• Nenhum resultado encontrado

2. Sociedade Civil em África – uma Realidade Operacional

2.3. Um Exemplo da Dinâmica da Sociedade Civil Zambiana

A terceira ilustração remete-nos para o Congresso dos Sindicatos da Zâmbia (Zambia Congress of Trade Unions – ZCTU) que, de acordo com Lifuka & Habasonda (2008), desenvolveu uma atitude crítica e ideias alternativas sobre a governação, postura que foi mal recebida pelo governo, mas não impediu que o ZCTU, liderado por Frederick Chiluba, fosse progressivamente assumindo o papel de oposição política nos anos 1980.

Em 1990, um movimento de vários grupos de interesse unidos pelo desejo de criar uma democracia multipartidária contou com a colaboração do movimento das mulheres, dos trabalhadores, das associações de estudantes, das organizações da media, dos agricultores, dos empresários, das universidades e das igrejas. Este bloco dinamizou a Zâmbia e apoiou o Movimento para a Democracia Multipartidária (Movement for Multiparty Democracy -

111

MMD) na bem-sucedida pressão no sentido da consagração do regime democrático multipartidário na Constituição da República.

Uma transição política pacífica permitiu ao recém-formado MMD assumir o governo com o Presidente Chiluba em 1991, facto que abriu espaço para uma ampla participação e ativismo da sociedade civil. Formado a partir de um forte movimento civil que se debateu com muitas adversidades, o MMD deu, inicialmente, uma grande importância à liberdade de expressão e de associação e as organizações da sociedade civil deixaram de ser obrigadas a agir de acordo com as agendas políticas governamentais.

Com um espaço incomparavelmente maior para a sociedade civil e uma alteração das prioridades dos doadores nos anos noventa, o número daquelas organizações aumentou drasticamente, sobretudo a partir de 1996. O clima político passou a ser muito mais propício às atividades das organizações da sociedade civil, à cooperação entre si e com outras instituições, incluindo as governamentais. Neste quadro, a sociedade civil zambiana tornou-se um agente catalisador, criando espaço para diálogo político entre vários grupos de interesse através da educação cívica, exercendo pressão e usando diversos mecanismos para estreitar as diferenças entre os governantes e os governados.

Ao longo dos anos, tornou-se evidente que as organizações da sociedade civil conseguiram impor a sua presença ao poder governamental, em particular aquelas que lidam com temas de natureza política como o constitucionalismo, os Direitos Humanos e a governação. Tendo a atuação das OSC passado a ser regulada pelo Decreto-Lei das Sociedades, uma vez registadas, o governo tinha muito pouco poder para impedir tais organizações de exprimirem o seu descontentamento político. Tentativas de anular o registo de algumas delas deram origem a disputas judiciais em que os tribunais decidiram a favor da sociedade civil.

A crescente influência política das OSC levou muitos partidos políticos a considerá-las como usurpadoras do papel da oposição no panorama governativo do país. Eles alegavam que aquelas organizações estavam a assumir protagonismo em matérias que não lhes dizia respeito, tal como o processo de reforma da Constituição (Lifuka & Habasonda, 2008: 388).

Esta disputa entre o governo e a sociedade civil, que se foi desenrolando desde 2003, deu origem à união de todos os partidos políticos em torno do Centro para o Diálogo Interpartidário da Zâmbia (Zambia Center for Interparty Dialogue), com o intuito de excluir do processo de reforma constitucional a maior parte das OSC. Contudo, estas últimas não desarmaram e, a título de exemplo, sabe-se que certas organizações elaboraram um documento que apontava questões importantes, tendo sido algumas destas refletidas no esboço da Constituição que foi submetida para discussão na Conferência Nacional Constitucional.

112

O Poverty Reduction Strategic Paper (PRSP) que também era da responsabilidade do governo, não deixou de receber contributos duma rede de organizações da sociedade civil que se preparou para o efeito. Foi neste quadro que o Centro Jesuíta de Reflexão Teológica criou a rede Sociedade Civil pela Redução da Pobreza (Civil Society for Poverty Reduction), tendo produzido um “PRSP - Sombra” enquanto o governo produzia um PRSP oficial. Ambos os documentos acabaram por ser integrados no PRSP final.

Da mesma forma, a Fundação para o Processo Democrático (Foundation for Democratic Process) produziu um “Decreto-Lei Eleitoral – sombra” durante o processo das reformas eleitorais em 2005-2006, e outra organização não-governamental – Centro para a Resolução Construtiva de Disputas da África Austral (Southern African Centre for the Constructive Resolution of Disputes) preparou uma “proposta” de Decreto-Lei da Ordem Pública, dado que o que vigorava era visto como um conjunto de leis draconianas que limitavam a efetivação do direito constitucional de associação.

Na mesma esteira, as associações da media também criaram documentos contendo propostas de leis sobre as relações entre os meios de comunicação social e o governo. Segundo Lifuka & Habasonda (op.cit.), apesar de não o admitir publicamente, o governo tem vindo a utilizar alguns desses documentos produzidos pela sociedade civil.

