• Nenhum resultado encontrado

2 A HUMANIDADE É SUJEITO DE DIREITO?

A Convenção responde a esta questão no artigo 137º nº 2 ao estabelecer que “Todos os direitos sobre os recursos da Área pertencem à humanidade em geral, em cujo nome actuará a Autoridade. Esses recursos são inalienáveis. No entanto, os minerais extraídos da Área só poderão ser alienados de conformidade com a presente Parte e com as normas, regulamentos e procedimentos da Autoridade”. Deste artigo resulta, claramente, que a Humanidade enquanto entidade abstracta é representada pela Autoridade, isto é, embora lhe sejam reconhecidos “direitos”, ela é naturalmente incapaz258 para o seu exercício, pelo que é representada por uma organização internacional - a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos - da qual serão membros todos os Estados Parte da Convenção. Esta Organização internacional é uma novidade em relação às demais preexistentes, pois tem competência territorial sobre um espaço - a Área - sem que essa competência tenha pertencido originariamente aos Estados membros. O facto do artigo referido, aparentemente, atribuir à Humanidade a titularidade de certos direitos, não parece suficiente para concluir pela personalidade internacional da Humanidade, pois esta não lhe é atribuída por um tratado ou pelo costume. Por sua vez, a Autoridade é um mero representante e não a encarnação da Humanidade, devido ao facto de só representar a comunidade contemporânea, ao passo que a Humanidade abrange também o futuro, por isso, sobre ela recai a obrigação de transmitir os recursos tão completos quanto possível para as gerações vindouras259. De qualquer modo, à Autoridade é confiada uma função representativa, sendo retirada uma tal função aos Estados, isoladamente ou em grupo, por mais amplo e geograficamente representativo que seja o grupo. Só a Autoridade, como entidade singular, pode representar a Humanidade, “mas a eficácia dessa representação simbólica será tanto maior quanto a universalidade, nomeadamente interestadual, for assegurada”260. Assim sendo, a Autoridade é a organização por intermédio da qual os Estados Partes da Convenção, “de conformidade com a presente Parte, organizam e controlam as actividades na Área, particularmente com vista à gestão dos recursos da Área” - artigo 157º nº 1. Os Estados devem, pois, agir apenas de acordo com as regras da Convenção,

257 KISS, Alexandre-Charles - La Notion de Patrimoine Commun de l'Humanité, cit., p. 113 258

A este propósito, BLANC ALTEMIR, Antonio, in op. cit., p. 91 escreve: “mas se a Humanidade tem capacidade de gozo, se pode ser beneficiária de uma série de direitos que o ordenamento internacional lhe atribui sob a forma de titularidade sobre um património, de modo algum pode defender-se que a Humanidade tenha na actualidade capacidade de exercício de direitos, isto é, capacidade para exercer directamente os direitos que lhe são reconhecidos”.

259 DUPUY, René-Jean - La Zone, Patrimoine Commun de l'Humanité, cit., p. 501 e KISS, Alexandre-Charles - La

Notion de Patrimoine Commun de l'Humanité, cit., p. 129.

260

tendo em linha de conta o benefício da Humanidade no seu conjunto. Esta ideia da gestão do património comum da Humanidade em benefício da Humanidade no seu todo, abrangendo também as gerações vindouras, configura “o património comum da Humanidade como um trust planetário”, face ao qual cada geração assume os poderes deveres de um trustee e cujos destinatários são as gerações futuras261.

Do que se disse e não obstante haver vozes em sentido contrário262, consideramos que a Humanidade não é um verdadeiro sujeito de Direito Internacional263, embora reconheçamos que,

261 Este elemento introduz no regime do património comum da Humanidade a ideia do fideicomisso - à totalidade

de componentes da comunidade internacional, em cada momento, está confiada a administração de uma herança para que reverta, em condições de plena utilidade, a favor dos membros futuros dessa comunidade - PUREZA, José Manuel, op. cit., p. 182. Este Autor não refere abertamente a natureza jurídica da Humanidade, mas do seu texto, pensamos que se pode concluir que a considera como sujeito de Direito Internacional, nomeadamente na seguinte frase “... o regime do património comum da humanidade opera um fraccionamento entre o detentor da posse útil sobre o espaço comum (ou sobre recursos de interesse essencial para a comunidade internacional no seu todo) e uma titularidade global sobre a propriedade social mundial. Em boa verdade, o património comum da humanidade é uma forma de titularidade social mundial que se consubstancia na internacionalização qualificada desses espaços comuns (ou desses recursos), sobre os quais os Estados terão eventualmente a posse útil e a gestão, detendo a Humanidade, como um todo intra e inter-geracionalmente integrado, sob diversas formas, um direito de controlo social” - p. 179.

