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A TESE DA REVOGAÇÃO DA LEI PELO DESUSO

O DESUSO DAS LEIS

88. A TESE DA REVOGAÇÃO DA LEI PELO DESUSO

Examinando hoje a controvertida matéria, não são poucos os juristas, intraneus e extraneus, que sustentam a ab-rogação da lei pelo desuso. Dentro da corrente, variam os posicionamentos conforme a valorização absoluta ou relativa dos costumes contra legem.16 Comparadas as opiniões e reunidas as várias ideias, sintetizamos o pensamento através de três argumentos principais: a) renúncia tácita do Estado pela aplicação da lei; b) irrelevância e insubsistência do sistema jurídico excluir o caráter revocatório do desuso; c) validade da lei condicionada a um mínimo de eficácia.

Em relação à primeira tese, argui-se que o responsável pelo esvaziamento e desprestígio da lei é o próprio Estado, através de seus órgãos incumbidos da aplicação da lei e da exigência de seu cumprimento. A responsabilidade, contudo, nem sempre pode ser lançada sobre o Poder Executivo. Agindo com desídia ou incompetência, o Poder Legislativo pode ser o agente do desencontro da vida com o Direito, provocando a revolta dos fatos contra o código. A inação governamental, disse Jean Cruet, é quem cria “um direito contra o direito”. Como autor da ordem jurídica, o Estado possui o dever de garantir a sua efetividade. A negligência nesse mister, permitindo ações contrárias ou o descaso pela lei, representa um contrassenso e que importa na renúncia tácita à vigência e obrigatoriedade da lei em questão.

Examinando a controvérsia à luz do Estado moderno, onde a lei é a fonte principal do Direito, Flóscolo da Nóbrega pensa que: “O Estado, que dita as leis, tem o dever de fazê-las cumprir; a eficácia da lei, a sua vitalidade, promana dessa garantia, dessa convicção de que as suas prescrições serão cumpridas como ordem de uma autoridade superior. Se essa garantia não se positiva, se essa autoridade não se faz respeitar, se o poder negligencia o dever de impor obediência à lei, esta perde a força moral, desmoraliza-se, torna-se letra morta”.17 Machado Paupério, condicionando o valor da desuetudo a uma

razoável permanência no tempo, revela seu ponto de vista favorável à prevalência do desuso, diante da manifestação da vontade do Estado de renunciar, tacitamente, à aplicação de determinada lei.18

Uma tese mais avançada, fundada, porém, na autoridade de eminentes mestres da Ciência do Direito, sustenta o ponto de vista de que a desuetudo é força capaz de revogar a lei, ainda quando a ordem jurídica expressamente exclua essa possibilidade. Enneccerus, talvez o primeiro a argumentar em termos tão francos e conclusivos, reconheceu que, na prática, essa exclusão do costume ab-rogador tem condicionado, com frequência, as decisões, não obstante faltar à lei o poder de anular o costume contra

legem, “pois o que avança como vontade jurídica, geralmente manifestada, é direito, ainda que

contradiga uma proibição”.19

De grande significação é a surpreendente posição assumida por Hans Kelsen diante do problema, isto porque abre uma fenda comprometedora na sua famosa “pureza metódica”. O autor da Teoria Pura do

Direito, que pretendeu reduzir o fenômeno jurídico a simples estrutura normativa, isolando-o dos demais

fenômenos sociais, fez uma concessão aos fatos sociais ao condicionar a validade da lei a um mínimo de eficácia (v. item 218 e segs.).20

89. CONCLUSÕES

Sobre o tema central, validade ou não da lei em desuso, a solução deve ser guiada pelos dois valores supremos do Direito: justiça e segurança. Como justiça não pode haver sem segurança, o centro de

gravidade do problema reduz-se aos critérios de segurança jurídica. Onde estaria a segurança da sociedade? Nas leis que ninguém cumpre e os órgãos públicos rejeitam, ou nos costumes, que criaram raízes na consciência popular? Mais uma vez, pensamos, a verdade não se localiza nos grandes extremos. A lei em desuso é um mal que não oferece soluções ideais. Dar validade à lei abandonada, esquecida pelo povo e negligenciada pelo próprio Estado, seria um ato de violência e que poderia provocar situações por demais graves e incômodas. A adoção de um critério absoluto de revogação da lei pela

desuetudo, de igual modo, atenta contra os princípios de segurança da sociedade. As leis de ordem

pública que resguardam os interesses maiores da sociedade devem estar a salvo de convenções em contrário e da negligência dos órgãos estatais.

