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O ENSINO JURÍDICO HOJE: DEZ ANOS APÓS A RESOLUÇÃO Nº 9/CNE

2 ENSINO JURÍDICO HOJE: ANÁLISE CRÍTICA E PROPOSTAS

2.1 O ENSINO JURÍDICO HOJE: DEZ ANOS APÓS A RESOLUÇÃO Nº 9/CNE

Passados 10 anos de vigência da Resolução nº 9/CNE, fazendo uma análise do ensino jurídico nos dias atuais, ainda nos deparamos com práticas tradicionais de ensino, marcadas pelo monólogo e por uma postura, não raras vezes, autoritária por parte do professor, que ainda se coloca como detentor do saber, e de um saber posto e imposto sem conexão com a realidade social. Streck (2005, p. 82), em sua obra Hermenêutica Jurídica e(m) crise, dispara acerca do ensino jurídico uma série de críticas:

com efeito, o ensino jurídico continua preso às velhas práticas. Por mais que a pesquisa jurídica tenha evoluído a partir do crescimento do número de programas de pós-graduação, estes influxos reflexivos ainda estão distantes das salas de aula dos cursos de graduação, não se podendo olvidar, nesse

contexto, que o crescimento da pós-graduação é infinitamente inferior à explosão do número de faculdades instaladas nos últimos anos.

O autor aponta uma relação entre uma crise do próprio Direito, sobretudo no processo interpretativo, e uma crise do ensino jurídico, reconhecendo nas salas de aula do curso de Direito, ainda, uma visão essencialmente positivista e dogmática dos fenômenos jurídicos alimentada por uma prática docente restrita, muitas vezes, à memorização de exempos cristalizados em manuais:

a cultura calcada em manuais, muitos de duvidosa cientificidade, ainda predomina na maioria das faculdades de Direito. Forma-se, assim, um imaginário que “simplifica” o ensino jurídico, a partir da construção de standards e lugares comuns, repetidos nas salas de aula e posteriormente nos cursos de preparação para concursos, bem como nos fóruns e tribunais . Essa cultura alicerça-se em casuísmos didáticos. O positivismo ainda é a regra. A dogmática jurídica trabalhada nas salas de aula [...] considera o Direito como sendo uma mera racionaldade instrumental. Em termos metodológicos, predomina o dedutivismo, a partir da reprodução inconsciente da metafísica relação sujeito-objeto. Nesse contexto, o próprio ensino jurídico é encarado como uma terceira coisa, no interior da qual o professor é um outsider do sistema. (STRECK, 2005, p. 83).

Ou seja, trata-se de uma crise no ensino jurídico provocada não somente pelos métodos didáticos em si, mas pelas concepções gnosiológicas acerca do próprio Direito que estão por trás do ensino, que orientam, conscientemente ou não, o trabalho e a postura do professor, na escolha do material, dos exemplos, nas concepções ou reflexões (ou na falta delas) que suscita em sala de aula, E assim, a doutrina cada vez menos é estudada, e pior:

a doutrina que sustenta o saber jurídico resume-se a um conjunto de comentários resumidos de ementários de jurisprudência, desacompanhados dos respectvos contextos. Cada vez mais, a doutrina doutrina menos; isto é, a doutrina não mais doutrina; é, sim, doutrinada pelos tribunais. (STRECK, 2005, p. 83).

Nesse sentido, a sala de aula permanece numa lógica cíclica de reprodução do conhecimento, sem a quebra dos paradigmas positivitas que restringiram a atuação no Direito a uma concepção metafísica e individualista dos fenômenos sociais e jurídicos, alimentada, em parte, por uma hermenêutica limitada à razão dedutiva, técnica e instrumental, e sem aprofudamento epistemológico, sem cientificidade:

a hermenêutica praticada nas salas de aula continua absolutamente refratária ao giro linguístico [...]; em regra, continua-se a estudar os métodos tradicionais de interpretação (gramatical, teleológico etc.), como se o processo de interpretação pudesse ser feito em partes ou em fatias. A teoria do Estado, condição de possibilidade para o estudo do Direito Constitucional (para ficar nesta disciplina fundamental, que, aliás, não ocupa, na maioria

dos cursos, mais do que dois semestres, não vem acompanhada da necessária interdisciplinaridade. (STRECK, 2005, p. 83).

E o autor arremata:

em síntese: é preciso compreender [...] que a crise do ensino jurídico é, antes de tudo, uma crise do Direito, que na realidade é um crise de paradigmas, assentada em uma dupla face: uma crise de modelo e uma crise de caráter epistemológico. De um lado os operadores do Direito continuam reféns de uma crise emanada da tradição liberal-individualista-normativista (e iluminista, em algns aspectos); [...]. O resultado dessa(s) crise(s) é um Direito alienado da sociedade, questão que assume foros de dramaticidade se compararmos o texto da Constituição com as promessas da modernidade incumpridas.

Streck escreveu o livro Hermenêutica Jurídica e(m) crise na década de 90, ou seja, antes da Resolução em análise, porém, na última edição do livro, que foi publicada este ano de 2015, o autor manteve seu texto inalterado, alegando que suas críticas em relação ao ensino jurídico permanecem atuais. De fato, não houve mudanças concretas ou substanciais no ensino jurídico com as novas diretrizes de 2004, e hoje vários autores no Brasil têm-se dedicado ao estudo/problematização do ensino jurídico, dentre eles podemos mencionar alguns nomes de destaque, como Tercio Sampaio Ferraz Junior, Sergio Rodrigo Martinez, Eduardo C. B. Bittar, Luiz Flávio Gomes, Marina Feferbaum, José Garcez Ghirardi, Nathalie de Paula Carvalho, dentre outros.

