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3.4 Participação política digital: reconfiguração ou flexibilidade identitária?

O forte impulso à globalização, dado pela digitalização das comunicações, implicou uma forte compressão do tempo e do espaço, bem como a intensificação das trocas simbólicas entre diferentes registos culturais. Este parece ser também o ponto de vista defendido por David Lyon, ao afirmar que “a conjugação da informática com as telecomunicações prenuncia o início de uma nova época” (1988/1992:1).

Dizemos assertiva, no sentido de que de facto os últimos 20 anos têm sido pródigos em inovação tecnológica. Muitos destes artefactos, vêm sem dúvida alterar comportamentos e atitudes perante determinadas situações, como as conceções de público e privado. Todavia, estas mudanças, se é que se podem apelidar como tal, têm tido um impacto relativamente controlado e progressivo na ação quotidiana. Este condicionalismo prende-se evidentemente pela própria capacidade que cada ator tem em assimilar toda a informação que lhe é disponibilizado na www, e com isso desencadear um processo de autorreflexividade.

É neste espirito que surge no meio académico um intenso debate em torno do “poder“ das tecnologias e da sua importância na ação social Dois dos lados contendores, de acordo com

Maria João Simões (2005) sustentam perspetivas antagónicas acerca da tecnologia e do papel desta nas sociedades e atividade social. No centro deste intenso debate está a dialética entre ação social e tenologia.

Num profícuo exercício de construção de um estado da arte a referida autora elenca as várias perspetivas teóricas, que se debruçam sobre o fenómeno tecnológico e o seu papel na sociedade com efeito, num extremo podemos encontrar aquilo a que designaremos por determinismo tecnológico e segundo os quais, as TIC viriam revolucionar os mais diversos domínios da atividade social, incluindo para o que interessa na presente pesquisa também a prática política seria determinada por esta vaga tecnológica. Então, em que sentido seria essa influencia da tecnologia sobre o domínio político?

De forma sucinta, diríamos que a introdução de tecnologias na ação política e nomeadamente no que toca à promoção da participação política, pode potencialmente ter um papel transformador. Deste modo, as tecnologias e os artefactos que lhe dão corpo, seriam concebidos como um ponto de rutura, relativamente ao forte desinvestimento na vida pública e política, por parte do cidadão comum. O substrato teórico e epistemológico deste paradigma passa por percecionar a tecnologia como estando a montante e à priori da ação humana.

Por outro lado, temos um quadro teórico que inverte a relação de forças, anteriormente apresentada – determinismo social estruturalista.33 Para os teóricos aqui situados, as

estruturas sociais, como a cultura teriam um papel de determinação sobre a conceção da própria tecnologia, bem como do próprio uso que lhe seria dado. De acordo ainda com a mesma autora Simões (2005:18) os dois paradigmas beligerantes, apenas convergem num aspeto – que a tecnologia tem implicações (sejam elas positivas ou negativas depende da perspetiva teórica) na participação política. É precisamente este, o ponto de partida para um esforço teórico de síntese, no qual se negoceia um difícil equilíbrio entre estruturas sociais e tecnologia.

Neste sentido, importa equacionar a tecnologia como mais um elemento da ação social, em pé de igualdade com valores e normas sociais vigentes numa determinada sociedade. Uma interessante proposta teórica de síntese surge com Tom Burns e Helena Flam (1987/2000:279- 309) para os quais a negociação, far-se-á entre os sistemas de regras sociais e a agência do ator.

No fundo, tal como David Lyon (1992:5) constata, o que temos assistido, incluindo na esfera do exercício do poder é a uma crescente mediação das interações sociais, por parte das mais diferentes tecnologias. Existe desta forma espaço para questionar, até que ponto podemos falar de uma democracia digital?

