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Do fundamento dos direitos humanos: universalismo vs. relativismo cultural É importante destacar a discussão travada entre universalistas e relativistas acerca do

fundamento dos direitos humanos, a fim de que possamos delimitar o entendimento sobre o qual se sedimentará nossos argumentos no que tange à efetivação dos direitos sociais nos países do Mercosul.

O debate entre os universalistas e relativistas culturais gira em torno da fundamentação das normas de direitos humanos, ou seja, da seguinte questão: existem direitos humanos universais ou os direitos humanos são culturalmente relativos?

Embora a concepção contemporânea dos direitos humanos seja norteada pela universalidade desses direitos, tidos como inerentes a toda e qualquer pessoa humana, a questão não é tão simples como parece, já que essa concepção universal demarcada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos sofre fortes resistências por parte dos adeptos do relativismo cultural.

Os universalistas concebem os direitos humanos como direitos decorrentes da dignidade humana, na condição de valor intrínseco à condição humana, defendendo a existência de um mínimo ético irredutível, cujo alcance pode até ser discutível de acordo com a cultura adotada, mas que não perde seu caráter de inerência à condição humana enquanto tal. De sorte que para os universalistas, ainda que se possa falar em variabilidade de direitos a partir da diversidade de tradições, existirá sempre um ponto de partida comum a todas elas e consubstanciado nesse mínimo ético irredutível. 62

Já para os relativistas, a noção de direitos está estritamente relacionada ao sistema político, econômico, cultural, social e moral vigente em determinada sociedade, sendo que

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BEDJAQUI, Mohammed. International law: achievements and prospects. 1991. p. 1182 apud PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 15.

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SEN, Amartya. Development as freedom. New York: Alfred A. Knopf, 1999. p. 35-36. 61

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 16. 62

cada cultura possui o seu discurso acerca dos direitos fundamentais, não havendo que se falar em uma moral universal, já que a história do mundo é marcada pela pluralidade cultural.

Como na visão relativista cultural, os direitos humanos são fruto de uma criação das culturas humanas e como estas se diferenciam entre si, falar em princípios universais que norteiam toda a moralidade humana é tida como uma versão imperialista de tentar fazer com que valores de uma determinada cultura sejam tidos como gerais. 63 E na visão dos relativistas, a idéia de direitos humanos universais é fruto de uma noção construída pelo modelo ocidental.

Entretanto, a essa crítica dos relativistas culturais, reagem os universalistas, defendendo que a posição relativista serve, em verdade, como pano de fundo justificador de atrocidades cometidas pelos Estados, que evocando o relativismo cultural, ficariam imunes ao controle da comunidade internacional. 64

A Declaração Universal de Direitos Humanos, bem como a Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993 acolheu a corrente do forte universalismo ou fraco relativismo cultural, ou seja, embora permita, em grau limitado, variações culturais no modo e na interpretação dos direitos humanos, não deixa de determinar sua universalidade moral e fundamental, não se podendo fugir do mínimo ético exigível, que torna os direitos humanos relativamente universais. 65

A visão de Barzotto acertada do fundamento dos direitos humanos sedimenta-se no realismo, segundo o qual a plena realização da pessoa requer uma pluralidade de direitos que tutelem as várias dimensões da natureza humana em circunstâncias concretas, sendo que esses direitos pertencem à natureza humana (direito à vida, saúde, liberdade, educação, família, comunicação etc). 66

Por esse entendimento, para o ser humano como pessoa, os direitos humanos assumem um caráter analógico, ou seja, há um mínimo (essência) daqueles direitos inerentes à natureza humana que devem ser compartilhados por toda pessoa humana, porém a sua formatação

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VICENT, R. J. Human rights and international relations. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. p. 37-38.

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PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 151.

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DONNELLY, Jack. Universal Human Rightsin theory and practice. Ithaca, NY: Cornell University Press, 2003. p. 124.

