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JUSTIÇA E EQUIDADE

61. LEIS INJUSTAS

61.1. Conceito. A incompetência ou a desídia do legislador pode levá-lo à criação de leis irregulares, que vão trair a mais significativa das missões do Direito, que é espargir justiça. Lei injusta é

a que nega ao homem o que lhe é devido, ou lhe confere o indevido, quer pela simples condição de pessoa humana, por seu mérito, capacidade ou necessidade.

No passado, um complexo de causas, místicas e mistificadoras, permitia que os governantes criassem normas contrárias aos princípios basilares do Direito Natural. A Religião e a crença, autorizadas pela tradição, constituíam uma rede protetora dos interesses dos maus dirigentes que, em vez de se utilizarem dos preceitos jurídicos como um instrumento de benquerença e avanço social, colocavam-nos a seu próprio serviço, num escárnio ao sentimento e à vida do povo.

Forjavam a crença de que o Direito Positivo e o vitalício mandato de governante eram um produto da vontade divina, correspondendo aos desígnios dos deuses. Era flagrante o engodo, mas este se encontrava apoiado em uma tradição milenar, à qual devotavam profundo respeito, temerosos de provocarem a ira dos deuses. Fustel de Coulanges, historiando a época, relata: “A lei antiga nunca fazia considerandos. Para que precisava ela de os ter? Não necessitava de explicar razões: existia, porque os deuses a fizeram. A lei não se discute, impõe-se; representa ofício de autoridade e, os homens, obedecem-lhe cheios de fé.”22

61.2. Espécies. Distinguimos, nas leis injustas, uma divisão tricotômica: as injustas por destinação, as casuais e as eventuais. As injustas por destinação são as que vão cumprir uma finalidade já prevista

pelo legislador. São leis que já nascem com o pecado original e levam consigo o selo da imoralidade. As

casuais são as que surgem em decorrência de uma falha de política jurídica. A regulamentação do fato

social é feita de uma forma infeliz, em consequência de inépcia na apreciação do fenômeno e na consagração dos valores. Não há, por parte do órgão que as edita, consciência dos efeitos prejudiciais que irão causar. As suas normas são injustas não apenas em concreto, ou seja, no momento da subsunção, mas também em abstrato, independentemente das características peculiares do fato real. As leis injustas

eventuais, do mesmo modo que as casuais, não têm por base a má-fé do legislador. Surgem por

incompetência de técnica legislativa. Em abstrato, são justas, podendo, contudo, tomar feição oposta eventualmente, de acordo com as particularidades do caso em si. Na dependência, pois, das coordenadas da questão, a lei poderá ser injusta ou não. Sê-lo-á, portanto, eventualmente.

61.3. O Problema da Validade das Leis Injustas. Em torno das leis injustas, o problema de maior indagação refere-se à sua validade ou não. Entre os jusfilósofos, encontramos quatro posições diferentes. Os positivistas consideram válidas e obrigatórias as leis injustas, enquanto permanecem em vigor. Iniciam a sua argumentação em estilo socrático: o que se deve entender por leis injustas e qual o critério para o seu reconhecimento? Daí passam a analisar os riscos e a confusão que reinaria, caso fossem passíveis de discussão. Por outro lado, onde a segurança das pessoas em seus negócios e em outras espécies de interação jurídica? A previsibilidade, companheira dos homens prudentes, deixaria de existir, do mesmo modo a segurança jurídica, que representa um dos mais sérios anseios da sociedade.

Os jusnaturalistas, de modo geral, negam validade às leis injustas. Esta corrente de pensamento considera o Direito como um meio a serviço dos fins procurados pela sociedade, em determinado momento e ponto do espaço. A sua concepção do Direito é teleológica, julgando-o bom ou mau, segundo realize bons ou maus valores. O Direito Positivo, sendo criado pelos homens, deve por estes ser dominado e não erigir-se em dominador do próprio homem. A lei como súdita e não como suserana!23

Em posição eclética, encontram-se os pensamentos de Santo Tomás, Gustav Radbruch e John Rawls. O primeiro, apesar de considerar todas as leis injustas ilegítimas, reconhece validade naquelas cujo mal provocado não chega a ser insuportável. Pensava que a não observância de uma lei injusta pode, às vezes, dar origem a um mal maior, daí a necessidade da tolerância nesses casos. Mas, uma vez incompatível o preceito jurídico com a natureza e dignidade humanas, não deverá ser cumprido, pois nem Direito será. Para John Rawls, filósofo e cientista político norte-americano, “há normalmente um dever

(e, para alguns, também uma obrigação) de acatar leis injustas desde que não excedam certos limites de injustiça”. O autor de Uma Teoria da Justiça parte do princípio de que as “Leis injustas não estão todas no mesmo nível”. A resistência se mostra razoável quando a lei injusta se distancia de “ padrões publicamente reconhecidos... Se, todavia, a concepção vigente de justiça não for violada, a situação

será outra”.24 Finalmente, há aqueles que, como Kelsen, negam a existência das leis injustas, por

considerarem que a justiça é apenas relativa. Fiel à sua teoria pura, Kelsen só concebe como injustiça a não aplicação da norma jurídica ao caso concreto.

