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O DIREITO COMO PROCESSO DE ADAPTAÇÃO SOCIAL

Sumário: 8. O Fenômeno da Adaptação Humana. 9. Direito e Adaptação.

8. O FENÔMENO DA ADAPTAÇÃO HUMANA

8.1. Aspectos Gerais. Para alcançar a realização de seus projetos de vida – individuais, sociais ou de humanidade – o homem tem de atender às exigências de um condicionamento imensurável: submeter-

se às leis da natureza e construir o seu mundo cultural. São duas exigências valoradas pelo Criador

como requisitos à vida do homem na Terra – com o vocábulo vida implicando desenvolvimento de todas as faculdades do ser.

O condicionamento, imposto ao homem de forma inexorável, gera múltiplas necessidades, por ele atendidas mediante os processos de adaptação. Graças a esse mecanismo, o homem se torna forte, resistente, apto a enfrentar os rigores da natureza, capaz de viver em sociedade, desfrutar de justiça e segurança, de conquistar, enfim, o seu mundo cultural. Por dois processos distintos – interna e externamente – se faz a adaptação humana.

8.2. Adaptação Interna. Também denominada orgânica, esta forma de adaptação se processa através dos órgãos do corpo, sem a intervenção do elemento vontade. Tal processo não constitui privilégio do homem, mas um mecanismo comum a todos os seres vivos da escala animal e vegetal. Os órgãos, em seu ininterrupto trabalho, desenvolvendo funções de vida, superam situações físicas adversas, algumas transitórias e outras permanentes, mediante transformações operadas na área atingida ou no todo orgânico. A perda de um rim promove ativo trabalho de adaptação orgânica às novas condições, com o órgão solitário passando a desenvolver uma atividade mais intensa. Pessoas que se locomovem para regiões de maior altitude sentem-se afetadas pela menor pressão atmosférica, o que provoca o início imediato de um processo de adaptação, no qual várias modificações são realizadas, salientando-se a multiplicação dos glóbulos vermelhos no sangue. Em pouco tempo, porém, readquirem o vigor físico, voltando às suas condições normais de vida. Alexis Carrel coloca em evidência toda a importância desse mecanismo: “A adaptação é essencialmente teleológica. É graças a ela que o meio interno se mantém constante, que o corpo conserva a sua unidade, que se cura das doenças. É graças a ela que duramos, apesar da fragilidade e do caráter transitório dos nossos tecidos.”1

8.3. Adaptação Externa. Ao homem compete, com esforço e inteligência, complementar a obra da natureza. As necessidades humanas, não supridas diretamente pela natureza, obrigam-no a desenvolver esforço no sentido de gerar os recursos indispensáveis. Consciente de suas necessidades e carências, ele elabora. A atividade que desenvolve, modelando o mundo exterior, tem um sentido de adaptação, de acomodar os objetos, as ideias e a vida social às suas inumeráveis necessidades. Em consequência de seu esforço, perspicácia e imaginação, surge o chamado mundo da cultura, composto de tudo aquilo que ele constrói, visando a sua adaptação externa: a cadeira, o metrô, uma canção, as crenças, os códigos etc. O processo adaptativo é elaborado sempre diante de uma necessidade, configurada por um obstáculo da natureza ou de carências. Esta forma de adaptação é igualmente denominada extraorgânica.

A própria vida em sociedade já constitui um processo de adaptação humana. Para atingir a plenitude do seu ser, o homem precisa não só da convivência, mas da participação na sociedade. Do trabalho que esta produz, o homem extrai proveitos e se realiza não apenas quando aufere os benefícios que a coletividade gera, mas principalmente quando se faz presente nos processos criativos.

9. DIREITO E ADAPTAÇÃO

9.1. Colocações Prévias. A relação entre a sociedade e o Direito apresenta um duplo sentido de adaptação: de um lado, o ordenamento jurídico é elaborado como processo de adaptação social e, para isto, deve ajustar-se às condições do meio; de outro, o Direito estabelecido cria a necessidade de o povo adaptar o seu comportamento aos novos padrões de convivência.

