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Como o dissemos, este terceiro eixo vai discutir as condições de possibilidade de adaptação do conceito de sociedade civil do quadro teórico da filosofia política da Europa ocidental para efeitos de uso como instrumento teórico-empírico na análise de contextos específicos da realidade africana. Especificamente, procura-se verificar i) se a sociedade civil é tão necessária na prática e na teoria política e social empírica como pareceu ser na filosofia política; ii) se a operacionalização da sociedade civil para propósitos de pesquisa empírica e formação de políticas é possível; e iii) se a ideia da sociedade civil é útil na teoria empírica que procura analisar a relação entre Estado e sociedade, incluindo o processo de políticas públicas conducentes ao desenvolvimento.

Figura 2.1. Localização do continente africano no mapa-mundo

De acordo com Harbeson (1994), precisamos primeiro verificar a questão da necessidade, ou seja, procurar saber até que ponto há demonstração da necessidade de aperfeiçoamento do conceito na economia política e teoria do Estado-sociedade? Tudo parece indicar que análises contemporâneas da relação Estado-sociedade e economia política em África identificaram implicitamente o lugar da sociedade civil sem, no entanto, reconhecer ou explorar a natureza desse lugar e o que o deveria ocupar. Outras análises revelaram não examinadas questões de fronteira entre a política, por um lado, e a economia e sociedade, por outro, e não incluíram uma variável como a da sociedade civil que pudesse dar enfoque, definir e tentar explicar essas questões. Aqui se levantam três pontos que merecem a nossa atenção.

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O primeiro consiste em saber se grupos dentro da sociedade civil estão explicitamente engajados na tentativa de definir e redefinir as regras do jogo político. Vários estudos dão uma resposta afirmativa. Widner (1994) examina as circunstâncias que conduzem as associações a se engajarem em tais processos; Tripp (1994) verifica que as mulheres na Tanzânia procuram conscientemente reescrever as regras do jogo de maneira a torná-las mais neutras do ponto de vista das relações de género; MacGaffey (1994) examina as dimensões políticas da economia informal do então Zaire, focalizando a resistência a um regime cuja legitimidade popular era quase inexistente; Negrão (2003) demonstra como a sociedade civil influenciou o sentido da Lei da Terra em Moçambique; Kasfir (1994) mostra a manutenção das regras do jogo pelos camponeses ugandeses numa situação de iminente colapso do Estado; Gyimah-Boadi (1994) e Rothchild & Lawson (1994) apontam para os efeitos da oposição do Estado a tal comportamento, enquanto Callaghy (1994) apresenta receios sobre a possibilidade da dinâmica da sociedade civil vir a sufocar a capacidade do Estado no exercício de implementação e gestão de políticas socioeconómicas.

O segundo remete para outras correntes dentro do pensamento político contemporâneo que parecem disputar a possibilidade da sociedade civil na filosofia política, pelo questionamento da existência de distintas secções públicas nas quais a ideia de sociedade civil repousa88. A essência do argumento é de que a ideia da sociedade civil implica um grau de racionalidade, autonomia e comunidade que é escondida pela penetração e consequência do exercício de poder na sociedade contemporânea. Tal posição pode por extensão parecer negar a base filosófica da sociedade civil na teoria empírica. Porém, como vimos, Callaghy (op. cit.) teme que a sociedade civil sufoque o setor público, cuja autonomia ele julga essencial para a administração de reformas económicas sólidas, enquanto Rothchild & Lawson (op. cit.) e Gymah-Boadi (op. cit.) notam evidências de fenómeno oposto.

Por sua vez, MacGaffey (op. cit.) e Kasfir (op. cit.) lidam com situações onde o setor público tornou-se largamente irrelevante por razões de colapso ou ilegitimidade do Estado, mas ambos verificam no terreno evidências de determinação para manter ou restabelecer elementos do setor público. E Guyer (1994) aponta para possível fracasso da fronteira entre sociedade civil doméstica e atores internacionais que influenciam a forma da vida política na Nigéria mas não o colapso do setor público em si.

88 Tal posição pode se encontrar em Dana R. Villa, “Postmodernism and the Public Sphere”, American Political Science Review 86, 3 (setembro, 1992): 712-771

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O terceiro ponto diz respeito a utilidade operacional da teoria da sociedade civil no plano do mundo real de formação e implementação de políticas relativas a formação do Estado, desenvolvimento socioeconómico e relações Estado-sociedade. Mais específica e fundamentalmente, a questão é a de saber até que ponto talhar o lugar da sociedade civil na teoria contemporânea ilumina o nosso entendimento sobre as relações entre a política, a sociedade e a economia em África.

Igualmente, levanta-se a questão de saber até que ponto pode uma adequada operacionalização do conceito de sociedade civil influenciar o Estado e o processo de política de forma benéfica. As respostas a estas questões pressupõem saber se a sociedade civil está ou não intimamente ligada à prática e à filosofia política ocidental sendo, portanto, inaplicável às circunstâncias africanas; e se a ideia de sociedade civil está ou não tão mergulhada na análise normativa de maneira a ser de pouca ou nenhuma utilidade na teoria empírica ou na análise prática de situações concretas no terreno.

Do debate sobre a matéria, observa-se que o conceito de sociedade civil pode nos ajudar a compreender a natureza das relações entre sociedade, economia e política, mas o seu reconhecimento empírico não pode ipso facto conduzir a resultados que qualquer um considere como benéficos. Nesta ordem de ideias vale salientar que a sociedade civil pode deixar de existir em certas circunstâncias, pode ser fraturada e anárquica em outras e a sua existência pode contar para resultados afortunados e/ou desafortunados.