Entendemos que não cabe ao aplicador do Direito, em princípio, abandonar os esquemas da lei, sob a alegação de seu caráter injusto. Alguns resultados positivos poderão ser alcançados mediante os trabalhos de interpretação do Direito objetivo. Uma lei injusta normalmente é um elemento estranho no organismo jurídico, a estabelecer um conflito com outros princípios inseridos no ordenamento. Ora, como o aplicador do Direito não opera com leis isoladas, mas as examina e as interpreta à luz do sistema jurídico a que pertencem, muitas vezes logra constatar uma antinomia de valores, princípios ou critérios, entre a lei injusta e o ordenamento jurídico. Como este não pode apresentar contradição interna, há de ser

sempre uma única voz de comando, o conflito deverá ser resolvido e, neste caso, com prevalência da índole geral do sistema.

BIBLIOGRAFIA PRINCIPAL

Ordem do Sumário:

52 – Emil Brunner, La Justicia; Goffredo Telles Júnior, Filosofia do Direito; Aristóteles, Ética a Nicômaco; 53 – Emil Brunner, op. cit.; Hans Kelsen, Que es la Justicia?;

54 – Texto;

55 – Emil Brunner, op. cit.; Chaim Perelman, De la Justicia;

56 – Edgar Bodenheimer, Ciência do Direito, Filosofia e Metodologia Jurídicas; Aristóteles, op. cit.; Del Vecchio, A Justiça; 57 – Goffredo Telles Júnior, op. cit.;

58 – Emil Brunner, op. cit.; Del Vecchio, op. cit.; Mouchet y Becu, Introducción al Derecho;

59 – Luño Peña, Derecho Natural; Alípio Silveira, Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, vol. V; 60 – Aristóteles, op. cit.;

____________

1 Instituições de Justiniano, Livro I, Tít. I, no 1, Tribunais do Brasil Editora Ltda., Curitiba, 1979.

2 Aristóteles, Ética a Nicômaco, Os Pensadores, Livro V, Abril Cultural, São Paulo, 1973, p. 325. 3 Hans Kelsen, Qué es la Justicia?, Universidad Nacional de Córdoba, 1966, pp. 77, 78 e 86. 4 Blaise Pascal, Pensamentos, Clássicos Garnier da Difusão Europeia do Livro S.A., 1961, p. 125.

5 A corrente do Direito Livre, de Erlich e Kantorowicz, expressou o pensamento segundo o qual as decisões judiciais deveriam ser guiadas sempre pelo sentimento de justiça. Se as leis fossem justas, deveriam ser aplicadas; se não o fossem, deveriam ser desprezadas.

6 Apud J. Castan Tobeñas, La Justicia, Reus S.A., Madrid, 1968, p. 8.

7 Truyol y Serra, História de la Filosofía del Derecho y del Estado, tomo I, Editorial Revista de Occidente S.A., 1970, p. 123. 8 Rui Barbosa, Oração aos Moços, Editora Leia, São Paulo, 1959, p. 46.

9 Para a teoria de Marx e de Engels, na sociedade inteiramente socializada, a máxima que deverá imperar é: De cada um

segundo sua capacidade e a cada um segundo suas necessidades. A constituição das extintas Repúblicas Socialistas

Soviéticas, no art. 14, dispunha diferentemente: “... O Estado exerce o controle da quantidade do trabalho e do consumo, segundo o princípio do socialismo: ‘de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo o seu trabalho’...” 10 Chaim Perelman, De la Justicia, Centro de Estudios Filosóficos, Universidad Nacional Autónoma de México, 1964, p. 35. 11 Emil Brunner, La Justicia, Centro de Estudios Filosóficos, Universidad Nacional Autónoma de México, 1961, p. 36. 12 Aristóteles, op. cit., p. 326.

13 Del Vecchio, A Justiça, Edição Saraiva, São Paulo, 1960, p. 49.

14 Hobbes, Leviatã, Os Pensadores, Abril Cultural, São Paulo, 1974, vol. XIV, pp. 93-94. 15 Encíclicas e Documentos Sociais, Edições LTr., São Paulo, 1972, p. 14.

16 Edições Paulinas, São Paulo, 1991, p. 65.

17 Henrique Luño Peña, Derecho Natural, Editorial La Hormiga de Oro S.A., Barcelona, 1947, p. 158.

18 Alípio Silveira, Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, Editor Borsói, Rio de Janeiro, vol. V, s/d., p. 357. 19 Aristóteles, op. cit., p. 337.

20 Icílio Vanni, op. cit., p. 43.

21 A fim de tornar a justiça social exequível e prática em dimensão maior e visando também a compatibilizar a ordem jurídica com os antigos anseios da corrente do Direito Livre (v. §§ 93 e 161) e dos defensores, hoje, do chamado Uso Alternativo do

Direito, preconizamos outra disposição legal para a equidade: “Art. 127. O juiz decidirá por equidade nos casos previstos em

lei, na hipótese de preservação da dignidade da pessoa humana e nos conflitos de natureza econômica em que houver imperativo de justiça social. Parágrafo único: Excluída a hipótese de expressa autorização legal, haverá recurso de ofício com os efeitos devolutivo e suspensivo.”

22 Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga, 2a ed., Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1957, vol. I, p. 292.

23 “Ai daqueles que fazem leis injustas, e dos escribas que redigem sentenças opressivas, para afastar os pobres dos tribunais e denegar direitos aos fracos de meu povo” (Cap. 10. vers. 1 e 3, do profeta Isaías).

24 John Rawls nasceu em Baltimore, em 1921, e a obra em referência é Uma Teoria da Justiça, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1981, pp. 264/8. O eminente filósofo-político faleceu em 2002, em Lexington, Massachusets.

Capítulo 12