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4 MALTA E O PATRIMÓNIO COMUM DA HUMANIDADE

O objectivo da declaração de Malta, segundo Pardo, “era substituir o princípio da liberdade dos mares pelo princípio do património comum da humanidade, de modo a preservar a maioria do espaço oceânico como um espaço comum acessível à comunidade internacional. O espaço comum ‘alto mar’, todavia, não permaneceria aberto aos caprichos de utilizadores e exploradores; seria submetido a uma administração internacional. A administração internacional do espaço comum e a gestão dos seus recursos para o bem comum distinguem o princípio do património comum do princípio tradicional do alto mar como res communis ... Para Malta, o princípio do património comum estava conceptualmente ligado à ideia de soberania funcional, distinta do conceito tradicional de soberania territorial”96.

Malta, ao apresentar a sua proposta no sentido de o fundo do mar e dos oceanos97 ser considerado património comum da humanidade, nada disse sobre o sentido da expressão

94 A Resolução 2340 (XXII) está transcrita in NORDQUIST, Myron H. (Ed.) - United Nations Convention on

the Law of the Sea - 1982: A Commentary. Dordrecht/Boston/Lancaster : Center for Oceans Law and Policy -

Martinus Nijhoff Publishers, 1985. ISBN 90-247-3145-3, p. 161 e 162.

A aprovação desta Resolução representa o início de uma dinâmica que iria evoluir em três vertentes: institucionalização do Comité - a Resolução 2467 (XXIII), de 21 de Dezembro de 1968, criou uma estrutura permanente: o Comité sobre a Utilização Pacífica dos Fundos do Mar e dos Oceanos Além dos Limites da Jurisdição Nacional; alargamento da sua composição, de 35 membros passou para 42, depois para 86 e, por fim, para 91; e ampliação das suas competências - do estudo dos problemas suscitados por Malta, em 1967, relativos ao fundo do mar até à sua conformação como organismo preparatório da III Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar - PUREZA, José Manuel, op. cit., p. 193.

95 A questão da desmilitarização foi tratada separadamente pelo Comité das Dezoito Nações sobre o

Desarmamento, tendo levado à conclusão do Tratado sobre a Proibição da Colocação de Armas Nucleares e de outras Armas de Destruição em Massa nos Fundos dos Mares e Respectivo Subsolo, assinado em Londres, Moscovo e Washington, em 11 de Fevereiro de 1971, tratado que entrou em vigor em 18 de Maio de 1972 - o texto do tratado pode ver-se em BRICEÑO BERRÚ, José Enrique, op. cit., p. 181-186.

96

Citado por PUREZA, José Manuel, op. cit., p. 177.

97 Na altura em que Malta apresentou a proposta e em que foi aprovado o item contendo o mandato do Comité Ad

Hoc, uma grande parte das margens continentais era ainda considerada fora dos limites da jurisdição nacional e era,

por isso, natural que fosse usada a expressão “fundo do mar e dos oceanos”, em vez de apenas fundo dos oceanos. No entanto, alguns Estados afirmaram que esta indicação separada deveria ser interpretada como uma referência a regimes separados para o fundo dos mares fechados e semi-fechados e para o fundo dos oceanos. Um outro ponto divergente era a expressão ”sob o alto mar” - alguns Estados afirmaram que como o alto mar está fora do mar territorial, a área

“património comum da humanidade”, por isso apareceram várias interpretações. No entanto, mais tarde, em resposta ao Secretário Geral sobre as funções e deveres do Comité Ad Hoc, Malta afirmou que o seu objectivo era: “A preservação do carácter internacional do fundo do mar e do oceano e respectivo subsolo sob o alto mar para além dos limites da jurisdição nacional actual, não como res omnium communis, susceptível de ser usada para qualquer fim e cujos recursos são aproveitados indiscriminadamente e de modo competitivo, mas através da aceitação pela comunidade internacional do princípio de que tais vastas áreas do nosso planeta têm um estatuto especial como património comum da humanidade e, por isso, deviam ser reservadas exclusivamente para fins pacíficos e administradas por uma autoridade internacional em nome e em benefício de todos os povos e das gerações presentes e futuras”98.