Em termos de transparência e prestação de contas (accountability), a Transparência Internacional na Zâmbia (TIZ) tem produzido anualmente índices de suborno e rankings de corrupção. O movimento das mulheres tem influenciado as leis e políticas destinadas a promover a igualdade do género. Ademais, este movimento foi bem-sucedido na pressão sobre os partidos políticos para que aceitassem mais mulheres candidatas, como forma de aumentar o seu número nos processos de tomada de decisão.

Digna de referência é também a forma como a sociedade civil da Zâmbia pressionou o governo a rever ou a renegociar acordos de desenvolvimento pouco favoráveis, assinados com companhias mineiras na época das privatizações. O argumento foi de que com os acordos existentes as companhias mineiras não davam o retorno esperado, particularmente nos impostos e no pagamento dos direitos de exploração.

Como resultado da pressão exercida pela sociedade civil, no orçamento de Estado de 2008, o Ministério das Finanças e do Planeamento Nacional anunciou que o governo iria introduzir um novo regime fiscal e regulador de forma a criar uma distribuição mais equitativa da riqueza mineral entre o governo e as companhias mineiras.

Por fim, temos o caso da petição inconstitucional pelo terceiro mandato presidencial. Em 1996 a Constituição foi alterada e estabeleceu um limite de dois mandatos para a presidência

113

da República. Esta alteração teve o acordo da maior parte dos zambianos, uma vez que estava em conformidade com as práticas democráticas mediante as quais os líderes não se mantêm no poder indefinidamente e estão sujeitos à mudança por via de eleições.

Entretanto, ao longo do percurso, mesmo antes das eleições de 2001, surgiu o interesse em alterar a Constituição para permitir ao Presidente Chiluba candidatar-se a um terceiro mandato. Um bem financiado esquema foi orquestrado com o objetivo de influenciar a opinião pública a permitir ao MMD a alteração da Constituição.

As organizações da sociedade civil opuseram-se veementemente à campanha pelo terceiro mandato. Os meios de comunicação social independentes publicaram artigos de opinião e editoriais contra as movimentações pelo terceiro mandato, e a campanha sofreu outro grande percalço quando alguns membros ilustres do MMD se opuseram a ela.

Figura 3.5. Protestos contra o presidente Chiluba em Lusaka.

O comité executivo do MMD na província de Lusaka rejeitou publicamente a proposta e a este facto seguiu-se outra rejeição pública por parte dos 21 membros do Parlamento, onde se incluíam o vice-presidente e alguns ministros. Estes altos membros do partido uniram-se à sociedade civil e participaram em comícios nos bairros das principais cidades. Apesar de a polícia ter tentado evitar e perturbar os comícios, a assistência popular era vasta.

Lançou-se uma contra campanha ativista de faixas verdes. Todos os que se opunham ao terceiro mandato usavam a faixa verde durante os seus afazeres, inclusivamente nos escritórios e nas lojas. Concordou-se também que pelas 17 horas das Sextas-feiras todos os condutores iriam buzinar, e os que não conduzissem soprariam apitos.

Com o aumento da pressão, o presidente acabou por dissolver o Executivo, nomeou um novo governo e acedeu às exigências da sociedade civil. Num discurso à nação, ele justificou as campanhas como sendo normais numa sociedade democrática e afirmou que em nenhum

114

momento tinha ordenado a qualquer membro do partido para avançar com a campanha pelo terceiro mandato. No mesmo discurso garantiu que não voltaria a concorrer nas eleições (Idem). Este acontecimento significou uma categórica expressão das organizações da sociedade civil na sua capacidade de influenciar o poder político.

Neste prisma, consideramos que a instrumentalização política da sociedade civil de que Chabal fala pode ser concebida em termos de processos dinâmicos de negociação nos quais algumas OSC entendem apoiar certas elites políticas em função de interesses em jogo. Todavia, como atestam este e outros exemplos acima, tais processos de negociação e cooperação não significam que a sociedade civil perde sua autonomia relativa.

Como vimos, num momento as organizações da sociedade civil podem cooperar como “cooptadas”, mas num outro desenvolvimento podem rebelar-se e passar a negociar como “oponentes”. Aliás, alguns entrevistados afirmaram que o desafio das organizações da sociedade civil reside em saber se, como e quando envolver o Estado e outros grupos de interesse nas questões relacionadas com a governação e os Direitos Humanos. As respostas das várias organizações a esta pergunta variam desde aquelas que se opõem terminantemente a qualquer tipo de discussão ou negociação com as autoridades estatais até aquelas que consideram valer a pena atividades de lobby e envolvimento com os órgãos do Estado.

De acordo com Sachikonye (op.cit.), entendemos que há sempre oportunidades, desafios, constrangimentos e dilemas a serem negociados em qualquer tipo de relacionamento com as estruturas estatais, especialmente na conjuntura democrática. Nestes termos, a profunda polarização e o extremar de posições acabam por representar obstáculos que impossibilitam qualquer entendimento. De facto, a história mostra que não há mudanças sem algum tipo de cedência, negociação e envolvimento entre as partes.