Africano e Interamericano
CAPÍTULO 4 – DAS ALTERAÇÕES A SEREM IMPLEMENTADAS EM PROL DA EFETIVIDADE FORMAL DOS DIREITOS HUMANOS
4.2 Da justiciabilidade dos direitos humanos sociais segundo a legislação constitucional dos Estados Membros do Mercosul
4.2.2 Efetividade dos direitos sociais a prestações e dos direitos sociais expressos em normas programáticas nas Constituições dos Estados Membros do Mercosul
4.2.2.1 Reserva do Possível
Pela Reserva do Possível, o juiz, ou mesmo o Poder Público, não pode efetivar ou desenvolver direitos, comumente os direitos sociais a prestações materiais, sem que existam recursos materiais para tanto, de modo que o real cumprimento do direito prestacional fica condicionado à efetiva disponibilidade de recursos, porquanto não se pode gastar aquilo que não se tem. 523
A Teoria da Reserva do Possível é defendida por parte relevante da doutrina (Lima Lopes 524, Ministro Gilmar Mendes, 525 Miguel Pangrazio 526 e Radil 527), que entende que a efetivação dos direitos sociais a prestações depende da real existência de recursos voltados ao cumprimento da obrigação que implicam ao Estado. Segundo essa parcela da doutrina, a limitação dos recursos constitui um limite fático à efetivação dos direitos sociais. 528
Sarlet relata que no âmbito da Reserva do Possível a concretização das prestações reclamadas fica condicionada à conjuntura econômica, salientando que a problemática da existência de recursos materiais disponíveis, conjugada à problemática em torno da possibilidade jurídica de disposição desses recursos pelo Estado acabou por conduzir à colocação dos direitos sociais a prestações materiais sob o enfoque da Reserva do Possível.529
Segundo Canotilho, os argumentos para reduzir os direitos sociais a uma garantia constitucional platônica são exatamente os seus custos. Isso porque, enquanto os direitos de liberdade podem ser garantidos a todos os cidadãos sem se sobrecarregarem-se os cofres públicos, os direitos sociais pressupõem grandes disponibilidades financeiras por parte do
523
BARROS, Carlos Roberto Galvão. Hermenêutica constitucional e eficácia dos direitos sociais. Natal. 2007. 166 p. (Mestrado em Direito) Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. p. 146. 524 LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito Subjetivo e Direitos Sociais: o dilema do Judiciário no Estado Social de Direito. In: FARIA, José Eduardo (org.). Direitos humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 131.
525
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 8.
526
PANGRAZIO, Miguel Angel. Tratado de derecho público. Asunción: S.R .L, 1996. p. 220-222. 527
RADIL. Bernadino Cano. Manual de derecho constitucional e político – la legitimación del poder y su problemática La Sociedad Política Organizada. Asunción: Catena, 2003. p. 366-367.
528
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 288.
529
Estado. Nesse sentido, Canotilho assere que “um direito social sob ‘reserva dos cofres cheios’ equivale, na prática, a nenhuma vinculação jurídica”. 530
Para os que defendem a Reserva do Possível, os consideráveis custos dos direitos prestacionais fazem com que a realização de determinados direitos sociais a prestações implique na viabilização da consecução de outros, o que remete ao Legislativo, que tem legitimidade democrática, o poder de avaliar quais seriam os direitos sociais prestacionais mais caros à sociedade. 531
Vieira de Andrade, partindo da premissa de que a Constituição não tem como oferecer critérios para a decisão relativa às prestações que deverão ser priorizadas pelo Estado, entende que essa decisão deve ser deixada ao encargo dos órgãos políticos (em especial do legislador), a quem compete definir as linhas gerais das políticas públicas no âmbito socioeconômico. 532
Com efeito, para a doutrina da Reserva do Possível, trata-se de um problema eminentemente de competência, na medida em que outorgar ao Poder Judiciário a função de concretizar os direitos sociais mesmo à revelia do legislador implicaria afronta ao princípio da separação de poderes e, por conseguinte, ao postulado do Estado de Direito. 533
Segundo essa linha de entendimento, “ao legislador compete, dentro das reservas orçamentais, dos planos econômicos e financeiros, das condições sociais e econômicas do país, garantir as prestações integradoras dos direitos sociais, econômicos e culturais”. 534 Já ao Executivo, enquanto administrador, cabe se ater às condições fornecidas pelo Legislativo a partir do orçamento do Estado. 535
No Brasil, parte da doutrina adota o entendimento pelo qual a efetividade dos direitos sociais prestacionais encontra-se vinculada à reserva do possível, o seja, à existência de recursos materiais disponíveis, bem como à capacidade jurídica do Estado de alocá-los; muito
530
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1998. p. 477.
