• Nenhum resultado encontrado

3.8 – O PRINCÍPIO DA UTILIZAÇÃO DA ÁREA PARA FINS PACÍFICOS 299 ARTIGO 141º

Segundo o artigo 141º da Convenção, “A Área está aberta à utilização exclusivamente para fins pacíficos por todos os Estados, costeiros ou sem litoral, sem discriminação e sem prejuízo das outras disposições da presente parte”. Trata-se de um princípio enunciado de um modo muito vago que está implícito na noção de património comum da humanidade, pois não pode admitir-se que o que pertence à Humanidade, enquanto unidade indivisível, seja utilizado para fins não pacíficos, pois um tal uso comportaria um perigo de destruição da coisa comum300. A utilização para fins pacíficos do fundo do mar era uma preocupação de todos os Estados, na década de sessenta, em plena guerra fria, pois receava-se que os Estados mais desenvolvidos, os que dispunham de tecnologia mais avançada, pudessem usar o fundo do mar para fins de carácter militar, instalando bases militares, criando desse modo um clima de medo e de incerteza. Este problema preocupava também as maiores potências, nomeadamente os Estados Unidos da América e a URSS. No Comité de Fundos, em 1968, a URSS propôs a proibição da utilização dos fundos marinhos para fins militares301. Diferentemente, os Estados Unidos da América, na mesma altura, propunham apenas a limitação dos armamentos302. A Tanzânia, numa proposta de emenda à proposta soviética303, propôs que a Assembleia Geral declarasse que o fundo dos mares e dos oceanos não deviam ser utilizados por nenhum Estado ou grupo de Estados, para fins militares de nenhum tipo.

Além disso, a Tanzânia propunha que a Comissão dos Dezoitos (Comissão de Desarmamento304)

estudasse, com carácter de urgência, a proibição da utilização dos submarinos nucleares no fundo dos mares e dos oceanos, bem assim como a proibição de fortificações militares e bases de mísseis. As propostas da Tanzânia inspiraram o projecto de tratado que, em Março do ano seguinte, a URSS apresentou.

Em 18 de Março de 1969, a URSS apresentou, nas Nações Unidas, um projecto sobre a questão em apreço. Esse projecto, no artigo 1º, previa: “A utilização para fins militares do fundo

299 Ibidem e p. 68-73; TSAREV, V. F. - Peaceful uses of the seas. Marine Policy. Oxford: Butterworth & Co

(Publishers) Ltd. Number 1: (April 1988), p. 153-159.

300

BLANC ALTEMIR, Antonio, op. cit., p. 75.

301 Doc. A/AC.135/20 - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas: projecto de resolução sobre a proibição da

utilização com fins militares dos fundos marinhos e oceânicos fora dos limites das águas territoriais, in NACIONES UNIDAS - Asamblea General - Informe del Comite Especial ..., 1968, cit., p. 55.

302 Doc. A/AC.135/24 - Estados Unidos da América: projecto de resolução contendo um enunciado de princípios

relativos aos fundos oceânicos profundos, idem, p. 57-59.

303

Doc. A/AC.135/26 - República Unida da Tanzânia: emendas ao projecto de resolução que figura no documento A/AC.135/20, idem, p. 60.

