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PRINCÍPIOS DO DIREITO ESTABELECIDO

SEGURANÇA JURÍDICA

65. PRINCÍPIOS DO DIREITO ESTABELECIDO

Entre os princípios básicos do Direito estabelecido, consideramos os seguintes: positividade do

Direito, segurança de orientação, irretroatividade da lei, estabilidade relativa do Direito . Os

princípios do Direito estabelecido se referem ao Direito em sua forma estática, ou seja, na sua maneira de apresentar-se aos seus destinatários.

O valor segurança jurídica é importante para o Direito em geral e para alguns institutos jurídicos em particular. O fundamento jurídico da usucapião, no entendimento de Ebert Chamoun, consiste na salvaguarda desse valor, que é “um dos objetivos cardiais do direito e a verdadeira justificativa da

usucapião”. Gaio já atribuíra a esse valor o fundamento filosófico da usucapião, revelando que esta

existe “ne rerum dominia in incerto essent”. 7

65.1. A Positividade do Direito. A positividade do Direito é o caminho da segurança jurídica. Esta se constrói a partir da existência do Direito, objetivado através de normas indicadoras dos direitos e

deveres das pessoas. A positividade pode manifestar-se em códigos ou em costumes; o essencial é que oriente efetivamente a conduta social.

Envolvido por seu idealismo, Platão imaginou o “Estado sem lei”, no qual os juízes teriam ampla liberdade para as suas decisões, sem qualquer outro condicionamento além dos imperativos da justiça. A sua concepção não implicava anarquia, pois o Direito existiria exteriorizado nas decisões dos magistrados. Posteriormente, em uma fase mais adiantada de pensamento, admitiu a conveniência do “Estado Legal”, porque o “Estado sem lei”, que ainda reconhecia como superior, exigia a infalibilidade e grande sabedoria, condições não comuns aos juízes.8 A corrente do Direito Livre, ao adotar o lema a

justiça pelos códigos ou apesar dos códigos, consagrou uma doutrina análoga à do “Estado sem lei”. A

positividade do Direito, para seus defensores, possuía uma importância relativa, pois sustentaram a tese de que os juízes deveriam abandonar as leis, quando não oferecessem soluções justas.

A positividade implica divulgação do Direito. Este deve estar ao alcance de todos, não apenas de seus destinatários. O Direito costumeiro, por ser elaborado pelo próprio povo e achar-se enraizado na consciência popular, tem as suas normas divulgadas pelos membros da coletividade, que as transmitem às novas gerações. Em relação ao Direito codificado, é indispensável a sua publicação em diários oficiais ou em jornais de grande penetração na sociedade.9 Não houvesse a publicação das leis, e o aforismo Ignorantia juris non excusat (ninguém se escusa do cumprimento da lei alegando a sua ignorância) não poderia ser aplicado.

No desenrolar da História, a divulgação do Direito passou por altos e baixos. Nos tempos mais antigos, quando não havia a escrita, as normas eram elaboradas em versos, para que melhor se fixassem na memória do povo. Salomão, recorrendo ao processo mnemônico, orientava as pessoas para que relacionassem os dez mandamentos aos seus dez dedos das mãos. Conforme narrativa de Hobbes, quando Moisés entregou a lei ao povo de Israel, na renovação do contrato, “recomendou que a ensinassem a seus filhos, discorrendo sobre ela tanto em casa como nos caminhos, tanto ao deitar como ao levantar, e escrevendo-a nos montantes e nas portas de suas casas; e também que se reunisse o povo, homens, mulheres e crianças, para a ouvirem ler”.10

A contrastar com o seu legado de sabedoria jurídica à humanidade, a Roma dos tempos primitivos negou à classe dos plebeus o conhecimento do Direito, então privilégio da classe patrícia. Após muita reivindicação, com a Lei das XII Tábuas (séc. V a.C.) o conhecimento do Direito ficou ao alcance de todos. Na China antiga, segundo Ángel Latorre,11 governantes evitavam a divulgação das leis, porque o seu conhecimento poderia quebrar a harmonia social, impedindo a composição amigável dos litígios.12

