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Professor da Escola Politécnica da USP e sócio-fundador da Sciere. Fundador da Scopus (1975), da Spectrum Engenharia (1979), da Ada Byron Informática (1992) e da Sciere (2007). Foi presidente da Abicomp e diretor executivo do banco ABN AMRO Real (1996 a 2005). Co-autor de dois livros sobre o setor de informática no Brasil e autor do livro El Reto Informatico Y Sus Implicaciones sobre America Latina. Pai da Gabriella, Felipe e Maria.

S

ou professor na Escola Politécnica da USP há quase quatro décadas, ini-

cialmente na Engenharia Eletrônica e agora na Engenharia da Computa- ção. Comecei como professor em 1971, exatamente no início do projeto Patinho Feio, primeiro computador digital programável desenvolvido no Brasil. O projeto foi feito por uma equipe de professores da escola, sob a orientação do professor Glen Langdon Jr., um pesquisador da IBM que tinha sido trazido para o Brasil para trabalhar nisso.

Com o término do Patinho Feio, fui para um programa de doutoramento na Universidade de Stanford e, depois, quando voltei ao Brasil, fui atuar no projeto do G10, o projeto contratado pela Marinha brasileira à equipe do Laboratório de Sistemas Digitais da Poli, no qual eu estava envolvido. Participei da fase inal desse projeto e, quando terminou, eu e mais dois amigos – Josef Manasterski e Célio Ikeda – fundamos uma indústria de equipamentos eletrônicos digitais, a Scopus.

Começamos fabricando equipamentos eletrônicos para os mais diversos ins. Nessa época (por volta de 1976), existia uma política que estimulava a substi- tuição da importação por produtos fabricados no Brasil. As empresas nacionais tinham a possibilidade de abrir novas brechas de mercado graças a essa política industrial. Num país ainda imaturo nos seus ramos industriais e tecnológicos, a política industrial é a única coisa que existe para fazer com que nasça e loresça o conhecimento e a especialização técnica. Sem estímulos e proteções desse tipo é muito difícil nascer uma nova indústria, como a nossa história mostrou.

Simultaneamente, dois eventos aconteceram que redeiniram a história da Scopus. Um deles foi em Stanford, onde fui aluno e trabalhei junto com o pro-

107 fessor Vincent (Vinton) Cerf no projeto da rede Arpa (a internet em seu nas-

cedouro). Fiz parte de uma equipe que desenvolvia os “front end processors” de Stanford – os FEPs eram os bisavós dos roteadores hoje comuns na internet. Fui muito próximo do professor Cerf e, em 1976, ele decidiu vir ao Brasil para apresentar a rede Arpa num evento da Sucesu, no Anhembi, em São Paulo. Para se interligar à rede Arpa, era necessário fazer uma conexão por um terminal especial, via modem, diretamente na universidade da Califórnia (UCLA), e de lá conectar-se à rede, que naquela época estava restrita aos centros de pesquisa. O professor Cerf veio para essa demonstração. Na época, era uma grande inovação conectar computadores a distâncias como essas e, para complicar ainda mais, não existia, no Brasil, o equipamento adequado. Precisava de um terminal de vídeo com o protocolo adequado para se conectar à rede Arpa e sua importação seria muito demorada, principalmente por causa da lei do similar nacional, que exigia um controle muito rígido com consultas à associação das empresas e às próprias empresas nacionais. Tínhamos apenas dois meses e diicilmente se conseguiria a aprovação para trazer esses equipamentos do exterior. Então, como o professor Cerf me conhecia, ligou para mim. Combinamos que a Scopus desenvolveria e construiria o equipamento que ele precisava. E foi o que izemos.

Acredito que a Scopus nasceu nessa hora, através da conexão à bisavó da internet, como uma empresa de equipamentos eletrônicos digitais. Começamos com terminal de vídeo. Tivemos, evidentemente, muito apoio de políticas, de autoridades e de pessoas. Por exemplo, o primeiro projeto contratado com a Scopus foi pelo Ricardo Saur. Ele precisava fazer as escolhas dos periféricos para o computador G-10, que entrava em sua fase de projeto industrial. Posso até dizer que, nessa fase inicial, como toda empresa nascente, topávamos tudo. A Cobra também nos ajudou fazendo grandes encomendas de terminais de vídeo para conectar a seus computadores. E, assim, fomos desenvolvendo essa peque- na indústria, enquanto, no Rio de Janeiro, por volta dessa época (1976), a reserva de mercado começa a se delinear através de ações do governo brasileiro.

