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O PRINCÍPIO DO PATRIMÓNIO COMUM DA HUMANIDADE

1 - APARECIMENTO DA IDEIA DO PATRIMÓNIO COMUM DA HUMANIDADE58

Em meados da década de sessenta, graças ao desenvolvimento tecnológico, começou a ser possível a exploração e aproveitamento dos recursos do fundo do mar, tendo, nessa altura, começado as discussões acerca da apropriabilidade de tais recursos. As teorias da res nullius e da

res communis59, como acabamos de ver, não permitiam uma justificação capaz para os Estados reivindicarem o direito sobre tais recursos. Por isso, surgiu um conceito novo - o conceito do património comum da humanidade60. Este conceito implicava cinco elementos, a saber: as áreas

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BRICEÑO BERRÚ, José Enrique, op. cit., p. 85 resume de modo clarividente a natureza jurídica do fundo do mar ao escrever: “a expressão ‘património comum da humanidade’, por antonomásia à dos Fundos Marinhos internacionais, expressa, de forma feliz, a natureza da referida zona: nem de ninguém em particular nem de todos em geral, nem livre nem ocupada, nem aberta ao aproveitamento indiscriminado de todos os Estados nem sujeita ao domínio de poucas potências. Isto é, constitui um bem posto ao serviço de toda a humanidade”.

Nem todos aceitam que se considere o fundo do mar e os seus recursos como património comum da humanidade. Nesse sentido GOLDWIN, Robert A., in Le Droit de la Mer : Sens Commun contre "Patrimoine Commun". Revue Générale de Droit International Public. Paris: Editions A. Pedone. 89: 3, (1985), p. 738, escreve que o grande erro dos negociadores da Convenção do Direito do Mar “foi dizer e pensar que os nódulos faziam parte do património comum da humanidade e ignorar o verdadeiro património que partilham todos os seres humanos, a saber a capacidade racional de extrair o melhor que a natureza dá para o bem de todos”. Para o Autor, o verdadeiro património encontra-se nas realizações do homem, como a literatura, música, teatro, pintura, arquitectura.

59 Na 24ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas - 1969 - o representante do Chile disse: “... a noção de

património comum exprime não só o estatuto da zona que nos ocupa, mas também a base do regime jurídico que lhe será aplicável ... é a manifestação de uma vontade política ... se quisemos evitar as concepções clássicas de res nullius e res communis é porque elas são características do egoísmo internacional: a primeira, por definição e a segunda pela interpretação que lhe foi dada por aqueles que afirmam que ela define o estatuto das águas do alto mar. Queremos evitar que se repita para os recursos dos fundos marinhos o que se verificou com os peixes, isto é, que alguns países dispondo de técnicas e de capitais partilhem entre si as riquezas em detrimento de outros países e sem ter em conta o bem comum da humanidade ...” - NATIONS UNIES - Le droit de la mer - La notion de patrimoine commun de

l'humanité ..., op. cit., p. 144-145.

60 Pode falar-se num património comum por natureza - escapa a toda a soberania e a toda a apropriação individual

- e num património comum por afectação - encontra-se sob a competência estadual. No primeiro, podemos incluir o fundo do mar além da jurisdição nacional; o segundo integra o património natural e cultural - ver, por todos, KISS, Alexandre-Charles - La Notion de Patrimoine Commun de l'Humanité. Recueil des Cours de l'Académie de Droit International. The Hague/Boston/London: Martinus Nijhoff Publishers. ISBN 90-247-2816-9. 175 - II, p. 225.

A noção de património comum da humanidade tem como base a ideia do interesse comum. Como diz o mesmo Autor, o património comum da humanidade é a materialização do interesse comum da humanidade no espaço ou em certos recursos, p. 231.

Para Joyner, a ideia de apropriabilidade estaria ausente do regime do património comum da humanidade. O património comum da humanidade, conceptualmente, implica o princípio da não apropriabilidade; consequentemente, não haveria nenhum título para uma aquisição ou transferência jurídica. A questão chave seria o acesso à região, mais que a sua propriedade - JOYNER, Christopher C. - Legal Implications of the Concept of the Common Heritage of

