because the self has chosen it, or has at least rationally assented to it. The autonomous individual’s actions, therefore – to the extent that they are self-determined – are expressions of that individual’s authentic self. All this, however, is to leg a large number of questions” (1990: 17 e 18).

A autonomia, constitui-se como um ponto incontornável, sobretudo se considerarmos a participação política e cidadã como um procedimento político e relacional, sendo que a ausência desta ou de forma mitigada impossibilita a participação. Afirmamos ser um processo intrinsecamente político, em face do objetivo de um qualquer debate, isto é, qualquer assunto ou problema que seja debatido deveria levar a uma deliberação sobre esse tema. No fundo, o que pretende não é mais do que influenciar a governação. Por outro lado, o forte caráter relacional, refletido na necessidade de ser um ato intrinsecamente interativo e dinâmico, como é o caso da participação e da cidadania.

Precisamente, tendo em consideração estes dois aspetos inerentes à participação política e cidadã, Dominique Memmi (1985:331), num importante texto de síntese teórica, identifica quatro importantes dimensões da participação política de caráter intrinsecamente empírica para o estudo deste fenómeno sociológico. Estes passam sobretudo por:

1. - Haver indivíduos; 2. - Vontade de participar; 3. - Atividade;

4. - Que é por sua vez orientada para um objetivo.

Como já tínhamos salientado anteriormente, ainda no 1º capítulo a participação política e adjacentemente a necessidade deliberativa, requer a mobilização de competências relacionais, cognitivas e racionais.

Este não é um ponto somenos, mas um nevrálgico vértice, em que convergem múltiplos fatores socioculturais, mas também psicológicos de índole marcadamente individual. Ora, estas condicionantes ainda que circunstanciais e por isso mutáveis no tempo e no espaço, assumem grande relevância no estudo da participação política e cívica. As implicações são muito e diversificadas, para além de vastamente complexas, há que considerar a distribuição de recursos, quer sejam eles materiais ou intangíveis, como são, neste último caso, os já mencionados casos das competências interpessoais e relacionais, como por exemplo a capacidade discursiva e retórica.23

De facto, torna-se incontornável continuar a problematização teórica do conceito de autonomia, dado ser este, que nos pode ajudar a “montar” a equação que nos permitirá estudar a participação política alternativa. O que sobressai do percurso teórico empreendido na secção anterior são as sérias limitações teóricas e empíricas, nomeadamente na conceção da autonomia, representando deste modo, lacunas onde o paradigma republicano e as suas versões mais recentes apresentam contribuições relevantes.

Neste sentido, tendo como fundações epistemológicas e teóricas o legado do pensamento clássico grego, nomeadamente o aristotélico, o paradigma republicano assenta na ideia fundamental de comunidade política e de que a participação nas decisões públicas e políticas, não é mais do que uma necessidade de realização pessoal, com positivas implicações no plano societal e comunitário. O paradigma (neo)repúblicano apresenta-se como uma rutura, relativamente aos ditames do congénere liberal, no que concerne à relação e à tipologia dominante de relacionamento entre representantes e representados.

Se para os liberais há uma clara distinção entre representantes e representados, numa clara assunção da visão elitista e da vida política em geral e em particular da participação política, já para os republicanos todo este processo adquire contornos distintos. A cidadania, neste último quadro teórico, é encarada como um processo que carece de confiança entre os

23 Esta importante questão, a da possibilidade de participação política e dos possíveis obstáculos

práticos, remete-nos para uma profunda e importante discussão acerca dos níveis de participação e a distinção que pode acontecer entre atores e que se fará na próxima secção.

diferentes intervenientes, acentuando a importância do relacionamento e interação entre atores como pontos de vista distintos e que tentam deliberar acerca os mesmos assuntos. É nesta linha de raciocínio que Simões citando Barber (1984) refere que “(…) a cidadania é uma relação entre estranhos que se transformam em vizinhos; os indivíduos envolvem-se uns com os outros devido ao seu envolvimento comum na política, por estarem ligados por laços de atividades comuns e porque partilham decisões de um futuro comum” (Barber, 1984: 223 in 2005:79). Nesta mesma linha de raciocínio David Held coloca no centro da condição humana a atividade política e pública e a importância da autonomia em todo este processo, nos seguintes termos: “The principle of autonomy preserves “the ideal of the active citizen”; it require that people be recognized as having the right and opportunity to act in public life” (1987/2006:281 aspas do original).

Num esforço de aproximação à realidade portuguesa são diversos os estudos, que confirmam o profundo défice de participação cidadã no espaço público. Um indicador importante que é normalmente mobilizado para esta discussão consiste no capital social. De forma sucinta e de acordo com Kenneth Newton (2004:61) “a teoria do capital social defende que os níveis decrescentes de confiança social e a deterioração da vida social e comunitária são causas fulcrais de problemas democráticos na sociedade ocidental. [Continuando] Quanto menos os cidadãos confiarem nos seus líderes políticos e nas instituições governamentais, menos eficientes se tornará o governo e maior será a probabilidade de os cidadãos verem pouca credibilidade no seu sistema político”.

