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2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

4 O MÍNIMO EXISTENCIAL

A necessidade de um mínimo de recursos a possibilitar uma existência digna – sob pena de sacrifício da dignidade da pessoa humana – teve por primeiro jurista de renome a sustentá-la, na doutrina pós-segunda guerra, o publicista Otto Bachof. (SARLET; FIGUEIREDO, 2008).

Desse modo, desde a década de 1950 se tem dado guarida à compreensão sobre ser necessária a prestação, pelo Estado, de um mínimo que garanta ao indivíduo uma existência digna.

Interessante estudo sobre o conceito e conteúdo do mínimo existencial é desenvolvido por Barcellos (2002, p. 248), concluindo por ser este o núcleo exigível da dignidade da pessoa humana, de modo que, com relação a esse princípio, “é possível reconhecer eficácia positiva ou simétrica às faixas que compõem o seu núcleo, especialmente àquelas que dizem respeito a condições materiais de existência”, sendo possível exigir a prestação do Estado inclusive perante o Judiciário. A esse núcleo da dignidade da pessoa humana a autora chama de mínimo existencial, sendo formado pelas “condições materiais básicas para a existência.”

Figueiredo (2007) entende que o mínimo existencial deriva não só do princípio da dignidade da pessoa humana, mas também encontra substrato na liberdade, na igualdade, na livre iniciativa, no devido processo legal, nas imunidades e privilégios dos cidadãos, bem como nos direitos humanos de modo geral, importando na máxima redução aceitável do conjunto de direitos subjetivos a serem exigidos.

Contudo, jamais se deve confundir o mínimo existencial com o mínimo necessário à mera sobrevivência física. Nesse sentido, o mínimo existencial se desdobra em mínimo fisiológico, dando guarida às necessidades básicas de existência, e no que pode ser denominado de mínimo sociocultural, que pretende assegurar, garantindo a igualdade material, o indivíduo na vida social. (SARLET; FIGUEIREDO, 2008).

Em sendo desdobramento da dignidade da pessoa humana, seria absurdo imaginar o mínimo existencial como tendo em seu bojo tão-somente o necessário à sobrevivência. De fato, uma vida digna parte do pressuposto que o sujeito sobreviva, sendo-lhe garantido o mínimo necessário para que ele se possa afirmar como ser humano, compreendendo a sua condição de humanidade, tendo, ao menos, um ponto de partida mínimo para o desenvolvimento das suas potencialidades.

Desse modo, o mínimo existencial tem por função precípua “atribuir ao indivíduo um direito subjetivo contra o Poder Público em casos de diminuição da prestação dos serviços sociais básicos que garantem a sua existência digna.” (KRELL, 2002, p. 62).

Ocorre que, muito embora se tenha em mente esse imprescindível mínimo a ser garantido, a fixação das políticas a serem desenvolvidas para garanti-lo, bem como o valor da prestação assistencial que busque assegurá-lo serão determinados de acordo com o padrão socioeconômico vigente (KRELL, 2002). Ademais, a fixação do mínimo existencial vai depender das necessidades do momento.

Nesse sentido se manifesta Alexy (2008, p. 427-428), elegendo o princípio da igualdade fática como conformador do conteúdo do mínimo existencial de acordo com cada momento experimentado, no caso do seu objeto de estudo, pela República Federal da

Alemanha. Com base nessa igualdade material, que “exige uma orientação baseada no nível de vida efetivamente existente”, poderá ocorrer, contudo, por consequência da ponderação com princípios colidentes, de o padrão ficar abaixo desse nível. Isso se coaduna com a ponderação acima realizada, que leva em conta o momento vivido pela sociedade como conformador necessário do conteúdo do mínimo existencial.

Levando em conta essa realidade de necessária ponderação entre princípios, se faz interessante frisar que, num último momento, caberá sua realização exatamente pelo Judiciário, que exercerá, por consequência, a sua função de intérprete do bem comum. De fato, em caso de desrespeito a princípios, ou mesmo imoderada sobrepujança de um(ns) sobre outro(s), caberá aos Juízes determinar o real sentido da ponderação naquele caso concreto, sendo, para tanto, a eles necessária uma robusta capacidade compreensiva das consequências – tanto fáticas como jurídicas – não só das suas, mas também das decisões de cunho legislativo (consubstanciadas na lei) ou mesmo administrativo. (KRELL, 2004).

Se é verdade que, ao menos minimamente, já se mostra compreensível em que consiste o mínimo existencial, bem como que a definição do seu conteúdo – ou seja, o preenchimento do núcleo da dignidade da pessoa humana – oscilará de sociedade para sociedade, de Estado para Estado, qual será o conteúdo do desse mínimo dentro da República Federativa do Brasil? O ordenamento jurídico pátrio nos dá alguns conteúdos a serem inseridos sem maiores dificuldades.

