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Importação do modelo norte-americano

No documento O poder normativo com ênfase na ANP (páginas 33-36)

1.4 Brasil

1.4.1 Importação do modelo norte-americano

Marçal Justen Filho atribui a introdução das agências reguladoras brasileiras a um fenômeno denominado Trobirand Cricket, o qual ficou conhecido em virtude de um documentário efetuado no ano de 1974 nas ilhas de Trobriand.

Este documentário revelou que o críquete tinha sido objeto de aculturação pelos habitantes da ilha, quando os missionários ingleses amedrontados chegaram em Papua-Nova Guiné, no século XX, e se viram chocados com os hábitos dos nativos em virtude dos sangrentos combates entre os moradores de ilhas diversas e então resolveram canalizar positivamente as divergências introduzindo este esporte britânico de grande formalismo e tradição, destoando a cultura ali estabelecida e implementando costumes totalmente estranhos para se beneficiarem.

Em 1974, o documentário revelou a nova realidade das Ilhas Trobriand. O críquete tinha sido objeto de um processo de aculturação marcante. Em primeiro lugar, eliminou-se o numero máximo de jogadores. Todos os habitantes da ilha participavam do jogo. A disputa era precedida e acompanhada de danças e cantos rituais, com os jogadores portando pinturas de guerra. Adotou-se a regra de que a equipe do local em que se realizava o confronto era sempre a vencedora. Os árbitros passavam a ser os feiticeiros da tribo local, os quais lançavam, enquanto a disputa ocorria, encantamentos para destruir os adversários.

A expressão Trobriand Cricket passou a ser utilizada, no âmbito da Antropologia, para designar o fenômeno da transformação a que uma cultura menos desenvolvida impõe a instituições altamente sofisticadas, oriundas de um ambiente externo. O

37 MARTINEZ, op. Cit. P.221-222

38 Há uma jurisdição administrativa. Não há, portanto, um monopólio da jurisdição a cargo do Poder Judiciário. 39 JUSEN FILHO, op. Cit, p. 167

resultado, usualmente, é um processo folclórico e delirante, em que o fenômeno externo é transformado e institucionalizado pela comunidade menos desenvolvida em termos absolutamente incontroláveis e imprevisíveis.41

Assim, a ideia das agências reguladoras brasileiras proveio da influência do

Interstate Commerce Comission – ICC, organismo regulador dos Estados Unidos criado pelo Interstate Commerce Act, com o objetivo de regular as tarifas de transporte ferroviário em

meio a um monopólio natural abusivo dos carregadores, que se utilizavam da exclusividade

para cobrar valores absurdos, conforme já apresentado anteriormente.42

Mas a sua fundamentação se deu a partir da década de 90, momento em que várias empresas estatais passaram para a titularidade dos particulares, fazendo necessária uma fiscalização sobre serviços de interesse público, embasada na defesa da livre concorrência e

na busca da eficiência pela competição, bem como na contenção das falhas de mercado.43

Deixando ao estado o papel de subsidiário ao atuar apenas quando a sociedade não estiver

apta à eficiência com as suas próprias forças.44

Ocorre que este instituto pautado no modelo americano nominado deregulation foi implantado com uma anomalia embrionária, posto que o histórico alienígena nada tem a ver com o nacional, a independência buscada pelo Brasil para elaboração de regulamentos de forma autônoma, contraria a nossa Constituição. O contexto da common law engendrado na

civil law fez destoar o segmento nas vestes que hoje se inclina. Enquanto um se correlaciona

com uma Constituição sintética, o outro é dotado de uma superconstitucionalização, donde

praticamente tudo se encontra geral e abstratamente inserido na Carta Magna.45

Grau advoga o embasamento do direito posto no direito pressuposto a fim de legitimá-lo “(...) Cada modo de produção produz a sua cultura e o direito pressuposto nasce

como elemento dessa cultura.(...)4647”, critica pois a inserção de um modelo extra cultural.

41 JUSEN FILHO, op. Cit, p. 287

42 SOUTO, Marcos Juruena Villela. As agências reguladoras e os princípios constitucionais. Revista de Direito

Constitucional e Internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 221

43 As falhas de mercado são aquelas provenientes da conduta abusiva dos agentes econômicos tendentes a burlar as leis da concorrência e do livre mercado, utilizando comportamentos anti concorrenciais, tais como a prática de cartéis(acordos abusivos entre concorrentes), monopólios (detenção de mercado por um única empresa), monopsônios (um comprador e vários vendedores), gerando externalidades negativas (malefícios coletivos), entre outras condutas abusivas ao interesse coletivo. Para conter estas falhas o Estado intervém sobre o domínio econômico penalizando os infratores das legislações econômicas.