Aplicando esta teoria e a correspondente operacionalização, o mencionado autor sublinha a importância de várias variáveis no condicionamento ou potenciamento da confiança intersubjetiva. Deste role destacam-se as já mencionadas religiões, em que as sociedades maioritariamente protestantes aparecem em melhor posição, comparativamente às congéneres católicas. Mais, relaciona os baixos índices de confiança a processos “inacabados” ou incompletos de modernização do Estado e da sociedade, tal como é o caso de Portugal e ainda a ausência ou mitigação do papel moralizador do Estado, sendo que estas últimas duas idiossincrasias foram objeto de aprofundamento e problematização teórica no 1º capítulo.24

Esta premissa impele-nos a considerar a possibilidade de que todas as relações sociais engendram de forma explícita ou implícita formas de exercício de poder. A dominação é assim encarada, como mais uma dimensão, ainda que genérica e que carece de aprofundamento e operacionalização na teoria republicana. Esta é com toda a certeza uma marca indelével da importante herança do pensamento clássico grego. No que toca as sociedades contemporâneas, o estabelecimento de relações de dominação pode ser encarado desde logo pela sua enorme complexidade. Se procurarmos realizar um pequeno esforço de

24 Não sendo objetivo desta pesquisa, esta problematização dá-se por encerrada com este tratamento.

Serviu sobretudo para caraterizar o contexto português no capítulo do capital social e a importância que este tem para a participação política.

operacionalização deparamo-nos com um vasto e diversificado “leque” de variáveis, realmente importantes nesta dimensão.

A operacionalização terá necessariamente em consideração a existência de profundas desigualdades, quer na distribuição de recurso simbólicos, quer mesmo materiais. O próprio conceito de autonomia no âmbito do paradigma (neo)republicano terá implicações nessa mesma análise, por via do uso de conceito de “habitus” dando desta forma guarida a constrangimentos de natureza estrutural, mas também individual.25 Assim, andaremos na

linha entre duas importantes dimensões, no estudo da participação política, em que esta será uma permanente negociação entre as estruturais sociais e o “habitus” dos atores.

Para os teóricos do paradigma republicano a discussão pública dos assuntos que detêm interesse coletivo tem grande relevo, tal como já anteriormente pudemos expor. Ora, se a discussão e o debate têm relevância, também nos interessa analisar do ponto de vista daquilo a que chamaremos, no âmbito da presente pesquisa, a lógica comunicacional, como é concebida a comunicação e interação entre governantes e governados. Manuel Castells (2009/2009) no seu recente trabalho advoga que o estabelecimento de uma rede de comunicação à escala global, tem contribuído para que os cidadãos se possam fazer ouvir: “Al mismo tiempo, sin embargo, actores sociales y ciudadanos de todo el mundo están usando esta nueva capacidad de las redes de comunicación para hacer avanzar sus proyectos, defender sus intereses y reafirmar sus valores” (2009:91). Não obstante, estarmos perante um autor, com uma perspetiva algo otimista que vê na tecnologia e na sociedade em rede a solução da crise da participação, não deixa de ser verdade, mesmo que parcialmente, estas novas possibilidades comunicacionais, com potencial para fazer proliferar a comunicação horizontal e bidirecional, resta saber que papel, terão estas tecnologias em simbiose com as formas de participação política alternativa, pré-existentes a esta vaga tecnológica. Relembre- se que no paradigma liberal é dada primazia a um tipo de comunicação hierarquizada, assente numa visão elitista da participação política dos cidadãos. O seu congénere republicano apresenta-se neste domínio como uma importante rutura. Esta rutura passa sobretudo por perspetivar a participação dos cidadãos no espaço e debate público como uma necessidade no fundo imperativo da própria condição humana, que contribuiu deste modo de forma decisiva para o bem-estar e autorrealização dos diversos atores de uma coletividade. Esta visão contrasta literalmente com o que é alegado pelo paradigma liberal, nomeadamente com as visões de Schumpeter (1981) e Hayek (2009) abordadas na secção anterior. Este confronto teórico assume substancialmente relevância, dadas as implicações empíricas. Nesta linha de pensamento, Benjamin Barber (1984: 214) relaciona a efervescência da vida política e cívica, à criação de pontos de tensão nos regimes demoliberais, como é o caso português: “this association has created tensions within liberal democracy that because they are rooted

in conflicting notions of the human essence, cannot easily be resolved by politics” (1984: 214).