De importância igual ao problema de validade da lei em desuso, julgamos o estudo de prevenção desse fenômeno. As parcelas de responsabilidade na prevenção dividem-se entre os poderes da República – Legislativo, Executivo e Judiciário – que têm na lei o seu grande elo. A eliminação do fenômeno desuetudo está na dependência direta da fidelidade dos três poderes aos princípios iluminados pela Ciência do Direito.

BIBLIOGRAFIA PRINCIPAL

Ordem do Sumário:

85 – François Gény, Método de Interpretación y Fuentes en Derecho Privado Positivo; Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, I; Paulo Nader, Lemi, no 49;

86 – Paulo Nader, op. cit.;

87 – François Gény, op. cit.; Paulo Nader, op. cit.;

88 – Luis Legaz y Lacambra, Filosofía del Derecho; Paulo Nader, op. cit.; 89 – Paulo Nader, op. cit.

____________

1 Machado Netto, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, ed. cit., pp. 274 e 283.

2 François Gény, Método de Interpretación y Fuentes en Derecho Privado Positivo, 2a ed., Editorial Reus (S.A.), Madrid, 1925, p. 401.

3 Teoria de la Verdad Jurídica, Buenos Aires, Editorial Losada, S.A., 1954, p. 255.

4 Apud Julien Bonnecase, Introducción al Estudio del Derecho, Cajica, Puebla, 1944, trad. da 3a ed. francesa, p. 199. 5 Op. cit., p. 200.

6 Esta classificação, que originalmente apresentamos em trabalho doutrinário publicado na revista Lemi – Legislação Mineira, no 49, de dezembro de 1971, foi adotada, entre outros juristas, pelo renomado escritor J. M. Othon Sidou, em sua obra O Direito Legal – Forense, Rio, 1985, p. 24.

7 Icílio Vanni, op. cit., p. 45. 8 Apud F. Gény, op. cit., p. 393. 9 Op. cit., p. 385.

10 Giorgio del Vecchio, op. cit., vol. II, p. 167.

11 Clóvis Beviláqua, Teoria Geral do Direito, 3a ed., Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 1966, p. 32. 12 Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil, 1a ed., Forense, Rio de Janeiro, 1957, p. 52.

13 Vicente Ráo, op. cit., vol. I, tomo I, p. 294.

14 Alípio Silveira, Hermenêutica no Direito Brasileiro, 1a ed., Revista dos Tribunais, São Paulo, 1968, vol. I, p. 333. 15 Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 7a ed., Editora Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1961, p. 242. 16 Inteirando-se da questão: “Se o costume pode obter força de lei e ab-rogar a lei”, Tomás de Aquino concluiu pela afirmativa:

“... pela palavra humana a lei não só pode ser mudada, mas também exposta, manifestando o movimento interior e o conceito da razão humana” (op. cit., vol. IV, p. 1.786).

17 Flóscolo da Nóbrega, Introdução ao Direito, 4a ed., Konfino, Rio de Janeiro, 1968, p. 124.

18 Machado Paupério, Introdução à Ciência do Direito, 3a ed., Forense, Rio de Janeiro, 1977, p. 123. 19 Apud Luis Legaz y Lacambra, op. cit., p. 560.

Capítulo 17

JURISPRUDÊNCIA

Sumário: 90. Conceito. 91. Espécies. 92. Paralelo entre Jurisprudência e Costume. 93. O Grau de Liberdade dos Juízes. 94. A Jurisprudência Cria o Direito? 95. A Jurisprudência Vincula os Tribunais? 96. Processos de Unificação da Jurisprudência.