304 A Comissão de Desarmamento, em 1969, alargou o número de elementos para 26, passando a chamar-se

dos mares e dos oceanos e do respectivo subsolo é proibida para além dos limites da zona marítima de 12 milhas dos Estados ribeirinhos. É proibido colocar, no fundo do mar e dos oceanos e no seu subsolo, aparelhos com armas nucleares ou qualquer outro tipo de armas de destruição em massa, de aí estabelecer bases militares, instalações, construções, fortificações ou outros elementos destinados a fins militares”. Logo de seguida, em 22 de Maio, os Estados Unidos da América apresentaram, também, um projecto, cujo artigo 1º dispõe: “1 - Cada Estado Parte do presente Tratado compromete-se a não instalar ou colocar armas nucleares fixas ou outras armas de destruição em massa fixas ou plataformas de lançamento fixas para tais armas, sobre, em ou sob o fundo dos mares e dos oceanos além de uma banda estreita determinada como está previsto no artigo II do presente Tratado e adjacente às costas de um Estado”. O nº 2 do mesmo artigo, por sua vez, estabelece: “Cada Estado Parte no Tratado compromete-se a abster-se de provocar, encorajar ou facilitar actividades interditas por este artigo, ou de participar nas mesmas”. Finalmente, no ano de 1970, os dois Estados apresentaram um projecto conjunto, que veio a ser aprovado pela Assembleia Geral - Resolução nº 2660 (XXV), de 7 de Dezembro de 1970. Esta Resolução continha o Tratado Sobre a Proibição de Colocação de Armas Nucleares e de Outras Armas de Destruição em Massa no Fundo dos Mares e dos Oceanos e Respectivo Subsolo305, aberto a assinatura em 11 de Fevereiro de 1971, em Moscovo, Londres e Washington e que entrou em vigor em 18 de Maio de 1972. Este tratado assume grande importância por ter sido assinado apenas dois meses após a aprovação da Declaração de Princípios que, no número 5, estabelece: “A Área estará aberta à utilização exclusivamente para fins pacíficos por todos os Estados, quer costeiros quer sem litoral, sem discriminação, de acordo com o regime internacional a ser estabelecido”. Por sua vez, o nº 8 da mesma Declaração prevê: “A Área será reservada exclusivamente para fins pacíficos, sem prejuízo de outras medidas que se acordem ou se possam acordar no contexto das negociações internacionais efectuadas no âmbito do desarmamento e que sejam aplicáveis a uma zona mais ampla. Serão celebrados, logo que possível, um ou mais acordos internacionais para aplicação efectiva deste princípio e para dar um passo no sentido da exclusão dos fundos marinhos e oceânicos e respectivo subsolo da corrida aos armamentos”.

Voltando de novo ao artigo da Convenção, aí refere-se que o fundo do mar só pode ser utilizado para “fins pacíficos”. Mas o que deve entender-se por “fins pacíficos”? Os países em vias de desenvolvimento, a URSS e os países socialistas consideravam que a expressão excluía toda e qualquer actividade de carácter militar; os países desenvolvidos consideravam que a expressão

305 Este Tratado apenas se refere às armas nucleares e outras armas de destruição em massa, por isso, não

contempla a completa desmilitarização, ao não incluir as armas convencionais - BLANC ALTEMIR, Antonio, op. cit., p. 97. O Tratado vem transcrito in BRICEÑO BERRÚ, José Enrique, op. cit., p. 181-186.

“fins pacíficos” não era incompatível com utilizações de carácter militar desde que fossem possíveis à luz da Carta das Nações Unidas306 (direito de auto defesa e actos de defesa militar) e do Direito Internacional. Esta última interpretação prevaleceu na Convenção, como pode ver-se pela leitura do artigo 301º incluído nas “Disposições Gerais”, que estabelece: “No exercício dos seus direitos e no cumprimento das suas obrigações nos termos da presente Convenção, os Estados Partes devem abster-se de qualquer ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou de qualquer outra forma incompatível com os princípios de direito internacional incorporados na Carta das Nações Unidas”307. Por último, há a salientar que noutras disposições da Convenção se faz referência à utilização pacífica: o artigo 88º sobre o alto mar estabelece: “O alto mar será utilizado para fins pacíficos”; o artigo 143º, sobre a investigação científica marinha no nº 1 prevê: “... deve ser realizada exclusivamente para fins pacíficos ...”; o artigo 147º, no nº 2, prescreve que “As instalações, ..., devem estar sujeitas às seguintes condições: d) serem utilizadas exclusivamente para fins pacíficos”; o artigo 155º nº 2, a propósito da Conferência de Revisão, estabelece: “... Deve também assegurar a manutenção dos princípios ... relativos ... à utilização da Área exclusivamente para fins pacíficos ...”; o artigo 240º relativo à investigação científica, prevê: “a) a investigação científica marinha deve ser realizada exclusivamente com fins pacíficos”; por último, o artigo 246º, sobre a investigação científica marinha na zona económica exclusiva, no nº 3, estabelece: “Os Estados costeiros, em circunstâncias normais, devem dar o seu consentimento a outros Estados ou organizações internacionais competentes para que executem, de conformidade com a presente Convenção,