A vida em sociedade pressupõe organização e implica a existência do Direito. A sociedade cria o Direito no propósito de formular as bases da justiça e segurança. Com este processo as ações sociais ganham estabilidade. A vida social torna-se viável. O Direito, porém, não é uma força que gera, unilateralmente, o bem-estar social. Os valores espirituais que apresenta não são inventos do legislador. Por definição, o Direito deve ser uma expressão da vontade social e, assim, a legislação deve apenas assimilar os valores positivos que a sociedade estima e vive. O Direito não é, portanto, uma fórmula mágica capaz de transformar a natureza humana. Se o homem em sociedade não está propenso a acatar os valores fundamentais do bem comum, de vivê-los em suas ações, o Direito será inócuo, impotente para realizar a sua missão.

Por não ser criado pelo homem, o Direito Natural, que corresponde a uma ordem de justiça que a própria natureza ensina aos homens pelas vias da experiência e da razão, não pode ser admitido como um processo de adaptação social. O Direito Positivo, aquele que o Estado impõe à coletividade, é que deve estar adaptado aos princípios fundamentais do Direito Natural, cristalizados no respeito à vida, à liberdade e aos seus desdobramentos lógicos.

À indagação, no campo da mera hipótese e especulação, se o Direito se apresentaria como um processo de adaptação, caso a natureza humana atingisse o nível da perfeição, impõe-se a resposta negativa. Se reconhecemos que o Direito surge em decorrência de uma necessidade humana de ordem e equilíbrio, desde que desapareça a necessidade, cessará, obviamente, a razão de ser do mecanismo de adaptação. Outras normas sociais continuarão existindo, com o caráter meramente indicativo, como as relativas à higiene pública, trânsito, tributos, mas sem o elemento coercibilidade, que é uma característica exclusiva do Direito.

9.2. O Direito como Processo de Adaptação Social. As necessidades de paz, ordem e bem comum levam a sociedade à criação de um organismo responsável pela instrumentalização e regência desses valores. Ao Direito é conferida esta importante missão. A sua faixa ontológica localiza-se no mundo da cultura, pois representa elaboração humana. O Direito não corresponde às necessidades individuais, mas a uma carência da coletividade. A sua existência exige uma equação social. Só se tem direito relativamente a alguém. O homem que vive fora da sociedade vive fora do império das leis. O homem só, não possui direitos nem deveres.

Para o homem e para a sociedade, o Direito não constitui um fim, apenas um meio para tornar possível a convivência e o progresso social. Apesar de possuir um substrato axiológico permanente,

que reflete a estabilidade da “natureza humana”, o Direito é um engenho à mercê da sociedade e deve ter a sua direção de acordo com os rumos sociais.

As instituições jurídicas são inventos humanos que sofrem variações no tempo e no espaço. Como processo de adaptação social, o Direito deve estar sempre se refazendo, em face da mobilidade social. A necessidade de ordem, paz, segurança, justiça, que o Direito visa a atender, exige procedimentos sempre novos. Se o Direito se envelhece, deixa de ser um processo de adaptação, pois passa a não exercer a função para a qual foi criado. Não basta, portanto, o ser do Direito na sociedade, é indispensável o ser

atuante, o ser atualizado. Os processos de adaptação devem-se renovar, pois somente assim o Direito

será um instrumento eficaz na garantia do equilíbrio e da harmonia social.

Este processo de adaptação externa da sociedade compõe-se de normas jurídicas, que são as células do Direito, modelos de comportamento social, que fixam limites à liberdade do homem, mediante imposição de condutas. Na expressiva síntese de Cosentini, “... o Direito não é uma criação espontânea

e audaciosa do legislador, mas possui uma raiz muito mais profunda: a consciência do povo... O

Direito nasce da vida social, se transforma com a vida social e deve se adaptar à vida social.” 2

Como os fatos sociais ocorrem dentro de uma variação quase infinita, ao legislador não seria possível, nem conveniente, tratar todas as questões relevantes no formato de seus matizes ou singularidades, isto é, casuisticamente. Já em Roma a adaptação do Direito possuía caráter seletivo, como se pode inferir da lição de seus jurisconsultos. Pompônio já comentara: “Iura constitui oportet, ut

dixit Theophrastus, in his, quae ut plurimum accidunt, non quae ex inopinato” (i.e. “Convém que se

estabeleçam as leis, segundo disse Teofrasto, sobre o que muito frequentemente sucede, não sobre o inopinado”). Celso complementou a lição: “Nam ad ea potius debet aptari ius, quae et frequentur et

facile, quam quae perraro aveniunt” (i.e., “Porque a lei deve adaptar-se ao que acontece frequente e

