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3. Atuação de Associações de “Tipo Religioso” e de “Tipo Político”

3.3. A União Nacional dos Camponeses

A União Nacional dos Camponeses (UNAC) foi fundada em 1987 por camponeses e camponesas organizados em cooperativas e associações dispersas pelos vários pontos do país. Registada em 1994, tem como objetivo geral representar os camponeses e suas organizações de modo a assegurar os seus direitos políticos, económicos e socioculturais.

A UNAC defende o fortalecimento dos camponeses, sua participação na definição de políticas públicas e estratégias de desenvolvimento visando garantir a soberania alimentar. As mudanças políticas e económicas que se operaram em 1987 (transição do sistema socialista

98Boaventura Veja reconhece que as estratégias de pressão contra as resistências do governo não são efetivas. Contudo, afirma que a Plataforma tem utilizado a comunicação social para mostrar o que a sociedade tem feito, pontos que foram aceites ou rejeitados pelo governo para que o público esteja bem informado a respeito. Outra estratégia, diz ele, podia ser a contra-argumentação, revelação das resistências e incumprimentos do governo no momento eleitoral como forma de penalizá-lo nas urnas. Mas a Plataforma não a usa por ser um método contrário à sua missão de moralização. Para terminar, o entrevistado afirmou que a Plataforma trabalha com organizações seculares apenas nas matérias concordantes (boa governação, transparência, desenvolvimento, entre outras afins). Os assuntos que podem gerar discordância (por exemplo, adultério, aborto, perspetivas feministas, homossexualidade, entre outros, na revisão do código penal) não são debatidos entre a Plataforma e as organizações seculares da sociedade civil pois, assim procedendo evitam-se conflitos de valores que redundariam em confronto direto.

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para o capitalista) motivaram o surgimento desta organização ao se notar que era fundamental defender a classe camponesa no contexto de uma economia liberalizada.

Nas mais de duas décadas de existência, a UNAC tem promovido o desenvolvimento da autoestima e unidade dos camponeses na luta por uma sociedade mais justa, próspera e solidária. A luta pelo reconhecimento por parte da sociedade e do Estado sobre o importante papel dos camponeses constitui uma das agendas centrais da UNAC. Esta fomenta o diálogo e ações conjuntas em volta de políticas que contribuam para que as famílias camponesas tenham condições necessárias para realizarem as suas atividades socioeconómicas e contribuírem no processo de desenvolvimento nacional.

Consciente de que as políticas neoliberais que alicerçam a globalização exigem uma luta global de todas as camadas desfavorecidas e vítimas dessas políticas, a UNAC tornou-se membro da via campesina, movimento internacional de camponeses, e colabora com fóruns nacionais como o Grupo Moçambicano da Dívida, Fórum Mulher, Plataforma Nacional da Sociedade Civil – G20. Ao nível internacional é membro da Organização Cooperativista dos Países da Língua Portuguesa (OCPLP) e mantém contactos permanentes com a Confederação das Organizações de Agricultores da África Austral.

Em diversas intervenções públicas a UNAC tem feito as seguintes exigências ao governo: a) Criação de espaço para a continuada participação dos camponeses nas decisões de

políticas de desenvolvimento. Concretamente, exige assentos específicos para os camponeses

nos conselhos de consulta aos vários níveis dos órgãos de Estado. A UNAC exige que o camponês não só tenha assento como deva ser efetivamente escutado e de maneira crescente sejam valorizadas as suas contribuições nos processos de formulação de políticas, lembrando que eles são cerca de 80% da população nacional;

b) Estabelecimento de políticas e legislação que estanquem qualquer tentativa de

privatização e mercantilização da terra, água e outros recursos naturais, assegurando-se seu

efetivo e continuado controlo pelas comunidades camponesas. Para casos onde a entrega para exploração privada de recursos naturais seja contemplada, exige-se a legislação da partilha de receitas resultantes desses recursos pelas comunidades locais;

c) Incremento de investimentos para construção, manutenção e reabilitação de

infraestruturas de transporte e comunicação nas zonas rurais, de modo a ser assegurada a

transitabilidade durante todo o ano, fator que contribuiria para o aprovisionamento agrário e escoamento da respetiva produção, em ambiente de acesso à informação assídua sobre disponibilidade, preçários e oportunidades;