Eu, particularmente, gosto desse nome, reserva de mercado. Acho que é um nome honesto. Teve muita crítica com relação a ele, porque havia uma forte

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campanha contra essa política – os que combatiam esse modelo comparavam a reserva de mercado às reservas cartoriais. Mesmo assim, sempre achei que esse nome estava correto. Não tem nada para a gente esconder

Evidentemente, o jogo de interesses era muito grande. Uma política indus- trial concede privilégios em troca de comportamentos desejados. Porém, havia entendimentos muito diversos das regras do jogo para a indústria que nascia sob a reserva de mercado. Sempre tivemos, no Brasil, a herança de que o Estado é um gestor de privilégios. Sempre foi assim (e continua sendo, não é?). Então, com a reserva de mercado, cada um buscava interpretar à sua maneira o que estava, de fato, reservado, e qual a contrapartida a ser dada pela indústria. No caso da Scopus, uma empresa de engenheiros surgida da universidade, nossa interpretação, que até hoje acho correta, era de que a reserva de mercado destinava-se à tecnologia brasileira. Ou seja, o mercado brasileiro deveria, naquele setor, consumir produtos que tinham sido concebidos no Brasil. Portanto, com tecnologia brasileira.

Mercado protegido, com as indústrias investindo em tecnologia. Com isso se estimularia que as empresas desenvolvessem sua própria tecnologia. E, as- sim, o conhecimento tecnológico iria se desenvolvendo, a experiência iria se acumulando. Essa era a nossa visão, a Scopus trabalhava rigorosamente nesse contexto. Qual era a diiculdade da indústria nessa época? No Brasil, a indús- tria eletrônica havia desaparecido, principalmente no sul do País, que era onde se desenvolvera nas décadas de 40 a 60. No Norte, havia a Zona Franca de Manaus, responsável por esse desastre tecnológico. Políticas industriais cons- troem e destroem – a da Zona Franca de Manaus foi um caso de destruição sumária da indústria eletrônica, trocada por uma indústria de montagem de kits importados, com zero de tecnologia nacional.

Por volta de 1967, o Brasil ainda tinha indústria de televisores, rádios, de equipamento de áudio, que eram fabricados por indústrias brasileiras, muitas vezes projetados por engenheiros brasileiros. Era uma indústria diversiicada em dezenas de diferentes marcas, muito ativas devido ao desenvolvimento da microeletrônica. O governo cria, então, a Zona Franca de Manaus, com o pro- pósito de estimular o desenvolvimento da região Amazônica. Com essa polí-

109 tica, dentro de um ambiente em que a lei de substituição à importação deinia

o tom da industrialização brasileira, abriram-se as fronteiras para a entrada de equipamentos importados na forma de kits desmontados. Com isso, a indús- tria que existia no sul, que era até então forte e autônoma, não resistiu. Repito, ica claro que políticas de Estado estimulam ou destroem. A política da Zona Franca de Manaus, em particular, destruiu a tecnologia eletrônica brasileira.

Então, a indústria nacional de informática surge em 1976 sem infraestrutura no Brasil. Por exemplo, quem fosse projetar e construir um computador em 1976, 1977 tinha de fazer tudo. Não existiam recursos de CAD (projeto auxi- liado por computador) como hoje. Os projetos eram feitos em prancheta, com régua, lápis; as simulações eram mentais apenas. Construíam-se protótipos e se experimentava na base de iozinhos soldados. Quando tinha que fabricar o equipamento, os circuitos impressos, que é onde você solda as peças eletrô- nicas, eram feitos à mão, com itinha colada. No início, as próprias empresas pioneiras, inclusive, corroíam o circuito impresso.

Fazer computador sem a infraestrutura de fornecedores eletrônicos (que dei- xaram de existir por causa da Zona Franca de Manaus) obrigava as empresas a fabricar tudo, seja de base química (pintura, poliuretano, injeção de plástico), ou mecânica (suportes, gabinetes). A gente fazia a química, numa sala com cheiro hor- roroso. Tivemos que aprender a fazer todo suporte mecânico, toda caixa. Em uma empresa como a nossa, você tinha prensas, tornos, fresa. A gente fazia a carcaça manualmente, no início de ibra de vidro. Você tinha uma área com as pessoas, manualmente, trabalhando com ibra de vidro. Mais tarde, fazíamos o teclado com injeção e o molde de injeção das teclas do teclado. Essas histórias são importan- tes para demonstrar a grande diiculdade industrial nesse início, pois não existia indústria eletrônica no Brasil. Então, não era só construir a indústria de computa- dores. Tinha de construir, reconstruir, um ecossistema completo da indústria de eletrônica. Não existiam as empresas fornecedoras de hoje, nem conhecimento.