Embora todos os autores acima mencionados tenham operacionalizado o conceito de sociedade civil ao examinarem os respetivos contextos africanos, Bratton (1994) foi mais explícito acerca dos elementos dessa definição operacional. Na sua análise, ele identifica e dá importância aos recursos de tipo organizacional, ideológico e material, usados pelas associações que, em Kenya e Zâmbia, procuravam reformas políticas.

A revisão de alguns trabalhos sobre a relação Estado-sociedade em África sugere implicitamente o reconhecimento da importância da sociedade civil na explicação de como e por que as áreas políticas e socioeconómicas afetam uma a outra89. Todavia, nem toda referência ao termo “sociedade civil” conveio o reconhecimento da sua importância singular para a análise teórica e empírica das relações Estado-sociedade, nem muitos desses estudos deram enfoque às questões empíricas fundamentais, como as de saber em que medida os processos da sociedade civil podem ou são afetados por pressões internacionais para a

89 Uma discussão sobre esta matéria encontra-se em Michael Bratton, “Beyond the State: Civil Society and

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mudança política e/ou económica, e que formas de estruturas políticas e socioeconómicas podem resultar do trabalho dos processos particulares da sociedade civil.

Haberson (op. cit.) apresenta três abordagens distintas, apesar de coincidentes nalguns aspetos, que prevalecem na análise da relação Estado-sociedade na África contemporânea. A primeira postula um desafortunado grau de autonomia do Estado em relação a sociedade e a economia, facto que parece negar em termos empíricos a mútua interdependência entre o Estado e a sociedade.

A segunda hipotiza o facto, a inevitabilidade, e/ou a desejabilidade da captura de um pelo outro. Em ambas instâncias a necessidade da interdependência estrutural é antecipada ou pela dominação do Estado aos elementos da sociedade ou o inverso. Implicitamente, o argumento de base nestes casos é de que a captura do poder do Estado por membros da sociedade civil ou do poder da sociedade civil pelos dirigentes do Estado antecipa questões da legitimidade do Estado e o hipotizado papel da sociedade civil naqueles processos.

A Terceira abordagem é melhor caracterizada como a contínua interdependência, intermediação e desenvolvimento paralelo do Estado e da sociedade. Chazan tem sido um expoente desta conceptualização. Ela retratou relações fluidas, mutáveis, complexas e multifacetadas entre Estados e sociedades africanas que variam largamente em resposta aos vetores de tempo, espaço e circunstância90.

Neste prisma, faz-se mister reconhecer a existência de processos pelos quais regras de jogo são formadas para governar a gestão das fronteiras entre o comportamento político e social, fator que constitui uma importante dimensão da sociedade civil dado que, por exemplo, é através da sociedade civil que a questão da defesa dos direitos individuais contra a interferência do Estado é tratada.

A proposição de que a ideia de sociedade civil permite-nos entender mais claramente a natureza das interações e interdependências entre a sociedade e o governo em países do continente africano toma em consideração o facto de que,

i) a sociedade civil não deve ser concebida como sinónimo da sociedade em geral, na medida em que ela é considerada como uma dimensão da sociedade colocada à parte pelas suas distintivas funções políticas;

90 Para detalhes vide: Donald Rothchild and Naomi Chazan (eds) (1988), The Precarious Balance: State and Society in Africa, Boulder, Westview Press.

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ii) essas distintivas funções políticas são entendidas como contendo aspetos “horizontais” e “verticais”, sendo os horizontais caracterizados pelas relações sociais dos atores uns com os outros dentro da sociedade, e os verticais pelas relações entre a sociedade e o governo;

iii) a especificação dos contornos da sociedade civil carrega consigo uma perspetiva diferente sobre a natureza e funcionamento da sociedade em geral. Assim, a ideia de sociedade civil atribui funções políticas à própria sociedade à parte de, e como fundamento para, o governo; e

iv) a especificação da natureza e operações da sociedade civil assume-se como sendo derivadas de definições de política, sociedade e formação do Estado, baseadas em comportamentos e processos, como foi acima exposto.

Finalmente, a ideia de sociedade civil num contexto africano implica que o processo de estabelecimento da identidade cultural não pode ser divorciado dos processos de reforma política e económica. Sociedade civil, entendida como regras básicas do jogo e processos de sua definição, deve ser derivada da base dos valores socioculturais.

Um claro corolário é que discernir as conceções africanas do Estado e sociedade não traduz simplesmente uma mera questão “diplomática” nem somente uma agradável visão de longo prazo. Outrossim, ela é essencial para o entendimento do curso do desenvolvimento político e socioeconómico (Haberson, 1994: 15).

A advocacia de Bratton (op. cit.) sobre a necessidade de uma definição neutra da sociedade civil que não prejulgue a natureza das relações entre o Estado e a sociedade insinua a realidade empírica de que a relação por vezes conflituosa e adversária da sociedade civil com o governo pode contrastar com outras ocasiões em que a sociedade civil se encontra em concórdia e até mesmo cooptada pelo governo. Gramsci (op. cit.) parece ter visto esta possibilidade na essência da definição da sociedade civil.

Ora, como vimos, o entendimento de Marx (op. cit.), ao contrário de Gramsci, sustenta que é a sociedade civil que coopta o Estado, com últimas consequências revolucionárias. Por seu turno, Hegel (op. cit.) ao reconhecer que tanto a sociedade civil como o Estado não são completamente autónomos e autossuficientes, deixa-nos ficar com a possibilidade de análise das influências recíprocas entre tais instituições. Nesta linha, parece situar-se Alexis De Tocqueville (op. cit.) ao afirmar que organizações da sociedade civil constituem meios de difusão de valores democráticos nos cidadãos, podendo desta forma tanto favorecer interesses do governo como limitar possíveis tendências para a tirania.

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