65.2. Segurança de Orientação. A positividade e divulgação do Direito não são o bastante para proporcionar a certeza jurídica. É indispensável ainda que as normas sejam dotadas de clareza,

simplicidade, univocidade e suficiência. O conhecimento do Direito não decorre da simples existência

das normas jurídicas e de sua publicidade. Um texto de lei mal elaborado, com linguagem ambígua e complexa, longe de ser esclarecedor, gera a dúvida nos espíritos quanto ao Direito vigente. As normas devem ser inteligíveis e ao alcance do homem comum. Em nosso país, segundo depoimento de João Arruda, discutiu-se, durante algum tempo, sobre a conveniência da criação do código popular, ideia que pretendia retirar os elementos técnicos dos códigos, substituindo-os pela linguagem simples e comum do povo. O plano não obteve êxito.13 Ideia análoga foi desenvolvida pela Universidade Popular, que funcionou anexa à Universidade de São Paulo e que visava, segundo Spencer Vampré, “a distribuir gratuitamente os princípios elementares da ciência, vulgarizar e difundir, em linguagem profana, os ensinamentos, que fazem a preocupação de vidas inteiras de desinteressado amor pela verdade”. Na

opinião do eminente jurista, o Código Civil seria o objeto mais promissor “para realizar esse apostolado de propagação científica”.14 Visando à simplificação da linguagem aplicada nas sentenças judiciais, a fim de permitir aos leigos a sua compreensão, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei no 7.448, de 2006, aprovado em 2008 pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados. A Associação dos Magistrados Brasileiros, em 2005, já iniciara campanha para a adoção, pelos operadores jurídicos em geral, de terminologia mais simples, direta e objetiva, lançando na ocasião o livro O Judiciário ao alcance de todos – noções básicas de juridiquês.

Em um Estado plenamente democrático, o conhecimento da ordem jurídica deve estar acessível à população em geral, fundamentalmente no tocante aos seus direitos básicos. A legislação obscura, que leva à incerteza, provoca grandes danos aos indivíduos e ao próprio Estado, pois, além de favorecer a exclusão social, repercute negativamente no Exterior, uma vez que desestimula o investimento de grandes empresas no País.

O denominado princípio da acessibilidade do código dividiu a opinião de dois importantes nomes da literatura clássica inglesa: Jeremy Bentham (1748-1832) e John Austin (1790-1859). O primeiro, cognominado de o “Newton da legislação”, adepto de uma democracia radical, pensava que o código deveria ser acessível ao povo, enquanto seu discípulo, seguidor de um liberalismo moderado, defendia opinião divergente: acessibilidade limitada à classe dos juristas.15

A univocidade significa que as leis não devem apresentar incoerências, contradições ou conflitos internos. As diversas partes que compõem a ordem jurídica devem estar em perfeita harmonia, de modo a existir uma única voz de comando. A suficiência significa que a ordem jurídica deve estar plena de soluções para resolver quaisquer problemas oriundos da vida social. A lei pode apresentar lacunas; a ordem jurídica, não. A suficiência é garantida pelos processos de integração do Direito, como a analogia e os princípios gerais de Direito. Ao fazer alusão à segurança, Philipp Heck coloca em destaque o aspecto de suficiência e prévio conhecimento do Direito.16

Entre os sistemas jurídicos, qual favorece melhor à segurança de orientação: o de Direito codificado ou o costumeiro? O Direito escrito é próprio do sistema de origem romano-germânica, também denominado continental ou europeu, enquanto o Direito costumeiro ou consuetudinário, não escrito, é característica do sistema jurídico do Common Law, adotado pela Inglaterra, Estados Unidos, Canadá. Segundo Cogliolo, os romanos quiseram o código para evitar o Jus Incertum, o Direito não definido. Para René David, especialista francês em Direito Comparado, a superioridade do sistema continental sobre o anglo-americano, sob a ótica da segurança, é mais aparente do que real. Se o advogado francês, egípcio ou japonês pode explicar ao seu cliente o Direito aplicável ao seu caso, com maior facilidade do que o seu colega inglês, essa vantagem é mais ilusória, porque a visão que o Direito codificado oferece é apenas superficial. Os sistemas jurídicos da família romano-germânica apresentam um menor número de normas jurídicas as quais, por seu caráter mais genérico, conferem um maior poder discricional aos juízes na aplicação do Direito. Essa margem de apreciação, na sua opinião, é prejudicial à certeza do Direito.17 Entendemos que as deficiências da codificação, apontadas por René David, são naturalmente supridas pela valiosa contribuição da jurisprudência que registra, além do sentido, o alcance das normas jurídicas. O seu ponto de vista é contraditado por Kelsen que, ao referir-se às democracias parlamentares, afirma que “este sistema tem a desvantagem da falta de flexibilidade; tem, em contrapartida, a vantagem da segurança jurídica, que consiste no fato de a decisão dos tribunais ser, até certo ponto, previsível e calculável...”18 A codificação atende melhor, em termos gerais, às exigências de segurança do que o sistema consuetudinário, em que as normas se apresentam difusas.