Arvid Pardo nas suas intervenções fez, várias vezes, alusão à noção de trust. Esta noção contém em si a ideia de gerir um bem em benefício de outrem, neste caso a Humanidade, e também de o conservar para as gerações vindouras. Daí a sua aplicabilidade ao fundo do mar e seus recursos, pois estes, enquanto património comum da humanidade, devem ser objecto de uma gestão racional, isto é, a sua gestão deve ter presente a ideia do aproveitamento máximo, por um lado, e da conservação para o futuro, por outro.

O trust, enquanto instituto de direito privado, teve as suas origens na Common Law inglesa da Idade Média. Posteriormente, foi elaborado e aplicado pelo Direito americano, que o define como “uma relação fiduciária em relação à propriedade, sujeitando a pessoa que detém a propriedade a deveres equitativos de tratar a propriedade para o benefício de outra pessoa”. Entre nós, a noção de fideicomisso consta do artigo 2286º do Código Civil e é - “... a disposição pela qual o testador impõe ao herdeiro instituído o encargo de conservar a herança, para que ela reverta, por sua morte, a favor de outrem”. O trust é criado por um acto formal escrito, acto esse que especifica os poderes e os deveres de quem o deve administrar, isto é, do trustee. Este gere uma propriedade em benefício de outrem e deve fazê- lo no interesse exclusivo do beneficiário, deve agir com espírito de lealdade absoluta, daí o termo fiduciário. Segundo o Direito americano, o trust pode ser constituído em benefício de uma comunidade e mesmo para o bem geral.

Ao lado do trust de Direito Privado há, também, o public trust, de origem romana e depois desenvolvido pela

Common Law inglesa. Segundo esta doutrina, o Estado é trustee dos recursos naturais que gere no interesse do público

em geral, recursos esses que ficam sujeitos a algumas limitações, a saber, livre utilização pelo público, inalienabilidade e conservação tendo em vista o futuro. Dado estas limitações o public trust assemelha-se à noção de domínio público - KISS, Alexandre-Charles - La Notion de Patrimoine Commun de l'Humanité, cit., 129-134.

262 Entre outros, NICIU, Martian I. - Le Patrimoine Commun de l'Humanité en Droit International Maritime et en

Droit Spatial (Quelques considérations). Annuaire de Droit Maritime. Nantes: Centre de Droit Maritime / Université de Nantes. ISSN 1259-4962. XIII: (1995), p. 9-16; MARCOFF, Marco G. - Traité de droit international public de

l’éspace. Fribourg, Suisse, Editions universitaires, 1973, p. 272; PÉPIN, Eugène - L’Humanité et le droit des gens.

Annuaire de droit maritime et aérien. Tome VII: (1983), p. 11-16; MATEESCO-MATTE, Mircea - Au trentième

anniversaire de l’ère spatiale. Paris : Editions A. Pedone, vol. XII, 1987, p. 281; DUPUY, René-Jean - Humanité et

Environnement. Annuaire de Droit Maritime et Aéro-Spatial - Études en Hommage au Professeur Mircea Mateesco- Matte. Nantes: Centre de Droit Maritime et Aérien - Université de Nantes. ISSN 0297-7508. Tome XII: (1993), p. 493-496. COCCA, Aldo Armando, in The Law of Mankind: Ius Inter Gentes Again. Annuaire de Droit Maritime et Aéro Spatial - Études en Hommage au Professeur Mircea Mateesco-Matte. Nantes: Centre de Droit Maritime et Aérien - Univerité de Nantes. ISSN 0297-7508. XII: (1993), p. 510, escreve: “a Humanidade é um sujeito passivo em instrumentos internacionais relativos a crimes, mas em matéria de desenvolvimento social, progresso científico e tecnológico está a tornar-se num sujeito activo”. Cita como exemplos dos primeiros várias convenções que regulam certos crimes que qualificam de crimes contra a Humanidade, como, entre outras, a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio (1948); do segundo grupo cita a Declaração sobre o Progresso e Desenvolvimento Social (1962), a Declaração sobre a Promoção entre a Juventude do Ideal da Paz, Respeito Mútuo e Compreensão

entre as Pessoas (1965), e a Declaração sobre o Progresso e Desenvolvimento (1969). Mais adiante, na p. 531 o Autor considera que a Humanidade e o indivíduo adquiriram indubitavelmente a qualidade de novos sujeitos de direito internacional e cita uma série de autores que têm a mesma opinião.