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BARZOTTO, Luis Fernando. Os Direitos Humanos como direitos subjetivos: da dogmática jurídica à ética.

sofrerá modulações a depender do contexto ao qual essa pessoa está inserida; o que permite se superar o atual debate entre relativismo e universalismo dos direitos humanos.

O realismo propugna um universalismo analógico, segundo o qual a pertença à espécie humana garante a posse dos direitos humanos, mas esses se manifestam de modos distintos, da mesma forma que a mesma humanidade se manifesta em cada pessoa humana de um modo distinto. Direitos esses com conteúdos concretos diferentes para pessoas que vivem de modo diferente. Assim, na sua efetividade, não serão absolutamente idênticos nem distintos, mas semelhantes. 67

Barzotto também trata do titular do dever dos direitos humanos, que é o co-humano, o devedor em face dos direitos humanos; ressaltando que se os direitos humanos cabem a todos os seres humanos pela condição humana que lhes é inerente, a responsabilidade pelo dever é universalizada; tendo cabido à Ética teorizar esse dever de um ser humano para com o outro, de sorte que na ética particularista da fraternidade, o titular desse dever é o vizinho, o próximo, produzindo um sujeito de dever adequado a comunidades igualitárias, em que a igualdade universal entre os seres humanos funda-se em uma base laica: a própria natureza humana comum. Segundo essa órbita de entendimento, viver em comunidade é viver em débito com relação aos outros membros, aproximando-se para realizar o que lhes é devido e essa reciprocidade abarca todo ser humano. 68

Já Souza Santos propõe uma concepção multicultural dos direitos humanos, obtida a partir do diálogo entre as culturas, a compor um multiculturalismo emancipatório, defendendo que os direitos humanos devem ser reconceitualizados como multiculturais; apresentando-se o multiculturalismo como pré-condição para uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que “constituem os dois atributos de uma política contra-hegemônica de direitos humanos no nosso tempo”. 69

O referido autor destaca a necessidade de se superar o debate entre o universalismo e o relativismo cultural a partir da transformação cosmopolita dos direitos humanos, ou seja, embora cada cultura possua uma noção distinta de dignidade humana, essas noções são incompletas; o que gera a possibilidade de um diálogo intercultural para se chegar a um

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BARZOTTO, Luis Fernando. Os Direitos Humanos como direitos subjetivos: da dogmática jurídica à ética.

Direito & Justiça, Porto Alegre. UFRGS, ano XXVII, v. 31, n. 1, 2005, pp. 67-119. p. 73. 68

Ibidem, p. 73-74. 69

SOUSA SANTOS, Boaventura. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Lua Nova, São Paulo, v. 39, 2007. p. 112.

universalismo de confluência. Em verdade, Boaventura sustenta o universalismo dos direitos humanos como ponto de chegada e não como ponto de partida, obtido a partir do diálogo entre as culturas, que, por sua vez, só é possível se cada cultura tomar a consciência de que sua concepção de dignidade humana é incompleta e pode ser complementada a partir dessa interlocução multicultural. 70

Neste trabalho, busca-se um entendimento acerca dos direitos humanos que conjugue os ensinamentos de Barzotto e Sousa Santos. Isso porque, não se pode olvidar da existência de valores e direitos mínimos inerentes à simples condição humana; o que não retira, contudo, a influência que cada tradição exerce sobre a formatação desses valores e direitos, que sofrerão modulações a depender do contexto em que a pessoa estiver inserida.

Assim, o diálogo intercultural ganha extrema importância para se chegar a um consenso acerca da formatação a ser atribuída a esses valores mínimos, de sorte que a preocupação que deve nortear a interlocução multicultural não deve ser descobrir valores, porque estes não podem ser racionalmente demonstrados, mas sim buscar um consenso em torno da formatação desses valores, ou seja, dos limites que sua tutela impõe ao comportamento individual; o que permitirá o alcance de um catálogo de valores/direitos que tenha a concordância de todos os participantes.

1.4 Da estrutura normativa do Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos

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