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2. Sociedade Civil em África – uma Realidade Operacional

2.6. Um Exemplo da Dinâmica da Sociedade Civil Angolana

Os contornos da relação entre o poder político hegemónico e a emergente sociedade civil em Angola são apresentados por Vidal (2008), segundo o qual tudo começa quando as organizações da sociedade civil assumiram um papel de relevo no fornecimento de serviços sociais, tendo ganho uma legitimidade acrescida para se constituírem em vozes críticas contra a falta de empenho e preocupação do governo para com os setores sociais, que se encontravam numa situação de grave degradação e rutura. Estas organizações foram documentando e publicitando várias situações de pobreza extrema e pressionando as instituições do governo para uma mudança de atitude. Os media privados e internacionais começaram a ecoar estas exigências e os partidos políticos da oposição juntaram-se às vozes críticas da sociedade civil.

Esta onda de criticismo interno e externo começou a tornar-se cada vez mais incómoda para o poder político, que reagiu de forma estruturada em meados da década de 1990, investindo fortemente numa “sociedade civil paralela”, integrada por organizações tais como a fundação do presidente (Fundação Eduardo dos Santos – FESA) criada em 1996 e, mais tarde, o Fundo de Solidariedade Social Lwini da primeira-dama Ana Paula dos Santos, ambas pretendendo reabilitar a imagem política do presidente, seletivamente provendo serviços sociais da responsabilidade do Estado, usando para esse fim fundos geralmente provenientes dos bónus sociais pagos pelas empresas petrolíferas internacionais (Vidal, 2008).

As organizações “paralelas” passaram a ter um acesso privilegiado e facilitado às estruturas governamentais nacionais e provinciais, assim como ao setor público e privado da economia (ambos dominados claramente pelo partido maioritário e subjugados à lógica política patrimonial). As outras organizações da sociedade civil que não se enquadravam nestes parâmetros passaram a encontrar dificuldades crescentes de atuação na proporção direta do seu afrontamento ao governo (Vidal, 2008: 25/6).

Como igualmente notou Calundungo (2008), para além da tentativa de limitar o crescente criticismo através do controlo do espaço da sociedade civil que lhe escapava, do aliciamento das OSC autónomas e da criação das suas próprias organizações “paralelas”, as entidades governamentais, como forma de retaliação, levantaram problemas ao trabalho das organizações que insistiram na manutenção da sua autonomia.

As dificuldades foram aumentando à medida que o governo foi se sentindo mais confortável em relação à comunidade internacional, sobretudo, depois da derrota da UNITA e com a alta do preço do petróleo, factos que lhe deram suficiente margem de manobra para

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começar a impor também restrições à atuação das organizações internacionais mais críticas e aliadas das OSC nacionais “politicamente incómodas” (Calundungo, 2008: 84).

Figura 3.8. Polícia de choque numa manifestação pública da sociedade civil em Angola

Como resultado da nova situação, Macedo (2008) observa que começou a assistir-se a uma crescente tendência de apoio seletivo de muitas organizações da sociedade civil internacional a parceiros nacionais com base em critérios que não eram primeiramente determinados pelo mérito do trabalho realizado, mas antes pela ação “politicamente aceitável”. Assim, as OSC com uma atitude passível de ser considerada como incómoda para o governo passaram a ser preteridas no acesso aos financiamentos externos, sendo apodadas de “radicais” ou “problemáticas” ao contrário das “menos problemáticas” ou “não radicais”, as preferidas para efeitos de financiamento interno e externo.

Para Macedo, ainda que nunca assumido e veementemente negado pelas organizações internacionais, verifica-se, cada vez mais, este apoio seletivo às OSC nacionais menos problemáticas do ponto de vista político. Esta prática é um facto que não pode ser assumido porque os próprios financiadores das organizações internacionais a atuar em Angola e a opinião pública internacional no Ocidente condenariam tais práticas.

Do ponto de vista do regime, esta tática, ainda que camuflada, acaba por ser bem mais inteligente no alcance dos objetivos pretendidos de enfraquecimento político da sociedade civil, aumentando a probabilidade de sucesso da velha estratégia de cooptação. Neste quadro, assumindo-se que as organizações da sociedade civil em Angola têm um défice de capacidade de atuação em rede (de forma sustentável, contínua, de médio e longo prazo, em questões interligadas), quer a nível nacional quer com suas congéneres regionais e internacionais, surge a ideia da estratégia de reforço da sociedade civil denominada constructive engagement que defende a necessidade de união das suas organizações para falarem a uma só voz nas suas

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relações de interação com as estruturas do Estado/governo (Idem). O argumento que sustenta esta perspetiva é o de que a sociedade civil é fraca porque está dividida.

Para Vidal (2008), sem especificar que a união entre as organizações da sociedade civil deve ser estabelecida com base em princípios comungados por todos os membros (o exemplo da defesa intransigente dos Direitos Humanos) e que não se deve sobrepor ou substituir às OSC individualmente consideradas, nem tomar decisões fora do âmbito da defesa dos seus princípios estatutários de base, a união rapidamente poderá transformar-se em unificação, homogeneização, uniformização e subordinação de vozes mais críticas.

Algumas organizações e ativistas contestam o argumento da união da sociedade civil aliado à estratégia de constructive engagement. Para estas, dado que as estruturas governamentais consideram que as organizações da sociedade civil se devem abster de um envolvimento em questões políticas, aquela estratégia traduzir-se-á, a médio prazo, numa dupla característica: uma postura cada vez mais técnica, assistencialista e apolítica por parte de todos os “legítimos parceiros do governo”; uma homogeneização de discursos e posturas que favorece a subjugação das organizações independentes através da diluição das suas posições individuais em estruturas coletivas, federativas e representativas, alargadas, e mais facilmente cooptáveis e manipuláveis pelo poder político (Idem).

Foi neste contexto que, no entender do autor, as organizações da sociedade civil dividiram- se, grosso modo, entre, por um lado, aquelas que defendem uma postura que pode denominar- se de “reformista”, na medida em que acreditam que podem reformar as instituições a partir de dentro, colaborando com as estruturas governamentais em vários projetos, ainda que isso possa significar algumas cedências em termos de postura crítica pública. Por outro, aquelas que consideram que o engajamento com estruturas governamentais deve ser muito seletivo, cauteloso e baseado em princípios de respeito pelos direitos humanos e salvaguardando-se sempre o direito de opinião e expressão política de cada organização da sociedade civil.

As organizações que recusam a perspetiva do governo que pretende uma sociedade civil “parceira” de tipo assistencialista, apolítica e subordinada para ajudar na prestação de serviços sociais em múltiplos micro-projetos dispersos defendem uma abordagem de parceria efetivamente participativa e interventiva no sentido de ajudar a construir uma sociedade mais democrática, justa e transparente. Elas consideram, lógica e naturalmente, que a defesa dos direitos humanos é política por natureza, lidando com questões de interesse público que afetam a vida de toda a população (Vidal, 2008).

Não obstante os constrangimentos resultantes do desafio de contraposição ao poder político governante, Vidal (2008) nota que, comparativamente aos primórdios dos anos noventa,

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quando se iniciou o processo de transição para o multipartidarismo, realizaram-se algumas conquistas na área dos Direitos Humanos em Angola que é preciso consolidar para prosseguir na abertura de espaços e evitar a sempre iminente possibilidade de regressão. Na mesma linha, as análises de Pacheco (2008), Kama (2008) e Abreu (2008) notam, para além das várias limitações, exemplos de força, protagonismo e potencial da sociedade civil angolana no processo de mudança política rumo a uma efetiva democratização do país.