• Nenhum resultado encontrado

Hegel e a Moderna Distinção entre Sociedade Civil, Família e Estado

2. Sociedade Civil no Quadro Hegeliano

2.1. Hegel e a Moderna Distinção entre Sociedade Civil, Família e Estado

Na obra Elemensts of the Philosophy of Right, Hegel apresenta um sistema segundo o qual o espírito objetivo, que segue ao espírito subjetivo e precede o espírito absoluto, é distinto nos três momentos do direito abstrato, da moralidade e da eticidade. Sendo que a eticidade, por sua vez, se afigura distinta nas três instituições que são a família, a sociedade civil e o Estado. Decisivamente, para Hegel a sociedade civil não é mais a família, sociedade natural e a forma primordial da eticidade, mas também não é ainda o Estado, que é a forma mais ampla da

80 No artigo “Entre o facto da separação e a exigência da unidade: a sociedade civil hegeliana” Pires (2003)

79

eticidade e, como tal, resume em si e supera, negando-as e sublimando-as, as formas precedentes da sociabilidade humana.

Nestes termos, na categoria de sociedade civil constarão todos aqueles elementos que tornam possível a diferenciação da família face ao Estado e vemos aqui Hegel distanciar-se das teorias jusnaturalistas que na sequência da tradição aristotélica confundiam os conceitos de família, sociedade civil e Estado/sociedade política.

Colocada entre a forma primitiva e a forma definitiva do espírito objetivo, a sociedade civil representa para Hegel o momento no qual a unidade familiar, com o surgimento de relações económicas antagónicas produzidas pela urgência que o homem tem em satisfazer as próprias necessidades mediante o trabalho, se dissolve nas classes sociais. É então que a luta de classes acha uma primeira mediação na solução pacífica dos conflitos através da instauração da lei e da sua aplicação no âmbito da administração da justiça. Sobre os princípios da sociedade civil o autor entende que,

The concrete person who, as a particular person, as a totality of needs and a mixture of natural necessity and arbitrariness, is his own end, is one principle of civil society. But this particular person stands essentially in relation [Beziehung] to other similar particulars, and their relation is such that each assets itself and gains satisfaction through the others, and thus at the same time through the exclusive mediation of the form of universality, which is the

second principle. (…) Civil society is the [stage of] difference [Differenz] which intervenes

between the family and the state, even if its full development [Ausbildung] occurs later than that of the state; for as difference, it presupposes the state, which it must have before it as a self-sufficient entity in oder to subsist [bestehen] itself (Hegel, 2000: 220/1).

Como se pode notar, existe no pensamento de Hegel a convicção de que a subsistência da sociedade civil pressupõe a capacidade co/ordenadora duma instituição estatal, facto que sugere possibilidades duma relação de interdependência entre a sociedade civil e o Estado. No prosseguimento do seu raciocínio, o autor dá mais detalhes ao afirmar que,

Besides, the creation of civil society belongs to the modern world, which for the first time allows all determinations of the Idea to attain their rights. If the state is represented as a unity of different persons, as a unity which is merely a community [of interests], this applies only to the determination of civil society. Many modern exponents of constitutional law have been enable to offer any view of state but this. In civil society each individual is his own end, and all else means nothing to him. But he cannot accomplish the full extent of his ends without reference to others; these others are therefore means to the end of the particular [person]. But through its reference to others, the particular end takes on the form of universality, and gain

80 satisfaction by simultaneously satisfying the welfare of others. Since particularity is

tied to the condition of universality, the whole [of civil society] is the sphere [Boden] of mediation in which all individual characteristics [Einzelheiten], all aptitudes, and all accidents of birth and fortune are liberated, and where the waves of all passions surge forth, governed only by the reason which shines through them. Particularity, limited by universality, is the only standard by which each particular [person] promotes his welfare” (Idem; Ibidem).

Neste quadro de ideias, parece ficar claro que Hegel concebe a finalidade da sociedade civil no “bem-estar” material e espiritual dos seus membros, e na realização dos interesses particulares. Ora, pelo facto de o conceito universal de “bem-estar” ser atravessado por interesses particulares, a sociedade civil requer o Estado como instância superior de correção da diferença entre particularidade e universalidade.

Efetivamente, Hegel considera a moderna sociedade civil como um agitado campo de batalha, onde determinados interesses se confrontam com outros e isto significa que ela para além de não poder ultrapassar as suas particularidades, tende também a paralisar e minar o seu próprio pluralismo. Neste quadro, Hegel afirma que a sociedade civil não pode permanecer nem tornar-se “civil” sem a ordenação política do Estado.

Hegel (1770-1831)81 foi influenciado pelo contexto do Estado Prussiano em que viveu. Não foi radical, nem subversivo e não tinha que recear a publicação de seus pontos de vista que até meados de 1819, muitos deles, eram mesmo posições oficiais do monarca e de seus ministros, mas diametralmente opostos aos pontos de vista dos conservadores prussianos nalgumas das mais vastas e sensíveis questões políticas do dia. Hegel foi fascinado pelas obras de Spinoza, Kant e Rousseau, assim como pela Revolução Francesa que a viu como absolutamente radical: ela foi tão violenta e implantou um reinado de terror que consumiu a liberdade conquistada com tanta penúria. Acreditando que a história progride aprendendo com seus erros, somente depois desta experiência, e precisamente por causa dela, acreditava poder-se postular a existência de um Estado Constitucional de cidadãos livres, que consagrasse um poder organizador do governo racional e os ideais revolucionários da liberdade e da igualdade.

81