O autor referido de uma forma simples identifica um ponto muito pertinente no estudo da participação política alternativa, uma vez que responde à necessidade (levantada no 1º capítulo), do estudo de novas e reconfiguradas formas de participação política na vida coletiva e no espaço. Perante a profunda crise política e mormente da participação política e cívica, que já se arrasta à 20/30 anos nas sociedades ocidentais, torna-se imperativo o estudo desta e a forma como os atores se apropriam de toda a panóplia tecnológica, como é o caso das redes sociais, no debate e sobretudo na articulação dos diferentes interesses. Recorrendo à terminologia de Benjamin Barber (1984), o regime demoliberal português está atualmente sujeito a grande pressão. Esta tensão política está desde há 2/3 anos exacerbada pela profunda crise económica e financeira, consumada no pedido de ajuda à “troika”, tal como explicado ainda no 1º capítulo e que levou mesmo António Casimiro Ferreira (2012) a conceber o conceito de “Sociedade da Austeridade”, na qual a generalidade das instituições políticas do regime, vêem-se a sua imagem, junto da opinião pública, sujeita a forte erosão. Queremos no entanto afastar qualquer determinismo no qual se possa inscrever a crise da participação cívica e política acoplada à atual crise económica e financeira. A premissa aqui defendida, assenta fundamentalmente no perspetivar desta deterioração do regime demoliberal vigente, como um processo histórico de longo curso, que se torna mais visível em plena crise. No fundo o que queremos aferir, é o papel dos novos mídia, nomeadamente do Facebook no que concerne á mobilização e participação, neste crescente contexto de “crispação”. Esta influência decorre por um lado, pela maior visibilidade das medidas governamentais, levando a uma maior sensibilização dos atores para os problemas e desafios que se põem a Portugal. Por outro lado, a crescente digitalização das comunicações e interações sociais, poderão ter um papel transformador da distância entre governantes e governados, nomeadamente na comunicação estabelecida, entre estes. Esta acontece sobretudo por via da instalação de uma tipologia de comunicações de caráter essencialmente horizontal entre o cidadão comum e um determinado ator, que por via de ocupar um lugar político, tem a correspondente notoriedade pública, em contexto digital levando à rutura dos cânones tradicionais de relacionamento e interação.

Neste âmbito, importa sublinhar os mais recentes contributos no panorama (neo)republicano, em que é postulada a necessidade de os atores participarem no debate público. Filipe Carreira da Silva (2002:69) recorrendo a N. Frazer (1992) identifica três premissas, contudo que fazem do espaço público um domínio potenciador de desigualdades sociais entre atores:

1. - Não é possível isolar a arena política das restantes;

3. - Os grupos dominados saem a perder, quando existe apenas uma esfera pública.

Estes três postulados, tornam-se relevantes na presente pesquisa, dado o facto de conceberemos o Facebook e os grupos que pretendemos designar como unidades de análise, como sendo forte pertence ao espaço público.26 A opção pelo conceito de “espaço público”,

assenta no facto de pretendermos estudar a participação política no Facebook constituindo-se esta rede social como um mediador, no fundo um vértice para onde convergem os mais diversos fluxos comunicacionais e informativos, de forma a promover o debate sobre questões de índole público.

Deste modo, somos obrigados a convocar a teoria deliberativa e os seus mais recentes desenvolvimentos, por via de um trabalho mais recente de Filipe Carreira da Silva (2010:17), que sintetiza este quadro teórico nos seguintes termos: “Ora, a noção de democracia deliberativa assenta, pelo contrário numa concepção comunicativa da racionalidade e a acção humanas em que liguem, cognição e cooperação social constituem condições necessárias para o desenvolvimento humano, individual e colectivo”.

O referido autor, continua e enfatiza que é a partir da perspetiva deliberativa, que a própria democracia pode readquirir legitimidade perante os seus cidadãos, também tendo a capacidade de alterar as preferências individuais, tendo como referência o bem comum. Finalmente “(…) a deliberação pressupõe um papel directo dos indivíduos afectados pelas decisões no processo de tomada dos mesmos, processo esse que é de natureza linguística e cognitiva” (2010:17). Carreira da Silva, acaba por levantar um ponto muito importante e em que podemos distinguir o paradigma liberal do (neo)republicano e deliberativo. Este aspeto assenta na existência e posse de competências necessárias para a participação política, como são os recursos retóricos, educacionais e cognitivos, sendo que o paradigma liberal secundariza estes aspetos, comparativamente às propostas (neo)republicana e deliberativa. Decorrente desta complexidade na análise da participação política e cívica resulta a necessidade do estudo dos diferentes níveis de exigência de competências na realização do debate público e coletivo. Quando falamos de competências, estamos como é óbvio a aludir à existência de recursos, sejam eles materiais ou simbólicos, por isso também é legítimo falar de inclusão e exclusão.

26 Na atual pesquisa optámos pelo termo “espaço público” em detrimento de “esfera pública”, seguindo

na distinção teórica realizada por Filipe Carreira da Silva. Para este autor “esfera pública” designa “(…) o ideal normativo de uma discussão racional, dialógica e face-a-face (…)” (2001:135). Já por espaço público sublinha as palavras de Dominique Wolton (1995:167), para o qual “(…) o espaço público contemporâneo pode ser designado por “espaço público mediatizado”, no sentido em que é funcional e

normativamente indissociável do papel dos media” (cit in Silva, 2001: 135 e 136 itálico e aspas do

2.3 - Entre a Autonomia e os Constrangimentos: a participação política

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