531
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 286.
532
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987. p. 200-202.
533
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 286.
534
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Coimbra Editora, 1982. p. 369.
535
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 206.
embora autores como Sarlet questionem até que ponto esses aspectos têm o condão de impedir a plena efetivação e realização daqueles direitos. 536
Ora, a barreira orçamentária não pode ser tida como absoluta e instransponível, tal como pretende a doutrina defensora da Reserva do Possível, não se podendo limitar o esforço concretizador do intérprete a uma lei orçamentária, que nem sempre é justa. 537 Além do que, não se pode perder de vista que a Reserva do Possível é uma teoria construída a partir da dogmática alemã e da realidade alemã, não tendo como vislumbrar o intenso déficit social que assola os países membros do Mercosul e demais países em desenvolvimento.
Isso não significa dizer que a teoria da Reserva do Possível é de todo inadequada aos países membros do Mercosul, mas que o intérprete constitucional dos direitos fundamentais sociais, nestes países, não pode apenas se ater aos argumentos lógicos, devendo sopesar os diversos valores para, no caso concreto, extrair do conteúdo da norma a interpretação mais adequada à realidade subjacente. 538
Compete ao magistrado, ao decidir acerca da exigibilidade dos direitos sociais no caso concreto, inverter o ônus da prova para compelir o Estado a provar que, efetivamente, não tem recursos suficientes em nenhuma de suas rubricas orçamentárias; sendo que, na existência parcial de recursos, deve o intérprete zelar pela concretização parcial do conteúdo normativo.539
Nas palavras de Schäefer, diante da inoperância legislativa e executiva de um país para com a consecução plena dos direitos sociais, pode o Poder Judiciário concretizá-los, tornando viva a vontade constitucional sem, com isso, usurpar a competência do legislativo. 540
Essa também é a posição de Krell, segundo o qual
Parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vetusto dogma da Separação dos Poderes em relação ao controle dos gastos públicos e da prestação dos serviços sociais básicos, visto que os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se mostram incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos constitucionais.
536
Ibidem, p. 290. 537
BARROS, Carlos Roberto Galvão. Hermenêutica constitucional e eficácia dos direitos sociais. Natal. 2007. 166 p. (Mestrado em Direito) Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. p. 147. 538
Ibidem, p. 148. 539
BARROS, Carlos Roberto Galvão. Hermenêutica constitucional e eficácia dos direitos sociais. Natal. 2007. 166 p. (Mestrado em Direito) Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. p. 148. 540
A eficácia dos direitos fundamentais sociais a prestações materiais depende naturalmente dos recursos públicos disponíveis; normalmente há uma delegação constitucional para o legislador concretizar o conteúdo desses direitos. Muitos autores entendem que seria ilegítima a conformação destes pelo Poder Judiciário, por atentar contra o princípio da Separação dos Poderes. No entanto, está com razão José Alcebíades quando afirma que ‘a consolidação dos direitos sociais e sua consequente implementação precisa estar vinculada a uma visão sociológica e política do jurídico, assim como a uma visão jurídica da política’.541
Entende-se, pois, que o fato dos direitos sociais a prestações materiais dependerem da existência de recursos disponíveis não obsta a sua justiciabilidade, podendo a questão ser levada a juízo. A peculiaridade que é inerente aos direitos sociais deve vincular-se não à possibilidade do seu titular de exigir a realização da prestação em juízo, mas à forma pela qual o magistrado garantirá ou não a realização da prestação pleiteada no caso concreto; de modo que, o intérprete deve sempre partir do pressuposto de que os direitos sociais a prestações, enquanto direitos humanos e fundamentais, são direitos dotados de exigibilidade e cuja concretização só poderá ser sufragada nos casos em que o Estado efetivamente conseguir provar a inexistência de recursos orçamentários.
Além do que, parte considerável da doutrina e da jurisprudência já entende que há um mínimo existencial que o Estado não pode deixar de atender, nem mesmo sob o argumento de carência de recursos, como se verá adiante.