44 Ibidem, p. 224

45MASSONETTO, Luís Fernando. “Desregulação: em busca do senso perdido” In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Regulatório: temas polêmicos, 2. ed., rev e amp., Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 111 46GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto, 7.ed., São Paulo: Editora Malheiros, 2008, p. 64

Para Grau “A cada sociedade corresponde um direito, integrado por determinados princípios”. Explica o esquema da seguinte forma:

a busca de “mais sociedade menos estado” supõe a substituição da regulação estatal (regulamentação) por regulações sociais. Aí, a deregulation dos norte-americanos, que designamos mediante o uso do vocábulo “regulação”. Como os norte- americanos usam o vocábulo regulation para significar o que designamos por “regulamentação”, deregulation, para eles, assume o mesmo significado que indicamos ao usar o vocábulo “regulação”; vale dizer: a deregulation dos norte- americanos está para a regulation assim como, para nós, a “regulação” está para a “regulamentação”.48

Na verdade, quando o Brasil importou tais agências, a Constituição de 1988 já havia sido promulgada, com rico teor material. Como não havia uma menção expressa da instituição das agências reguladoras, o legislador resolveu enquadrá-las como autarquias, e devido às peculiaridades distintivas em relação às demais autarquias, complementou sua nomenclatura como em regime especial, e devido à sua natureza autárquica integram a administração indireta.

Odete Medauar expõe que a expressão autarquias de regime especial surgiu com a Lei 5540/68, de 28 de novembro de 1968, para demonstrar uma das formas institucionais das universidades públicas, eis que nem o Decreto 200/67, de 25 de fevereiro de 1967, havia

estabelecido a distinção entre as autarquias comuns e as especiais.49 Este caráter se dá em

razão da escolha ou nomeação do dirigente da agência reguladora, diferindo de Celso Antônio Bandeira de Mello, que defende a peculiariedade em razão da investidura e fixidez do mandato, sabendo-se que o contrato de gestão será avaliado de seis em seis meses, cuja

duração mínima é de um ano, e revisado sempre que renovar parcialmente a diretoria.50

E acrescenta:

A Constituição brasileira de 1988 determina que todos os entes e órgãos da administração pública obedeçam ao principio da legalidade (art. 37, caput); a compreensão do principio deve abranger não somente a lei formal, mas também os preceitos decorrentes de um estado democrático de direito, que é o modo de ser do estado brasileiro, conforme prevê o art. 1º, caput, da constituição; e ainda, deve incluir os demais fundamentos e princípios de base constitucional. Desse modo vincula-se a atividade administrativa aos valores que informam o ordenamento como

47 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agencias reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 25

48GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: intervenção e crítica. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997, p. 84, 90, 93

49 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 7 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 80

50 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2004,p. 156

um todo, associando-se, de modo mais estreito, o direito administrativo às disposições constitucionais.51

Se nos EUA não há de certa forma seguimento ao princípio da separação dos poderes, não podemos seguir uma incongruência em relação ao nosso sistema normativo, e assim acentua Clémerson Cléve:

A missão dos juristas, hoje, é a de adaptar a ideia de Montesquieu à realidade constitucional de nosso tempo. Nesse sentido, cumpre aparelhar o Executivo, sim, para que ele possa, afinal, responder às crescentes exigentes demandas sociais. Mas cumpre, por outro lado, aprimorar os mecanismos de controle de sua ação, para o fim de torná-los (os tais mecanismos) mais seguros e eficazes.52

Ora, se a modificação da vivência em sociedade gerar uma automática alteração na disciplina jurídica local, isto desencadeará a eliminação da legalidade e por consequência a ausência de segurança jurídica nos institutos pré estabelecidos constitucionalmente.

Já basta a brevidade dos mandatos das agências a quebrar as políticas públicas de longo prazo estabelecidas pelo conselheiro da gestão anterior da agência, o que provoca este acervo normativo regulatório complexo e incompreensível.

Somam-se ainda as interferências políticas nas decisões regulatórias que interpelam a tecnicidade da regulação sob o pretexto de não atenderem às aspirações populares, tornando diversas decisões inadequadas e tecnicamente indefensáveis. Além da atribuição dos cargos das agências aos formadores de núcleos de poder político gerando a verdadeira feudalização das estruturas burocráticas, eivando a regulação de subjetivismos,

parcialidades e contradições com a técnica.53

Nota-se que a extinção das agências de certa forma não resolveria a solução do problema em tela, eis que a solução estaria baseada numa mudança de consciência, na assunção da identidade cultural jurídica brasileira, em meio à mobilidade social e política.

Não cabe tratar como letra morta os ditames constitucionais, nem extrapolar o poder normativo conferido às agências, com o fito de burlar e usurpar direitos conferidos à administração pública, mas atuar nos estritos deslindes da lei, conforme determinado pelo egrégio tribunal na prolação da ADIN 1668.

No documento O poder normativo com ênfase na ANP (páginas 33-36)