Por isso, as empresas que vinham da universidade, como a nossa, tinham uma certa vantagem, um trunfo sobre as que não vinham da universidade, por- que a gente tinha acesso à engenharia eletrônica, à engenharia mecânica, à en-

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genharia química, a todo esse conhecimento. E esse conhecimento estava na universidade. Não existia na indústria.

É claro que nesse início os computadores não tinham a qualidade compará- vel aos computadores norte-americanos, japoneses, europeus, porque lá você já tinha uma indústria que se assentava numa infraestrutura tecnológica que havia sido construída há mais de cem anos e continuava se aprimorando. A nossa não. Estávamos reinventando tudo na época.

Essa era a grande diiculdade e o grande obstáculo a ser vencido pela in- dústria. E a política de reserva de mercado deu fôlego à indústria e possibi- litou que isso acontecesse. Durante os dez anos de existência dessa política, a infraestrutura técnica se desenvolveu. Naquela época, todos os alunos de engenharia eletrônica, ao se formarem, iam trabalhar na indústria nacional. Todos. Ela absorvia 100% da produção de engenheiros brasileiros. Era um processo muito rico de desenvolvimento tecnológico. Coisa que os adversá- rios da política de informática da época nunca levaram em conta.

Valia a pena? Eu não tinha dúvidas de que valia. Precisávamos fazer isso. Sem uma política, sem a reserva de mercado, não conseguíamos vencer essa etapa, de desenvolver toda uma indústria eletrônica tecnologicamente capaz. Grande parte disso foi perdido quando a política mudou abruptamente. Não acho que foi com o governo Collor, e sim com o governo Sarney que essa mudança aconteceu.

Hoje, as pessoas que participaram da construção daquela indústria são di- rigentes da maioria das empresas de informática que existem no País. Perce- ba que a indústria de equipamentos de computação e de software brasileira é competente. Se hoje a indústria local de tecnologia da informação é forte desse jeito, é decorrência daquele processo, eu não tenho dúvidas. Porque ao mesmo tempo em que acontece a história do hardware, história similar se conta do sof- tware, com o desenvolvimento da nossa tecnologia. Veja a automação de bancos no Brasil, a automação comercial, a votação eletrônica, a indústria de internet. Nos tornamos competentes. E são as pessoas que fazem diferença, o conheci- mento adquirido por elas, e não a importação de máquinas maravilhosas.

111 Por exemplo, a Scopus, para colocar seus computadores no mercado, teve

de desenvolver todo o “irmware” das máquinas. O sistema operacional, o ge- renciador de base de dados, um pré-Oracle, vamos dizer, ela desenvolveu rede local, a primeira nós izemos, chamava-se Multiplus. Percebe-se a grandeza do desaio, porque nada existia. Tudo tinha que ser montado do zero. E não é só fabricar um computador, é fabricar um computador com um ecossistema de empresas que suportam essa produção. Essa era a grande questão.

No caso da Scopus, em 1976, com o professor Vinton Cerf, iniciamos a pro- dução de terminais de vídeo. Em 1980, fomos fabricar microcomputadores. Na nossa história, esse é um fato importante. Em 1984 abrimos o capital, izemos o famoso IPO, e em 1988 o Bradesco comprou o controle da Scopus. Era a sa- ída que a empresa tinha para continuar viva, porque a economia brasileira era muito difícil nessa época.

Para qualquer empresa sobreviver numa mudança radical das regras de jogo de mercado, o im da reserva de mercado icava mais difícil. A melhor saída foi o Bradesco assumir a empresa, que existe até hoje, fazendo coisas diferentes das que fazia naquela época, mas ainda com uma forte base tecnológica. Ela é responsável, hoje, por todos os projetos inovadores do Bradesco. E os dirigentes todos são daquela época. Então, dá para perceber que se formou uma equipe técnica competente e atrevida. É só com atrevimento e competência que se vence a luta pelo mercado.

Em paralelo a essa questão da construção da indústria e do parque indus- trial, era óbvio que essas empresas sobreviveriam e dependiam, radicalmente, da política da reserva de mercado. A gente fazia o nosso planejamento estraté- gico e falava onde estava a grande ameaça externa, na famosa “SWOT Analisys”, era óbvio que a maior ameaça era o im da reserva de mercado.

Quando o processo de reservar o mercado se iniciou, a indústria nacional tinha que entrar no debate. Inicialmente, não apenas no debate da defesa dessas ideias, mas da própria formulação do processo da política, que era feito pela equipe do Rio de Janeiro, mais ligada à Capre e à Cobra. A indústria fabricante de computadores e periféricos tinha que entrar nas discussões para dar seu testemunho.