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d) Estabelecimento e implementação de programas permanentes de divulgação, prevenção,

cuidados e tratamentos contra o HIV/SIDA a todos os níveis e sem discriminação;

e) Estabelecimento urgente de crédito agrário e outras formas de financiamento da produção familiar, incluindo seguros de produção que respondam à realidade camponesa, em especial a das zonas áridas e de baixo potencial. Chama-se especial atenção para a necessidade de programas de incremento e melhoria do acesso financeiro que inclua comparticipação nos custos dos instrumentos e insumos de produção;

f) Aumento dos investimentos na investigação e transferência de tecnologias agrícolas

relevantes para a realidade camponesa, de baixo custo e sustentáveis, estabelecendo-se para

o efeito mínimos de alocação orçamental, que acautelem a proporção do Orçamento Geral do Estado e/ou do PIB. Exige-se igualmente que seja assegurado um desenvolvimento de tecnologias com caráter participativo ao mesmo tempo que se procure consolidar sua extensão pública com cobertura para 100% do território nacional, que bem precisa de métodos modernos e integrados de trabalho.

Outras exigências contínuas da UNAC são a segurança, estabilidade e soberania alimentar das comunidades camponesas, sua educação, incluindo a alfabetização de adultos e o ensino vocacional apropriado para o desenvolvimento das zonas rurais. Enfim, como movimento, a UNAC afirma que os camponeses lutam para garantir maior e melhor intervenção institucional dentro da plataforma da sociedade civil, dos conselhos de consulta e dos observatórios de desenvolvimento a todos os níveis.

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Em entrevista que nos concedeu, Ismael Ossumane, presidente honorário da UNAC, começou por afirmar que uma das grandes valências da união consiste em ter muitos associados desde que se constituiu como movimento no período da independência. Em abril de 1987 foi realizado um seminário organizado pela União Geral das Cooperativas de Maputo com o apoio financeiro da Fundação Friedrich Erbert para discutir o futuro das cooperativas dado o regime da economia de mercado que se introduzia. Pela primeira vez um seminário era organizado sem a orientação do partido e do Estado.

Pretendia-se analisar o modelo de cooperativa a seguir e, no intervalo do seminário, surgiu a ideia da formação do movimento nacional de cooperativas. Formou-se um núcleo para tratar do estabelecimento duma organização de cobertura nacional e trabalhou-se nessa base durante seis anos. O núcleo visava a formação, difusão da ideia e, sobretudo, a possibilidade de autonomia na formação das organizações posto que elas não eram proibidas de se constituírem e nem obrigadas a isso.

Em 1990, com o novo contexto constitucional, começou a discussão sobre o que o movimento cooperativo faria. O que seria essa cooperativa e como se chamaria. A Fundação Fredrich Erbert foi quem depois de financiar o seminário, financiou o núcleo e os projetos para o estabelecimento da organização.

Em 1991/2, a pedido da UNAC, juristas transformaram as ideias dos camponeses em Estatutos da organização. Foi nesse contexto que se decidiu pelo nome União Nacional de Camponeses. Ela visava encorajar os camponeses a organizarem-se em cooperativas ou associações que lutassem pela busca de sua autonomia.

Em abril de 1993, com a presença do então presidente da República, Joaquim Chissano, como um dos convidados, dá-se a Assembleia Constituinte. Nela aprovou-se o emblema, elegeram-se os órgãos sociais e submeteram-se os documentos ao Ministério da Justiça para efeitos de legalização da instituição.

Em Moçambique, a UNAC já tinha uma história de trabalho no processo de desenvolvimento, facto que levou a que, com o fim da guerra, muitas organizações não- governamentais procurassem seu apoio e colaboração. A população começou a olhar para a UNAC como organização de apoio apesar de ela ser, efetivamente, uma organização de camponeses e não de apoio aos camponeses. Porém, entre o discurso e a prática havia sempre a perceção da população camponesa de que a UNAC os apoiava.

De acordo com o entrevistado, a UNAC é uma associação que funciona como movimento de camponeses. A sua filosofia é a de um movimento. Não tem delegações mas sim uniões

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nacionais, provinciais, distritais e organizações de base. Nas províncias onde não há união provincial existe o núcleo provincial que é uma fase de preparação para a união.