designadas como património comum da humanidade não estão sujeitas a apropriação, melhor dizendo, não são passíveis de uso exclusivo; a área e os respectivos recursos deverão ser geridos racionalmente por uma autoridade61 internacional; deve haver uma partilha equitativa dos benefícios daí resultantes; a sua utilização deve ser apenas para fins pacíficos; e os recursos devem ser protegidos e preservados para o benefício e interesse da Humanidade, aí se incluindo não só as gerações presentes, mas, também, as futuras. O regime do património comum da humanidade supera o regime de res communis quer porque acentua o requisito de uma administração universalmente participada quer porque subordina a liberdade à equidade62. Por isso, o regime do património comum da humanidade surge com o objectivo de garantir aos países em vias de desenvolvimento a participação na exploração dos novos recursos e nos benefícios, antes mesmo de terem capacidade própria para os necessários investimentos63. Como muitos outros, a princípio o conceito de património comum da humanidade era considerado por alguns (os países industrializados) como um conceito vago, sem conteúdo, incapaz de ser legalmente definido. Mas outros (os países em vias de desenvolvimento), desde o início, viram nele um meio de contribuir para a Nova Ordem Económica Internacional64. Assim, a adopção da resolução “moratória”, em 1969, era para estes um sinal de que uma larga maioria de Estados considerava que o património comum implicava uma gestão comum e uma participação equitativa de todos os Estados na sua

Mankind. International and Comparative Law Quarterly. London: The British Institut of International and Comparative Law. ISSN 0020-5893. 35: 1, (January 1986), p. 194.

61 Como escreveu Mohamed BENNOUNA: “a instituição de uma Autoridade Internacional dos fundos marinhos

teve o valor de símbolo e teste do diálogo N/S e de passagem do discurso sobre a nova ordem económica internacional para as realizações concretas através da sua concretização” - in Les Droits d'Exploitation des Ressources Minérales des Océans. In BARDONNET, Daniel et VIRALLY, Michel - Le Nouveau Droit International de la Mer. Paris: Éditions A. Pedone, 1983. ISBN 2-233-00121-4, p. 118.

62 Pardo ao estabelecer a diferença entre as duas noções referiu: “... not as a res omnium communis, usable for any

convenient purpose and the resources of which are indiscriminately and competitively exploitable, but through the acceptance by the international community of the principle that these vast areas of our planet have a special status as a common heritage of mankind, and, as such, should be reserved exclusively for peaceful purposes and administered by an international agency in the name and for the benefit of all peoples and of present and future generations” -

citado por PAOLILLO, Felipe H. - The Institutional Arrangements for the International Sea-bed and their Impact on the Evolution of International Organizations. Recueil Des Cours de l'Académie de Droit International. Dordrecht / Boston / Lancaster: Martinus Nijhoff Publishers. ISBN 90 247 3291 3 (volume), 90 247 2628 x (series). 188 - V: 137- 337, (1984), p. 171.

63 PUREZA, José Manuel, op. cit., p. 175. 64

A discriminação positiva dos Estados económica e geograficamente desfavorecidos foi inspiradora da viragem verificada no âmbito do Direito das relações internacionais, na década de setenta, no quadro da NOEI (Nova Ordem Económica Internacional). Uma vez afirmado o direito à existência política, a reivindicação do direito a condições económicas foi inevitável. A UNITAR, no Relatório do Secretário Geral, de 23 de Outubro de 1984 (Doc. A/39/504/Add.1), sobre o “Desenvolvimento progressivo dos princípios e normas do Direito Internacional relativos à NOEI” declara que o direito ao desenvolvimento constitui para os países em vias de desenvolvimento “o equivalente, no plano económico, do direito à autodeterminação, no plano político” e que este direito “é necessário à realização dos princípios da justiça e da igualdade dos povos, consagrados na Carta da Nações Unidas”. A formulação da NOEI foi levada a cabo através das seguintes Resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas: Res. 3201 (S-VI), de 1 de Março de 1974 - Declaração sobre a Instauração da NOEI; Res. 3202 (S-VI), de 1 de Março de 1974 - Programa de

administração. Diferentemente, os países desenvolvidos e também os países socialistas consideravam o património comum não como propriedade comum mas antes como acesso comum. Assim sendo, quando a Declaração de Princípios foi adoptada, em 1970, por 108 votos a favor e sem votos contra, foi votada por cada grupo por razões diferentes. Para os países em vias de desenvolvimento, todos os direitos sobre o património comum cabiam à Humanidade no seu conjunto e apenas a Autoridade podia actuar em seu nome. Diferentemente, para os países desenvolvidos, todas as pessoas, naturais ou jurídicas, eram livres de aproveitar os recursos minerais do fundo do mar, the first to come the first to serve.

Não obstante estas diferenças de interpretação, o princípio do património comum da humanidade aparece consagrado não só nas duas Resoluções mencionadas, mas também na Carta dos Direitos e Deveres Económicos dos Estados de 197465, no Tratado da Lua de 1979, em diversas legislações nacionais sobre o aproveitamento dos recursos do fundo do mar e em numerosas intervenções dos representantes dos Estados, ao longo da III Conferência.

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