263 Também não consideram a Humanidade como sujeito de Direito Internacional, entre outros, CUNHA, Joaquim

da Silva e PEREIRA, Maria da Assunção do Vale - Manual de Direito Internacional Público. Coimbra : Livraria Almedina, 2000. ISBN 972-40-1301-4, p. 55-57: “... apesar de toda a aparente preocupação com o bem-estar dos povos, com o progresso social e cultural, com a protecção aos subdesenvolvidos, são, como no Direito Internacional, no quadro do equilíbrio de forças, os interesses das grandes Potências que dominam a resolução, ou não, dos problemas internacionais ... fala-se muito em Aldeia Global ... a tendência para a universalização das relações internacionais intensificou-se, o que aparenta conduzir à conclusão de que a Sociedade Internacional está a evoluir para formar uma comunidade ... A instituição progressiva da Sociedade Internacional não implicou a deslocação dos Estados do seu lugar na mesma Sociedade. Esta continua a ser descentralizada e semi-anárquica ... continua, pois, a ser fundamentalmente uma sociedade interestadual, apesar de cada vez mais se falar na crise do Estado ...”; OTERO, Paulo, op. cit., in p. 60-63 considera que a Humanidade não pode ser titular de um direito de propriedade colectiva, por duas razões “1º - a comunidade humana ou a humanidade não são sujeitos de direito, isto é, não têm personalidade jurídica, consequentemente, não são susceptíveis de serem titulares de quaisquer direitos; 2 - a própria ideia de um direito de propriedade colectiva não parece adequada à caracterização do património comum da humanidade, uma vez que o artigo 137º nº 1 exclui a apropriação da Área por qualquer Estado ou outra pessoa colectiva, consequentemente, não pode existir qualquer direito de propriedade sobre aquele objecto - ele é juridicamente, inapropriável. O facto dos artigos 136º e 137º aparentemente atribuírem à humanidade a titularidade de certos direitos, não parece suficiente para concluir a personalidade internacional da humanidade e inerente titularidade das referidas posições jurídicas.” Para sustentar a sua posição argumenta que “não existe norma atribuidora de personalidade jurídica internacional à humanidade, o que é tanto mais estranho quanto a Convenção atribui expressamente personalidade internacional à Autoridade (art. 176º); se se admitisse a titularidade de certos direitos à humanidade, ter-se-ia de reconhecer que a mesma sofria de uma incapacidade genérica de exercício dos seus direitos; ...”. Por fim, conclui que “não possuindo personalidade internacional, atribuir a titularidade da Área e seus recursos à humanidade é uma verdadeira ficção jurídica”. De seguida sustenta que “na realidade, não é a humanidade que surge como sujeito de direito internacional, mas sim a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (artigo 176º). Consequentemente, só esta pode ser titular de direitos e estar adstrita a obrigações, ainda que ficcionadamente se diga agir como representante da humanidade. No entanto, isto não significa que a Autoridade seja titular de um direito de propriedade sobre a Área. Tal como qualquer pessoa jurídica, ela encontra-se abrangida pela proibição do artigo 137º nº 1 ... o património comum da humanidade funciona como substrato territorial de um sujeito de direito internacional - a Autoridade ... a titularidade do citado espaço confere à Autoridade, simultaneamente o ónus de gerir e explorar os recursos da Área em benefício de toda a humanidade, tendo sempre em vista a sua conservação para as gerações futuras. Em síntese, a Autoridade exerce sobre a Área uma titularidade onerada, funcionando o património comum da humanidade como o substrato territorial ... da Autoridade”; DINH, Nguyen Quoc, [et al.] - Direito Internacional Público. 4ª ed. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkien, 1999. ISBN 972-31-0855-0, embora intimamente considere que a comunidade internacional não é e dificilmente será sujeito de Direito Internacional, reconhece que ela tem alguns direitos. Assim, a p. 367 e s. escreve: “Profundamente dividida em mais de cento e oitenta Estados, muitas vezes antagónicos, a comunidade internacional não aparece em condições de assumir direitos e deveres internacionais e, ainda menos, de a eles recorrer eficazmente através da reclamação internacional, o que representa o critério mínimo de personalidade jurídica internacional ... os direitos de que beneficia a comunidade internacional, são ainda limitados e só podem ser exercidos pelos Estados ou por organizações internacionais sujeitos tradicionais de Direito Internacional. Dotada de uma inegável capacidade de gozo, a comunidade internacional não beneficia ainda de uma capacidade de exercício directa dos seus direitos e obrigações, não pode prevalecer-se deles directamente. Também nenhuma responsabilidade jurídica lhe compete directamente. Contudo, parece legítimo ver aqui os primeiros esboços de uma nova situação, na qual a “comunidade” internacional poderia e deveria ser reconhecida como sujeito de Direito Internacional. Se forem tomadas medidas para garantir a representação objectiva do conjunto de Estados numa estrutura institucional (como a Autoridade) torna-se impossível distinguir a comunidade internacional da organização internacional que age em seu nome. Mas somente na medida em que a personalidade jurídica da comunidade internacional se afirmasse em oposição à da organização internacional que exprime a sua vontade, poderia admitir-se que esta comunidade dispõe de uma certa capacidade própria de exercício de direitos. No estado actual do Direito Internacional, a comunidade internacional não pode passar de um sujeito menor de direito, sujeito menor, em primeiro lugar, pela amplitude da sua capacidade de gozo, sujeito menor, sobretudo, porque se torna necessário recorrer à forma de uma organização internacional e porque subsiste o risco de uma recuperação das competências da comunidade internacional pela colectividade dos Estados membros desta organização”. De modo semelhante, MERCURE, Pierre-François in L'Échec des Modèles de Gestion des Ressources Naturelles Selon les Caractéristiques de Concept de Patrimoine Commun de l'Humanité, cit., p. 57, escreve: “... pode ser interessante estabelecer uma comparação com o direito interno. A Humanidade é, na comunidade internacional dos Estados, em direito internacional, aquilo que a nação é no Estado, no direito interno. A Humanidade