306 Esta dicotomia de interpretações já vinha do tempo do Comité Ad Hoc - ver p. 11 a 14 do Informe del Comite

Especial ..., 1968, cit..

Estas duas interpretações estão bem expostas in PUREZA, José Manuel, op. cit., p. 183-186. Este Autor, na p. 209 escreve: “... o plus transportado pelo artigo 141º consubstancia-se na exigência de que as actividades militares levadas a efeito nos fundos marinhos além da jurisdição nacional não poderão, em nenhum caso, resultar em fundamento de reivindicação de soberania ou de apropriação da área em que se realizam ou dos respectivos recursos (aliás, tão pouco poderão tais actividades ter um carácter excludente que ponha em causa as outras actividades ali realizadas e que tenham por objectivo, como se impõe por princípio, a exploração e aproveitamento da Área em benefício da Humanidade)”.

307TREVES, Tullio, in La Notion d'Utilisation des Espaces Marins a des Fins Pacifiques dans le Nouveau Droit

de la Mer. Annuaire Français de Droit International. Paris: Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique. XXVI: (1980), p. 692-694, salientou que a inclusão na Convenção, além do artigo 301º, de outros artigos relativos à utilização com fins pacíficos de outros espaços marítimos, nomeadamente a Área, pode levar a pensar que esses artigos estabelecem normas específicas mais restritivas que a norma geral contida no artigo 301º, daí que os Estados Partes estariam obrigados, em relação à Área, a respeitar uma condição adicional em relação ao regime mínimo enunciado no referido artigo. Assim sendo, seriam não pacíficas todas as actividades militares, incluindo as compatíveis com a Carta das Nações Unidas. Segundo o Autor que vimos referindo, a Convenção deixou em aberto esta questão, pois, apesar de esta interpretação não violar o conteúdo do artigo, levar-nos-ia à conclusão de que as actividades proibidas no Tratado de 1971, mesmo não sendo incompatíveis com a Carta e os princípios nela enunciados, são consideradas não pacíficas. Ver também BLANC ALTEMIR, Antonio, op. cit., p. 104; WOLFRUM, RÜDIGER - The Principle of the Common Heritage of Mankind. Zeitschrift für Ausländisches Öffentliches Recht und Völkerrecht. Stuttgart: Kohlhammer. ISSN 0044-2348. 43: (1983), p. 320.

projectos de investigação científica marinha na sua zona económica exclusiva ou na sua plataforma continental, exclusivamente com fins pacíficos ...”.

O elemento dos usos pacíficos dos espaços internacionais é um princípio incontestado de

jus cogens e um princípio sui generis do corpus iuris spatialis. Como temos referido, o conceito do

património comum da Humanidade tem vindo a transformar-se de um conceito territorial em funcional, isto é, tem vindo, gradualmente, a expandir-se do território para os recursos e valores, por isso, os usos pacíficos devem ser encarados como parte da gestão sustentável e da protecção do ambiente. Esta reorientação é importante pois, como lembra Mischa308, “o perigo real actual tem mais a ver com a ameaça ecológica que com a ameaça militar”. O aproveitamento do ambiente como uma arma em tempos de conflito armado está entre a segunda geração das questões ambientais surgida recentemente309.

3.9 – O PRINCÍPIO DA OBRIGAÇÃO DOS ESTADOS E ORGANIZAÇÕES

Outline

Documentos relacionados