Em 1997 veio à Maputo uma delegação do Movimento sem Terra do Brasil (MST) para falar com a UNAC. Foi a filosofia de luta do MST que mais inspirou a UNAC, dado que ela veiculava a ideia de que os camponeses precisavam de lutar não só para subsistir como também para o estabelecimento de políticas mais adequadas. Por intermédio do MST a UNAC integrou a Via Campesina e foi a primeira a fazê-lo em África. Em 2008 a 5ª Conferência da via campesina foi realizada em Maputo.

Para o nosso entrevistado, os camponeses têm sempre a sua atividade com ou sem apoio de agências doadoras. Daqui resulta a autonomia do movimento. Mesmo que tal apoio cessasse, as bases comunitárias teriam sempre as suas atividades em curso. A sede da UNAC é uma espécie de coordenadora das atividade das várias uniões de base. A sede pode até ficar afetada com a falta de financiamento para dinamizar suas atividades, mas lá na base os camponeses seguem sempre com o seu habitual trabalho sobre a terra.

“Para pedidos de apoio a UNAC é quem submete o projeto ou programa e cabe aos

doadores financiarem-no ou não, sem deturpações dos princípios do movimento. A UNAC olha para os camponeses como cidadãos e não como “meros produtores”, e acredita que quando se transforma a agricultura numa mercadoria entra-se no mundo das especulações. A ideia do termo “camponês comercial” que algumas agências veiculam é perigosa quando se sabe que ela pode significar um empresariado agrícola que opte por exportar produtos apesar de haver gente morrendo de fome” (extrato da entrevista com Ossumane, UNAC).

De acordo com o entrevistado, para discutir políticas internacionais, a UNAC serve-se da sua filiação à Via Campesina. Neste quadro, a UNAC realiza várias reuniões e debates para introduzir o camponês na componente política da cidadania; capacidade de formação de recursos humanos em parceria com o MST para dominar políticas que servirão para maior mobilização e consciencialização. Assim, procurando evitar o confronto direto, a UNAC opta pela consciencialização de modo que os membros reconheçam sozinhos a necessidade de sustentar os princípios do movimento. Nos termos do entrevistado, “a UNAC dá prioridade à capacidade de gestão das diferenças de forma harmoniosa”.

A UNAC participou na elaboração da Lei da Terra e na sua divulgação. O debate ocorreu em 1995/6 e a Lei foi aprovada em 1997. O período em que decorreu o debate foi favorável dado que, no entendimento de Ossumane, o capitalismo não estava tão enraizado como está atualmente e nem os dirigentes estavam tão comprometidos com o “neoliberalismo”. Para o

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entrevistado, uma coisa é ter os chefes a lutarem por uma causa sendo eles “isentos” e outra é tê-los envolvidos no sistema capitalista, eles próprios já como “empresários”.

Em relação a Lei de Terras, Ossumane afirma que a sua implementação é um grande desafio pois, o capital já penetrou e vê-se uma constante luta pela terra na qual, de forma sofisticada, as multinacionais e outros empresários incluindo muitos políticos usurpam terras, umas vezes de forma subtil outras de forma descarada.

Ossumane mostra que a ideia da “terra como propriedade do Estado” tem sido aproveitada para enriquecimento dos líderes influentes que, sem pagar nada, ficam com extensas terras aráveis que as usam para negociar com o capitalismo, fazendo-se acionistas que entram com suas propriedades de terra como capital de investimento. Assim, para o entrevistado, a luta pela terra passa pela luta pelas políticas que favorecem a efetiva ocupação por parte do campesinato. E aqui ele entende que uma pergunta se faz premente: “faz sentido dizer que a terra é do Estado e que os camponeses têm direito ao seu acesso, uso e aproveitamento quando na verdade dos factos não lhes são facultados meios, infraestruturas, condições estruturais e capacidades institucionais para o efetivo gozo desse direito?”.

Enfim, o entrevistado assegurou que a UNAC é um movimento que procura mudanças profundas no modelo de desenvolvimento e que isso passa pela reformulação do neo- liberalismo. Para ele, a sociedade civil tem conseguido realizar mudanças mas entende que há necessidade da se fazer muito mais. Nesta ordem de ideias, para Ossumane, a UNAC e a sociedade civil em geral podem tirar proveito da “crise neo-liberal” e operar transformações em prol do desenvolvimento humano através duma crítica crucial ao sistema vigente.