65.3. Irretroatividade da Lei. No momento em que a lei penetra no mundo jurídico, para reger a vida social, deve atingir apenas os atos praticados na constância de sua vigência. O princípio da irretroatividade da lei consiste na impossibilidade de um novo Direito atuar sobre fatos passados e julgar velhos acontecimentos. A anterioridade da lei ao fato é o máximo princípio de segurança jurídica. É uma garantia contra o arbitrarismo. É conhecida a frase de Walker: “leis retroativas somente tiranos as fazem e só escravos se lhes submetem.”

Se a lei nova pudesse irradiar os seus efeitos sobre o passado e considerar defeituoso um negócio jurídico realizado à luz da antiga lei, a insegurança jurídica seria total e os demais princípios, que visam à certeza ordenadora, passariam a ter um valor apenas relativo. Conforme comentou Bonnecase, “se fosse permitido à lei destruir ou perturbar todo um passado jurídico regularmente estabelecido, a lei não representaria mais do que o instrumento da opressão e da anarquia”.19 O Direito brasileiro, acorde com o Direito Comparado, admite a retroatividade na hipótese em que a lei nova não venha ferir o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada20 (v. item 137).

65.4. Estabilidade Relativa do Direito. O legislador há de possuir a arte de harmonizar as duas forças atuantes no ordenamento jurídico do Estado, em sentidos opostos: a conservadora e a de

evolução. A estabilidade nas instituições jurídicas é anseio comum aos juristas e ao povo. Aos juristas,

porque é mais simples operar com leis enriquecidas pela doutrina e jurisprudência; ao povo, porque a experiência já lhe revelou o conhecimento vulgar de seus direitos e obrigações. Esta aspiração, por uma ordem jurídica estável, não configura o misoneísmo ou uma atitude reacionária, de vez que não consiste em uma pretensão absoluta e incondicional.21 A partir do momento em que uma lei se revela anacrônica, incapaz de atender às exigências modernas, a sua revogação por uma outra, adaptada aos valores e fatos da época, constitui um imperativo.

Como fato histórico que é, o Direito Positivo deve acompanhar o desenvolvimento social; não pode ser estático, enquanto a sociedade se revela dinâmica. A ordem jurídica que não evolui de acordo com os fatores sociais deixa de ser um instrumento de apoio e progresso, para prejudicar o avanço e o bem-estar social.22 Compete à política jurídica fixar os interesses sociais que, em determinado momento histórico, devem ser objeto de proteção jurídica. Para isto, verifica a conveniência e a oportunidade das mudanças jurídicas. Assim, o valor segurança não implica necessariamente a conservação do ordenamento vigente; não é de índole reacionária. Ainda que eventuais donos de poder lutem pela continuidade do Jus Positum em vigor a fim de preservarem seus privilégios, o valor segurança jurídica não se apresenta para dar fundamento ao statu quo.

O ideal é que a ordem jurídica se desenvolva em bases científicas e não a título de experiência ou sob impulsos emocionais. Ao introduzir uma nova lei no mundo jurídico, o legislador há de tê-la estudado o suficiente, para não ser surpreendido com efeito prático indesejado. Como um jogador de xadrez, que deve calcular os diversos desdobramentos possíveis, que podem advir de um lance em uma partida, o legislador deve estudar a sociedade e, com a mesma prudência, lançar uma nova lei no quadro social.

Tanto a ordem jurídica que não se altera diante do progresso quanto a que se transforma de maneira descontrolada atentam contra a segurança jurídica. Para a realização deste valor, é necessária a estabilidade relativa do Direito, ou seja, a evolução gradual das instituições jurídicas.