33 Para uma análise mais exaustiva acerca destes dois paradigmas, vale a pena uma incursão pelo estado

Em resposta a esta questão Kenneth L. Hacker e Jan Van Dijk definem democracia digital como: “(…) as a collection of attempts to practice democracy without the limits of time, space and other physical conditions, using ICI or (MT instead, as an addition, not a replacement for traditional “analogue” political practices” (2000:1aspas do original). Esta compressão do tempo e do espaço, que alias já fizemos referência neste mesmo capítulo, apresenta-se como uma forte rutura, relativamente ao padrão dominante dado facultar o acesso a um maior número e mais flexível tipologia, criando desta forma um potencial campo de novas e reconfiguradas formas de participação política. Neste role, devemos desde logo, incluir o já quase “clássicos” “blogs”, mas muito em particular as emergentes redes sociais, onde é claro o Facebook e o Twitter se destacam. Estas últimas, apresentam um potencial que passa sobretudo pelo estabelecimento de um tipo de comunicação de um para muitos e, bem como assentar numa comunicação horizontal. Premissa que grosso modo, também é corroborada por Greg Goldberg (2010:744) ao alegar “I will argue that regardless of its content, the inherently economic quality of internet participation contributes to the production of a different and under-examined mode of power than is presumed in scholarship of the public/virtual sphere”.

Estamos desta forma, no patamar de discussão em que concordando com a ideia que não estamos perante uma revolução, entendida enquanto rutura com o legado até aqui vigente, isto é no caso particular da participação política, temos o potencial suficiente para observar mudanças substanciais no campo político. Esta é aliás uma posição perfilhada pelo paradigma liberal, que defende a função informativa. Tal como defende Lincoln Dahlberg:

“Liberal-individualist digital democracy understands digital media as offering a means for the effective transmission of information and viewpoints between individuals and representative decision-making processes (for example, Gore, 1994, in relation to the early internet, and Chadwick, 2009, in relation to digital social networking developments). Digital media are understood here as enabling individuals to gain the information they need to examine competing political positions and problems, and as providing them with the means for the registration, and subsequent aggregation (as ‘public opinion’), of their choices (through e-voting, web feedback systems, petitions, e-mail, online polls, etc.)” (2011:358 aspas do original).

Mais uma vez, a perspetiva liberal, enfatiza o postulado do acesso à informação, numa perspetiva de permitir um melhor conhecimento para a participação no debate público, por parte do cidadão num regime eminentemente representativo. Está também subjacente, neste quadro, a existência de fluxos de informação top-down, no fundo uma visão elitista da gestão da participação política. Já para os teóricos republicanos e deliberativos, de acordo com Dahlberg (2010:859), os novos media e a emergência de uma espécie de espaço público

digital, podem ser um bom auxiliar na construção de um debate público, que se faça pelos ditames da discussão racional. Uma terceira posição teórica acerca da possível emergência de um espaço público digital, bem como o próprio uso das TIC na participação política, vem da corrente marxista contemporânea que advoga:

“(…) autonomist Marxist, position sees digital communication networks as enabling a radically democratic politics in the sense of self-organized and inclusive participation in common productive activities that bypass centralized state and capitalist systems, which are understood to be necessarily anti-democratic. Digital networking is thus posited as the basis for producing an independent, fully democratic ‘commons’” (2010:863 aspas e itálico do original).

Como é apanágio, no paradigma marxista, vemos uma constante critica ao capitalismo. Desta, a democracia digital é concebida como uma nova possibilidade de intensificar os regimes democráticos, fazendo a crítica ao sistema capitalista dominante. Finalmente, urge o mais relevante quadro teórico – counter-publics – que emana da maior complexidade da sociedade contemporânea e da exclusão de largas franjas da população, com interesses particulares. Fazendo a apologia da existência de várias esferas públicas digitais pretendem colocar na discussão temas como o feminismo. Com efeito, é um tipo de participação política que tem objetivos bem precisos. Nas palavras de Dahlberg este quadro teórico consiste em dois grandes eixos:

“(…) first, any social formation necessarily involves inclusion/exclusion relations and associated discursive contestation, where discourse is understood as a contingent and partial fixation of meaning that constitutes and organizes social relations (including identities, objects, and practices); and second, that this antagonistic situation is the basis for the formation of vibrant ‘counter-publics’: critical- reflexive spaces of communicative interaction (a first meaning of ‘publics’ here) where alternative identities and counter-discourses are developed and subsequently can come to ‘publicly’ (second meaning) contest dominant discourses that frame hegemonic practices and meanings, including the boundaries of what is considered legitimate public sphere communication.” (2010:861 aspas do original).