Assim, por força de imperativo constitucional19, se vê o legislador ordinário obrigado a, em cada elaboração de orçamento, fazer constar um percentual mínimo de gastos nas áreas de saúde e educação. Ora, se a Constituição torna exigível a aplicação de percentual mínimo nessas áreas, resta claro o seu intento em promovê-las. E mais, em sendo tais áreas notoriamente promotoras da dignidade da pessoa humana – e sendo o mínimo existencial justamente o núcleo intangível e judicialmente exigível dessa dignidade – o que vemos é o regramento do núcleo da dignidade, através de regras de investimento mínimo, como forma de garantia de manutenção e fomento dessas áreas.

Se parece claro que a proteção à saúde é desdobramento do próprio direito à vida – e sem este não há sujeito, e, assim, qualquer dignidade a ser protegida –, bem como que a garantia do direito à educação abarca a possibilidade de auto-afirmação do indivíduo enquanto pessoa humana e cidadão, dando-lhe substrato para o desenvolvimento de suas potencialidades (a seu critério), é certo que, para a garantia de proteção à dignidade (jamais de

promoção, pois esta não é conferida, mas tutelada), muito embora não seja mensurável, deve abarcar ainda a previsão de um mínimo de ajuda assistencial, de modo a garantir ao indivíduo a fruição do mínimo existencial em toda a sua extensão – fisiológico e sociocultural.

Os valores a serem estipulados no sentido dessa ajuda assistencial dependerão, essencialmente, das necessidades e anseios de cada momento, contrastadas com o padrão socioeconômico vigente, sob pena de não passarem de letra da lei, sem o mínimo de efetividade.

De fato, assegurar valor abaixo do mínimo necessário significa, no máximo, garantir que o Estado age simbolicamente na proteção da dignidade da pessoa humana.20 Por outro lado, garantir valor que ultrapasse as possibilidades econômico-financeiras do Estado é também proteger de forma tão-somente simbólica. Ambos os casos levam à inefetividade do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil.

Por outro lado, caso reste fixado abaixo do nível de vida existente num determinado momento, por força da ponderação de princípios colidentes, não haverá que se falar em ferimento ao princípio – e também ao da igualdade material – mas, sim, na busca da sua máxima efetividade, que não poderá jamais ocorrer sem que sejam levados em consideração os demais princípios constitucionais norteadores da ação do Estado.

Com relação a alguns dos ditos “direitos negativos”, notadamente os direitos de liberdade, e sobre serem ou não relacionados dentro do núcleo de dignidade, convém aqui fazer uso da advertência de Barcellos de que, tendo em vista a já garantida normatividade desses direitos, que adquiriram, no decorrer do tempo um instrumental específico de tutela, o mais importante hoje consiste justamente em saber quais outros direitos integram a parte intangível e sindicável da dignidade. Pressupõe-se, pois, a inclusão dos direitos de liberdade dentro do mínimo existencial – até porque sem essa garantia não há como se estabelecer o pleno exercício dos demais direitos aqui inseridos21 – sem haver a necessidade, por outro lado, de sua defesa ou afirmação.

Interessante afirmação, que vale ser colacionada, aduz que “não há quem possa, com seriedade intelectual, afirmar, por exemplo, que uma pessoa tem sua dignidade respeitada se

20 Sobre a legislação simbólica, seus tipos e funções, ver Marcelo Neves. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 31 e ss.

21

Note-se que os direitos inseridos dentro do mínimo existencial se pressupõem uns aos outros, de modo que a garantia de um mínimo de dignidade somente ocorre a partir do exercício conjunto desses direitos, jamais isolado. Assim, v.g., de que vale a garantia dos direitos de liberdade (que, como visto, importam em custos), se não há como manter o direito à vida, tendo em vista a prestação insatisfatória dos serviços de saúde? Ou, ainda, como assegurar o pleno exercício do mínimo existencial a um indivíduo que não detém o discernimento necessário para exigi-lo, ou mesmo as condições de saber-se indivíduo, através de um mínimo de ensino garantido?

não tiver o que come ou o que vestir, se não tiver oportunidade de ser alfabetizada, se não dispuser de alguma forma de abrigo.” (BARCELLOS, 2002, p. 254-255). Isso bem resume o que ora se afirma.

Ao lado desses direitos, há de se dar guarida, ao menos, a uma garantia instrumental, que possibilite ao indivíduo – ciente de suas possibilidades e faculdades – exigir o cumprimento forçado do mínimo existencial. Essa garantia há de ser justamente o direito ao devido processo legal, como norte conformador da sindicabilidade desses direitos. Não basta o acesso à justiça; esse tem de vir adicionado de uma garantia positiva de que o processo correrá garantindo a igualdade das partes, o contraditório, a oportunidade de produção de provas, entre outros.22

Mas, e tomando por pressuposto lógico que, de acordo com a compreensão proposta do mínimo existencial como sendo composto por uma parcela entendida como fundamental – de acordo com os anseios, necessidades e momento histórico de uma determinada sociedade – dos direitos sociais (além dos direitos de liberdade, que não ensejam maiores discussões), haveria o comprometimento da efetividade dos demais direitos sociais, não dotados da mesma possibilidade de exigência judicial que os inseridos no núcleo da dignidade?

5 A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS NÃO INSERIDOS

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