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Foi, então, que se fundou a Abicomp, uma entidade que congregava essa in- dústria nacional que começava a surgir sob a proteção da reserva de mercado. O papel da Abicomp era articular a defesa dos princípios da política de proteção. O debate que se travava era muito complicado. Ao lado dos aspectos objeti- vos, econômicos, industriais e tecnológicos, a discussão adquiriu um contexto muito emocional. E esse emocionalismo atrapalhou muito o entendimento de cada lado sobre a razão do outro. Quer dizer, eu entrava num debate, tinha as minhas razões e o meu propósito ali era convencer o outro das minhas razões, sem ouvir as razões dele. E assim faziam todos. Isso atrapalhou muito.

Hoje, passados vinte anos do im da reserva de mercado, consigo ter uma visão um pouco mais serena de tudo o que aconteceu. Vejo que a gente não pre- cisava ter a guerra que tivemos. A guerra de um lado e do outro, que envolvia a imprensa, a Fiesp, um monte de outros setores da economia.

Sei que o problema se agravou quando essa política que surgiu estabelecen- do regras para minicomputadores, que era a indústria que existia na época, se expandiu. O minicomputador já era uma guinada tecnológica em relação ao que havia antes dele, os mainframes. Os mínis tinham uma tecnologia de produção mais fácil e se concluiu que essa era a oportunidade de estimular a indústria nacional para fabricá-los. O que tornou o processo muito mais complicado foi o surgimento dos microcomputadores, porque, à medida que começaram a se difundir, passaram a assumir um porte e uma importância enorme para a eco- nomia, e outros setores empresariais começaram a sentir o impacto. Eles que- riam importar as máquinas, e provavelmente achavam que o desenvolvimento tecnológico deveria ser buscado de outras maneiras.

Porque toda política encerra um importante dilema. O primeiro é que, em uma política industrial, o custo a ser pago é no curto prazo e o ganho é no longo prazo. Essa é uma diferença muito complicada de lidar, um genuíno dilema. E você lida com isso bem, se tiver a visão ideológica da questão, e aceita o custo inicial com a certeza de que o retorno vai ser lá na frente. Toda política de fomento tem isso.

E outra coisa importante é que esse custo é diferente para os diversos setores da economia. Alguns pagam mais, outros menos. O mesmo se dá

113 com os resultados da política – alguns setores se beneiciam mais, outros

menos. Isso faz com que uma política seja combatida ferozmente pelos que são mais onerados. Os que se beneiciam não participam porque o benefício está distante no tempo. No início, a política de informática era uma questão técnica, muito restrita, e mais tarde passou a ser amplamente debatida pelo impacto que tinha.

Eu me lembro de editoriais de jornais e revistas. Era muito difícil lidar com aquilo, com os ataques e ironias. A lucidez se desfez para todo mundo. Para o Estadão, uma grande força contrária, para a Editora Abril, para as indústrias estrangeiras, que tinham seus planos de vir para o mercado brasileiro tolhi- dos, pela indústria nacional, que queria manter aquilo e estender o alcance da política. Esse debate perdeu totalmente a lucidez.

É triste lembrar, mas uma parte da indústria nacional fazia parte do Bra- sil malandro, de privilégios, do Brasil corrupto. Existiam muitos oportunistas, muitos do lado da indústria nacional, diicultando a defesa de um conceito da política que traria o benefício da tecnologia para o Brasil, quando havia muitas indústrias brasileiras se beneiciando e disfarçadamente trazendo tecnologia de fora, desrespeitando a política. Isso tornava a defesa da reserva de mercado muito mais complicada.

Infelizmente, esse tipo de política se sustentou apenas durante o governo militar. Quando terminou a ditadura, o presidente Tancredo Neves, que tinha uma visão profunda e compromissada com essa política e com a importância da indústria nacional, adoeceu, e em seu lugar o presidente Sarney tomou posse. Nesse momento deixou de existir a possibilidade de se fazer uma mudança gradual da política. O inal foi abrupto, as regras foram mudadas mesmo antes dos decretos – pela prática, pela corrida das empresas. Foi um salve-se quem puder. Uma parte das indústrias quebrou, e as que não quebraram era porque tinham um pouco mais de sustentação econômica, como a Itautec, a Scopus e a Cobra. Poucas sobreviveram. Mas o que não se perdeu foram os proissionais, os que adquiriram conhecimento naquela época, hoje, estão aí. E isso, na minha opinião, faz toda diferença.

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