90. CONCEITO

No curso da história o vocábulo jurisprudência sofreu uma variação semântica. De origem latina, formado por juris e prudentia, o vocábulo foi empregado em Roma para designar a Ciência do Direito ou teoria da ordem jurídica e definido como Divinarum atque humanarum rerum notitia, justi atque

injusti scientia (conhecimento das coisas divinas e humanas, ciência do justo e do injusto). Neste sentido

ainda é aplicado modernamente, mas com pouca frequência. Considerando muito significativa a acepção romana, que realça uma qualidade essencial ao jurista, que é a prudência, Miguel Reale entende que tudo deve ser feito para manter-se também em uso o sentido original de jurisprudência.1 Atualmente o vocábulo é adotado para indicar os precedentes judiciais, ou seja, a reunião de decisões judiciais, interpretadoras do Direito vigente.

Em seu contínuo labor de julgar, os tribunais desenvolvem a análise do Direito, registrando, na prática, as diferentes hipóteses de incidência das normas jurídicas. Sem o escopo de inovar, essa atividade oferece, contudo, importante contribuição à experiência jurídica. Ao revelar o sentido e o alcance das leis, o Poder Judiciário beneficia a ordem jurídica, tornando-a mais definida, mais clara e, em consequência, mais acessível ao conhecimento. Para bem se conhecer o Direito que efetivamente rege as relações sociais, não basta o estudo das leis, é indispensável também a consulta aos repertórios de decisões judiciais. A jurisprudência constitui, assim, a definição do Direito elaborada pelos tribunais.

Na linha doutrinária de A. Torré, distinguimos, no conceito moderno de jurisprudência, duas noções: 1) Jurisprudência em sentido amplo; 2) Jurisprudência em sentido estrito.2

1 – Jurisprudência em Sentido Amplo: é a coletânea de decisões proferidas pelos tribunais sobre determinada matéria jurídica. Tal conceito comporta: a) Jurisprudência uniforme: quando as decisões são convergentes; quando a interpretação judicial oferece idêntico sentido e alcance às normas jurídicas;

b) Jurisprudência divergente ou contraditória: ocorre quando não há uniformidade na interpretação do

Direito pelos julgadores.

2 – Jurisprudência em sentido estrito: dentro desta acepção, jurisprudência consiste apenas no conjunto de decisões uniformes, prolatadas pelos órgãos do Poder Judiciário, sobre uma determinada questão jurídica. É a auctoritas rerum similiter judicatorum (autoridade dos casos julgados semelhantemente). A nota específica deste sentido é a uniformidade no critério de julgamento. Tanto esta espécie quanto a anterior pressupõem uma pluralidade de decisões.

Se empregássemos o termo apenas em sentido estrito, conforme a quase totalidade dos autores, que significado teriam as expressões: a jurisprudência é divergente; procedimentos para a unificação da

jurisprudência. Tais afirmativas seriam contraditórias, pois o que é uniforme não diverge e não necessita

91. ESPÉCIES

A jurisprudência se forma não apenas quando há lacunas na lei ou quando esta apresenta defeitos. Como critério de aplicação do Direito vigente, como interpretadora de normas jurídicas preexistentes, a jurisprudência reúne modelos extraídos da ordem jurídica, de leis suficientes ou lacunosas, claras ou ambíguas, normais ou defeituosas. Assim, a jurisprudência pode apresentar-se sob três espécies:

secundum legem, praeter legem, contra legem.

A jurisprudência secundum legem se limita a interpretar determinadas regras definidas na ordem jurídica. As decisões judiciais refletem o verdadeiro sentido das normas vigentes. A praeter legem é a que se desenvolve na falta de regras específicas, quando as leis são omissas. Com base na analogia ou princípios gerais de Direito, os juízes declaram o Direito. A contra legem se forma ao arrepio da lei, contra disposições desta. É prática não admitida no plano teórico, contudo, é aplicada e surge quase sempre em face de leis anacrônicas ou injustas. Ocorre quando os precedentes judiciais contrariam a

mens legis, o espírito da lei.