dado o processo de humanização em curso, visível na concepção planetária do homem, a emergência do conceito jurídico da Humanidade vai acabar por ser uma realidade, aliás à semelhança do que se passou com o indivíduo. Usando as palavras de Alejandro J. Rodríguez Carríon264, “se para alguns autores o conceito de Humanidade não é um autêntico conceito jurídico que implique subjectividade internacional, antes mera inspiração de normas jurídicas, as normas positivas do Direito Internacional parecem apontar para algo mais. Com efeito, se a primeira concepção encontra fundamento nos textos jurídicos em que ambiguamente se fala de interesse da Humanidade, noutros textos jurídicos posteriores, a Humanidade aparece como autêntica entidade a que se atribuem direitos que ultrapassam o âmbito estrito da inspiração jurídica ... como afirmou Piquemal ‘a tomada de consciência de uma solidariedade da espécie humana implicaria a introdução da Humanidade como novo sujeito de Direito Internacional’. Deve advertir-se que a afirmação de tal subjectividade é ainda juridicamente tímida, mas a tendência é tão poderosa que não pode ser afastada liminarmente”.

A ideia de o fundo do mar como património comum da Humanidade é produto do tempo. Com efeito, nas décadas de sessenta e setenta assistiu-se à emergência do Direito Internacional Social (com o aparecimento de novos conceitos e novas “filosofias” como a Nova Ordem Económica Internacional) e à “deposição” do Direito Internacional clássico, mas nas décadas que se seguiram inverteu-se essa tendência, no sentido, de novo, das concepções liberais. A Parte XI da Convenção de Montego Bay, negociada nos anos setenta e o Acordo de Implementação de 1994, são um exemplo claro do que acaba de se dizer, sem, no entanto, pôr em causa o conceito de património comum da humanidade e a sua aplicação ao fundo do mar. Naquela altura, não faltou quem defendesse a subjectividade internacional da Humanidade e a sua titularidade sobre os recursos da Área.