Visitando os textos desses autores, constatamos, com algumas variações, as mesmas críticas apontadas por Streck, confirmando o fato de que, ainda hoje, o ensino jurídico se encontra estagnado em metodologias e concepções ultrapassadas. Para Gomes (s/d), “o ensino jurídico no nosso país acha-se submetido a pelo menos três crises: (a) científico-ideológica, (b) político-institucional e (c) metodológica”.

A crise científico-ideológica, como vimos, também foi apontada por Streck, e está relacionada ao fato de que, no Brasil, a implantação dos cursos de Direito está, como verificamos na primeira etapa deste estudo, vinculada, exclusivamente, às ideias liberais individualistas, bem como às concepções gnosiológicas positivistas, que concebem e analisam os fenômenos sociais com os mesmos pressupostos das ciências naturais, construindo, por conseguinte, uma visão metafísica, transcendental, dogmática e unilateral do Direito.

O professor-jurista, ao elaborar ou professar teorias, limita-se à exegese do Direito posto, recusando-lhe a crítica e apresentando aos alunos um sistema pronto e acabado, supostamente harmônico, que possuiria todas as respostas jurídicas possíveis. Não orienta seus alunos a buscar o porquê daquelas determinações legais ministradas. Essas abstrações não só levam a um

progressivo distanciamento da realidade, mas também a uma fórmula positivista reducionista. (CARVALHO, s/d).

Nesse sentido, essa crise científico-ideológica do Direito, consequentemente, traz implicações significativas para o próprio ensino, pois, obviamente, os métodos utilizados, os exemplos, as teorias e concepções trabalhadas em sala de aula são norteados pela visão que o professor tem de seu objeto de estudo:

a distância (abismal) entre a provecta metodologia do ensino jurídico e a realidade fica mais do que evidenciada quando vemos a artificialidade de muitos dos problemas jurídicos enfocados em salas de aula ou em concursos públicos. Aliás, já a forma bizarra e grotesca de apresentação deles (Semprônio tinha inequívoca intenção de matar Caio, que morava na Tanzânia em companhia de um bebê de proveta chamado Tício, que nasceu no mesmo dia que Mévio...) revela o quanto se afastam da vida comum dos mortais. (GOMES, s/d).

Ora, como cediço, uma concepção meramente dogmática/legalista do Direito não dá, ao profissional da área, a formação propedêutica e epistemológica necessária para uma compreensão e análise crítica/reflexiva da sociedade e das questões jurídicas e, principalmente, para o complexo exercício da hermenêutica, em que a lógica simplista da subsunção não dá cabo da grande maioria dos conflitos apresentados hoje ao profissional:

o ensino jurídico não tem conseguido acompanhar as transformações sociais, políticas e econômicas pelas quais o país tem passado, dentre outros motivos porque o tempo do Direito é muito mais lento que o tempo da sociedade, e o ensino do Direito tem sido conduzido de forma excessivamente legalista e formalista, sem instrumentos de compreensão da realidade dinâmica da sociedade. (ALMEIDA, 2013).

Já a crise institucional a que se refere Luiz Flávio Gomes, e que também influencia na má qualidade do ensino, está relacionada às condições precárias das Instituições de Ensino Superior – IES no Brasil, à “proliferação” dos cursos de Direito, ao aumento desenfreado do número de alunos, à pouca base com que estes chegam na graduação. Salas superlotadas, livros defasados na biblioteca, alunos com dificuldade de leitura e produção textual são alguns dos obstáculos encontrados por quem se aventura a lecionar nos cursos de Direito:

a estruturação pedagógica atrasada, as aulas ministradas em salas lotadas, a pouca exigência acadêmica condenam esses cursos ao papel de formadores de despachantes, que operam perifericamente com as normas, usando seu fraco bom senso, já que não tratam os comandos normativos com um mínimo de rigor. Essa fragilidade dos cursos faz com que seus professores só trabalhem com textos, no máximo referidos às vivências pessoais dos docentes, tudo isso iluminado pelas poucas velas de doutrinas ultrapassadas e preconceitos camuflados. (AGUIAR apud CARVALHO, s/d).

Assim, o alerta quanto à precariedade do ensino jurídico vem de vários lados, e é, hodiernamente, foco de muitas discussões e debates. Como verificamos, são várias as causas: de caráter epistemológico, ideológico, metodológico/pedagógico e institucional:

o ensino jurídico precisa ser repensado. Por ser um processo que provoca mudanças de mentalidade e reflexos sociais, econômicos, políticos, ressalta- se a importância desse processo vital para o desenvolvimento humano. Cada vez mais saem dos bancos acadêmicos profissionais do Direito sem as mínimas condições para o exercício das habilidades em relação às quais o curso propõe-se a capacitar. Certamente que não se conseguirá superar os graves problemas que afetam a sociedade e, mesmo havendo uma profunda reformulação no sistema educacional, este sempre refletirá as relações que são mantidas na tessitura social. Ensinar o Direito não significa simplesmente reproduzir os dogmas, as teorias, a letra da lei. Ao contrário: a função principal do professor é problematizar a realidade que o cerca e aos seus alunos, para, calcado nesta premissa, apontar caminhos para a construção de um Direito promotor de verdade e de justiça. (CARVALHO, s/d).

Destarte, indubitavelmente, o ensino jurídico necessita de alterações substanciais que devem passar por uma reformulação que vai além da Resolução nº9/CNE e envolve, como constatamos, vários fatores. A seguir, traremos outras reflexões juntamente com algumas propostas de mudanças.

2.2 CONCEPÇÕES PEDAGÓGICAS E EPISTEMOLÓGICAS: EXPLORANDO A RAIZ

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