facilmente e não ao que ocorre muito raramente”).3

Na sua missão de proporcionar bem-estar, a fim de que os homens possam livremente atingir os ideais de vida e desenvolver o seu potencial para o bem, o Direito não deve absorver todos os atos e manifestações humanas, de vez que não é o único responsável pelo sucesso das relações sociais. A Moral, a Religião, as Regras de Trato Social, igualmente zelam pela solidariedade e benquerença entre os homens. Cada qual, porém, em sua faixa própria. A do Direito é regrar a conduta social, com vista à segurança e justiça. A sua intervenção no comportamento social deve ocorrer, unicamente, em função daqueles valores. Somente os fatos mais importantes para o convívio social devem ser disciplinados. O Direito, portanto, não visa ao aperfeiçoamento do homem – esta meta pertence à Moral; não pretende preparar o ser humano para a conquista de uma vida supraterrena, ligada a Deus – valor perquirido pela Religião; não se preocupa em incentivar a cortesia, o cavalheirismo ou as normas de etiqueta – âmbito específico das Regras de Trato Social. Se o Direito regulamentasse todos os atos sociais, o homem

perderia a iniciativa, a sua liberdade seria utópica e passaria a viver como autômato.

De uma forma enfática, Pontes de Miranda se refere ao Direito como um fenômeno de adaptação: “O Direito não é outra coisa que processo de adaptação”; “Direito é processo de adaptação social, que consiste em se estabelecerem regras de conduta, cuja incidência é independente da adesão daqueles a que a incidência da regra jurídica possa interessar.”4 A vinculação entre Direito e necessidade, essencial à compreensão do fenômeno jurídico como processo adaptativo, é feita também por Recaséns Siches, quando afirma que “o Direito é algo que os homens fabricam em sua vida, sob o estímulo de umas determinadas necessidades; algo que vivem em sua existência com o propósito de satisfazer àquelas necessidades...”5

A dificuldade em se adaptar ao sistema jurídico, leis projetadas para outra realidade, tem sido o grande obstáculo ao fenômeno da recepção do Direito estrangeiro.

9.3. A Adaptação das Ações Humanas ao Direito. A sociedade cria o Direito e, ao mesmo tempo, se submete aos seus efeitos. O novo Direito impõe, em primeiro lugar, um processo de assimilação e, posteriormente, de adequação de atitudes. O conhecimento do ordenamento jurídico estabelecido não é preocupação exclusiva de seus destinatários. O mundo jurídico passa a se empenhar na exegese do verdadeiro sentido e alcance das regras introduzidas no meio social. Esta fase de cognição do Direito algumas vezes é complexa. As interrogações que a lei apresenta abrem divergências na doutrina e nos tribunais, além de deixar inseguros os seus destinatários.

Com a definição do espírito da lei, a sociedade passa a viver e a se articular de acordo com os novos parâmetros. Em relação aos seus interesses particulares e na gestão de seus negócios, os homens pautam o seu comportamento e se guiam em conformidade com os atuais conceitos de lícito e de ilícito.

As condições ambientais favoráveis à interação social não são obtidas com a pura criação do Direito. É indispensável que a lei promulgada ganhe efetividade, isto é, que os comandos por ela estabelecidos sejam vividos e aplicados nos diferentes níveis de relacionamento humano.6 O conteúdo de justiça da lei e o sentimento de respeito ao homem pelo bem comum devem ser a motivação maior dos processos de adaptação à nova lei. Contudo, a experiência revela que o homem, embora a sua tendência para o bem, é fraco. Por este motivo a coercibilidade da lei atua, com intensidade, como estímulo à efetividade do Direito.

BIBLIOGRAFIA PRINCIPAL

Ordem do Sumário:

8 – Alexis Carrel, O Homem, esse Desconhecido; Queiroz Lima, Princípios de Sociologia Jurídica;

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1 Alexis Carrel, O Homem, Esse Desconhecido, Editora Educação Nacional, Porto, s/d, p. 263.

2 Franceso Cosentini, Le Droit de Famille – Essai de Réforme, 1a ed., Paris, Librairie Générale de Droit & de Jurisprudence, 1929, p. 1.

3 Digesto, Livro I, tít. III, respectivamente fragmentos 4 e 5.

4 Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967, 1a ed., Revista dos Tribunais, São Paulo, 1967, tomo I, p. 31. 5 Luis Recaséns Siches, Introducción al Estudio del Derecho, 1a ed., Editorial Porrua S.A., México, 1970, p. 16.

Capítulo 4