como a nação é uma entidade abstracta e indivisível e a sua representatividade na ordem jurídica internacional só se pode fazer através da comunidade dos Estados como a da nação só se pode fazer através dos Estados na ordem jurídica interna. A Humanidade não exige que neste caso se lhe atribua uma personalidade jurídica própria; a protecção dos seus interesses, o cumprimento das suas obrigações estão assegurados pela comunidade dos Estados. Muito embora no direito positivo actual a comunidade internacional dos Estados não possua direitos tão largos como os dos Estados, nada impede que se lhe atribua uma personalidade jurídica e de a considerar como um sujeito de direito internacional tendo uma personalidade jurídica como os Estados, mesmo que essa personalidade jurídica seja considerada como estando menos “afirmada” que a destes últimos. Se consideramos a Humanidade como uma noção que ... agrupa a espécie humana numa dimensão transtemporal, deveremos deduzir que é difícil atribuir-lhe personalidade jurídica, ... Na falta de um tratado ou de normas costumeiras que confiram personalidade jurídica à Humanidade, pode defender-se que a comunidade internacional dos Estados está investida da missão de assegurar uma representatividade à Humanidade”.

264 RODRÍGUEZ CARRÍON, Alejandro J., op. cit., p. 78 e 178. Este Autor situa-se, assim, numa posição segundo

a qual, embora não possa aceitar-se formalmente que a Humanidade seja sujeito de Direito Internacional, a tendência nesse sentido começa a ser tão forte que não pode ser rejeitada de raiz. É essa, também a posição de ALBIOL BIOSCA, Glória de - El Régimen Jurídico de los Fondos Marinos Internacionales. Prólogo de Manuel Diez De Velasco Vallejo. Madrid : Editorial Tecnos, S.A., 1984. ISBN 84-309-1053-0, p. 74.

Usando palavras de Juan Carrillo Salcedo265 “as noções de Humanidade e comunidade266 não devem ser entendidas nem como novos sujeitos de Direito Internacional, nem como realidades que tenham vindo substituir os Estados e a soberania estadual, antes devem ser vistas como marcos de referência que simbolizam a progressiva tomada de consciência de interesses colectivos, comuns, que vão para além dos interesses nacionais e que nos situam, por isso, perante a intensificação e o aprofundamento de uma das funções próprias do Direito Internacional desde as suas origens: a dimensão da cooperação, como realidade distinta da outra função básica do Direito Internacional, a coexistência entre Estados soberanos”.

De modo diferente do que até agora se escreveu, Kiss, ao comparar o estatuto dos Estados no sistema do direito nacional e o estatuto da Humanidade como um todo no Direito Internacional, afirma: “... em cada sistema de Direito nacional, o Estado tem uma personalidade jurídica que tem o seu domínio, o seu património: os seus direitos e as obrigações resultam do Direito que ele próprio cria ... Não se vê porque razão a situação haveria de ser diferente no Direito Internacional, “direito das gentes” como dantes era conhecido, isto é, Direito da Humanidade no seu todo”267.

A dificuldade nesta comparação, como refere Kiss, reside no facto de enquanto que a comunidade nacional está incorporada num Estado, a expressão jurídica da comunidade internacional não é tão evidente. No entanto, lançando mão do instituto da representação as dificuldades ficam minoradas. Essa representação é atribuída a uma organização internacional, a Autoridade, criada para representar a Humanidade e para agir por sua conta, quer através da sua própria actividade quer através do controlo efectivo das actividades dos seus membros. Este foi, precisamente, um dos aspectos em que havia diferentes interpretações do princípio do património comum da humanidade entre os países desenvolvidos e os países em vias de desenvolvimento. Enquanto que para os últimos só a Autoridade deveria ter poderes para actuar em nome da Humanidade, para os primeiros também os Estados, individualmente considerados, tinham o direito de actuar como agentes da Humanidade.

Quer o conceito de “Humanidade” no seu conjunto quer a expressão “património comum” conduzem à conclusão que “Nenhum Estado pode reivindicar ou exercer soberania ou direitos de soberania sobre qualquer parte da Área ou seus recursos; nenhum Estado ou pessoa jurídica, singular ou colectiva, pode apropriar-se de qualquer parte da Área ou dos seus recursos. Não serão

265

Citado por RODRÍGUEZ CARRÍON, Alejandro J., op. cit., p. 509. Este Autor refere como elementos que apontam no sentido da emergência de uma subjectividade internacional da Humanidade a existência de normas de jus

cogens, a existência de obrigações erga omnes ou a possibilidade de uma actio popularis perante determinados factos

internacionais ilícitos.

266COMBACAU, Jean e SUR, Serge, op. cit., p. 7, afirmam que a comunidade internacional está longe de ter um

grau de homogeneidade política que permita dar-lhe uma organização institucional distinta dos Estados.

Outline

Documentos relacionados