Segundo Malta, deste entendimento resultava que o património comum pode ser usado, mas não possuído, é possível o uso comum e o acesso comum, mas não a propriedade comum. Pardo achava preferível usar o termo herança comum (common heritage) em vez de propriedade (common property), porque o termo propriedade implica o direito de usar e abusar (ius utendi et

abutendi)99. A Humanidade não foi aqui concebida como uma comunidade de proprietários mas como uma comunidade de participação. Esta universalidade enfatiza o envolvimento, activo e passivo, de todos na gestão do espaço comum e dos seus recursos e não a igual titularidade de zonas de poder exclusivo. A soberania territorial sobre espaços geograficamente delimitados cedeu

sob ele não está sujeita à soberania do Estado, sendo-lhe aplicável o princípio da liberdade dos mares - U. N. Doc. A/C.1/PV:1594, paras. 76-79 (Equador), citado por MAHMOUDI, Said, op. cit., p. 122.

98 U. N. Doc. A/AC. 135/1, p. 29, citado por MAHMOUDI, Said, op. cit., p. 123. 99

A propósito do sentido do conceito “comum” BASLAR, Kemal, in The Concept of the Common Heritage of

Mankind in International Law. The Hague / Boston / London : Martinus Nijhoff Publishers, 1998. Developments in

International Law, vol. 30. ISBN 90-411-0505-0, p. 41-52 escreve: “Têm sido usados três conceitos jurídicos semelhantes a propósito dos espaços internacionais: res communis omnium, res extra commercium e res communis

humanitatis”. Res communis omnium é um conceito de origem romana, de origem individualista, isto é, não é um

conceito orientado no sentido da comunidade, antes promove o auto-interesse de cada um e de todos os membros da comunidade. Res extra commercium foi usada no contexto do fundo do mar e do espaço exterior e significa que estas regiões estão sujeitas a uma liberdade comum de aproveitamento, sem exercício de soberania nacional. Por último, res

communis humanitatis é uma expressão que, apesar de latina, não tem origem no Direito Romano, antes foi concebida

por juristas latino americanos. Era uma expansão do princípio da res communis e visava evitar um vácuo jurídico surgido depois do aparecimento do conceito de património comum da humanidade. A diferença entre res communis

omnium e res communis humanitatis é a natureza jurídica dos recursos naturais in situ. Isto é, o último considera a

humanidade como o dono dos recursos naturais e com personalidade jurídica. É a partilha dos recursos que distingue esta expressão das anteriores.

Segundo o Autor, “o conceito de património comum da humanidade, como parte da gestão dos recursos internacionais, é um conceito mais funcional que territorial. O conceito não é necessariamente relativo à propriedade da área em que se encontram os recursos, antes tem a ver com o uso dos recursos para o benefício da humanidade. A história do conceito mostra que o principal problema no contexto do ‘comum’ tem sido a identificação da justiça entre ricos e pobres, entre o presente e o futuro ... A ‘comunidade’ da terra não é suficiente sem regulamentação para evitar o sobreuso. Uma interpretação orientada para o mercado resultará numa curta prosperidade económica para as gerações presentes, mas resultaria, também, numa sobreexploração à custa dos interesses das gerações futuras. Sob o regime da

res é quase impossível materializar o interesse do património comum da humanidade e equilibrar os interesses das

gerações presentes e futuras. É necessário uma teoria de justiça ao usar os recursos naturais de importância vital para a humanidade”.

face à soberania funcional, ou seja, à jurisdição sobre usos determinados, possibilitando a justaposição de jurisdição nacional e jurisdição internacional sobre o mesmo espaço. Comunidade de participação significa, assim, desvalorização da relação jurídica de propriedade, sob a forma de apropriação soberana individual pelos Estados: o património comum da humanidade pode ser usado, dentro dos parâmetros do regime, mas não pode ser apropriado100. Por outro lado, o uso de “património comum” exige um sistema equilibrado de gestão, diferentemente de res communis que pode ser gerida pelos Estados ou pessoas individualmente considerados. O património comum implica, também, uma partilha equitativa dos benefícios, com especial atenção para os interesses e necessidades particulares dos países em vias de desenvolvimento, diferentemente da res communis. Neste tratamento preferencial ou, dito de outra forma, nesta desigualdade compensatória dos países em vias de desenvolvimento está subjacente o conceito da Nova Ordem Económica Internacional. Por último, o património comum implica a reserva do fundo do mar apenas para fins pacíficos e a reserva dos seus recursos para as gerações vindouras.

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