Desta forma, este paradigma apresenta virtudes relevantes para o estudo da participação política alternativa no Facebook, dado que nesta plataforma é possível haver grupos e páginas que reúnem atores, com objetivos e motivações políticas e ideológicas parcelares e setoriais. É neste contexto que se assiste à emergência de inúmeras “comunidades virtuais” que de acordo com Manuel Castells “(…) chamava a atenção para o surgimento de novos suportes

tecnológicos para a sociabilidade, que eram diferentes, mas não por si inferiores, às formas anteriores de interação social” (2004:155), dando assim as condições para a emergência do individualismo em rede.

Colocando a questão num mero plano prático podermos pressupor que mediante a emergência de uma democracia digital, o ator social poderá em diferentes ocasiões em distintos contextos participar politicamente, no debate público, fazendo uso de díspares recursos, sejam eles de caráter cognitivo, simbólico e material.

Estes factos levantados como meras possibilidades, têm a relevância de nos chamar a atenção para um importante aspeto – o da identidade. Desde logo é facilmente constatável, que as TIC permitem uma grande flexibilidade identitária.

O que queremos sublinhar, quando falamos em flexibilidade identitária é a possibilidade dos atores poderem selecionar os vários elementos que compõem a sua identidade virtual, numa espécie de “bricolage” identitário (Beck, 2000). Entre a enorme margem de escolhas, o ator pode inclusive optar pelo anonimato. Embora esta opção levante um enorme conjunto de questões, entre as quais éticas e de acesso a determinados espaços de debate, vedados a este estatuto. É neste ponto, que os deterministas tecnológicos defendem que através deste recurso, mitigar-se-iam as assimetrias de recursos (2º capítulo) entre os diferentes atores que se predispõem a participar política e civicamente.

Como refere Maria João Simões (2005: 112) recorrendo a Jordan (1999:67-78) são vários os fatores que levam o ator a negociar a flexibilidade da sua identidade virtual.

1. - um conjunto de indicadores que facultam a possibilidade de recriar identidades;

2. - relação flexível entre identidade real e virtual.

Na dimensão virtual/digital ao ator levantam-se-lhe complexos desafios de gestão de informação, nomeadamente de atributos da dimensão real, que poderão ou não ser projetados na dimensão virtual, para além de poderem ainda ser parcialmente filtrados. Sendo um processo continuo e de negociação permanente, o ator deverá aplicando a sua própria reflexividade reconfigurar o seu “eu” digital. É precisamente isto quer é advogado por Manuel Castells, num trabalho seminal sobre a sociedade em rede, ao definir identidade como “(…) o processo pelo qual um actor social se reconhece a si próprio e constrói significado, sobre tudo, através de um dado atributo cultural ou conjunto de atributos culturais determinados, a ponto de excluir uma referência mais ampla a outras estruturas sociais” (1996/2007:26).

Também esta negociação, quer numa primeira fase em contexto real, quer posteriormente em contexto digital é uma negociação permanente entre tensões, que o ator deverá gerir, de forma a sentir-se confortável no uso e exercício de direitos cívicos e políticos, como é a participação política em contexto digital, mas propriamente no Facebook.

Num plano meramente político e cívico, o Facebook pode de facto, desempenhar um papel importante, mas está longe de ser a revolução tecnológica prometida, e que fez muitos sonhar, com um mundo cheio de atores interessados e predispostos a participar politicamente. Se pode, por um lado mobilizar e facultar maior e mais fácil acesso a uma ampla audiência, também é sinónimo, por si só, que esse fluxo informacional tenha repercussões ao nível da participação. Desafios similares se colocam aos cidadãos, que tendo acesso a um maior e inusitado manancial de informação, em si, pode não ser o fator desencadeador para a tão desejada participação política, embora o acesso a informação seja relativamente relevante, num ato cívico e político, como é o participar no espaço público digital.

4º Capítulo

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