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O Paralelo entre a Moral e o Direito

INSTRUMENTOS DE CONTROLE SOCIAL

17. DIREITO E MORAL

17.4. O Paralelo entre a Moral e o Direito

17.4.1. Grécia e Roma. A Filosofia do Direito surgiu na Grécia antiga e, por este motivo, é natural que o exame da presente questão se inicie justamente ali, no berço das especulações mais profundas sobre o espírito humano. É opinião corrente entre os expositores da matéria, que os gregos não chegaram a distinguir, na teoria e na prática, as duas ordens normativas. O fato de o pensamento de Platão e Aristóteles registrar “la concepción de la moralidad como ordem interna”, como anota García Máynez, não induz à convicção de que ambos chegaram a distinguir o Direito da Moral. Em seus diálogos, Platão considerou a justiça como virtude, e Aristóteles, apesar de atentar para o aspecto social da justiça, considerou-a, dentro da mesma perspectiva, como o princípio de todas as virtudes.

O Estado grego não se limitava a dispor a respeito dos problemas sociais. Preocupado em desenvolver também uma função educativa, chegava a interferir nos assuntos particulares das pessoas, o que não suscitava polêmica. Não havia nascido ainda, conforme lembra-nos Abelardo Torré, a noção acerca dos direitos humanos fundamentais. Os gregos chegaram a distinguir apenas a ordem religiosa da ordem moral e, na opinião de alguns, nem sequer se aperceberam da especificidade dos dois segmentos

principais da Ética.

Ao espírito especulativo e teórico dos gregos correspondeu a índole pragmática dos romanos. Se as primeiras reflexões sobre o Direito originaram-se na Grécia, Roma foi a origem da Ciência do Direito. Foi lá que se formou o primeiro grande sistema jurídico, representado pelo Corpus Juris Civilis (ano 533 d.C.), considerado a ratio scripta. Essa primeira grande codificação do Direito soube situar os fenômenos jurídicos distintamente do plano da Moral. Roma, porém, não nos legou uma teoria diferenciadora. Ao definir o Direito como “a arte do bom e do justo”, o jurisconsulto Celso confundiu as duas esferas, de vez que o conceito de bom pertence à Moral. Os sempre invocados princípios Honeste

vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere (viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada

um o que é seu), formulados na Instituta de Justiniano e considerados como a definição romana de Direito, confirmam a não diferenciação doutrinária entre o Direito e a Moral, de vez que a primeira máxima – viver honestamente – possui caráter puramente moral. Alguns autores, conforme realça Ruiz Moreno, afirmam que os três princípios devem ser interpretados em conjunto e não separadamente, o que implicaria, então, a revisão da crítica apresentada. Em contrapartida às duas citações, indica-se a afirmação do jurisconsulto Paulo: Non omne quod licet, honestum est (nem tudo que é lícito é honesto). Apesar de não expressar qualquer critério diferenciador, é inegável que o autor referiu-se às esferas do Direito e da Moral.

17.4.2. Critérios de Tomásio, Kant e Fichte. Com o desaparecimento do Império Romano, a Europa experimentou uma fase de declínio cultural que, em alguns aspectos, a assemelhou aos povos primitivos. Em um longo período da Idade Média o Direito não se distinguiu da Moral e da Religião.

Foi Cristiano Tomásio, em sua obra Fundamenta Juris Naturae et Gentium, em 1705, quem formulou o primeiro critério diferenciador entre o Direito e a Moral. O jurista e filósofo alemão, com a sua teoria, pretendeu limitar a área do Direito ao foro externo das pessoas, negando ao poder social legitimidade para interferir nos assuntos ligados ao foro interno, reservado à Moral. O Direito se ocuparia apenas dos aspectos exteriores do comportamento social, sem se preocupar com os elementos subjetivos da conduta, ficando, assim, alheio aos problemas da consciência. A importância deste critério, do ponto de vista teórico, foi a de abrir uma perspectiva para aperfeiçoados estudos. A teoria de Tomásio apresenta uma dose de radicalismo: o Direito ocupando-se apenas do forum externum e a Moral voltando-se somente para o forum internum. Se, em linhas gerais, os dois processos normativos assim se caracterizam, em muitas situações vemos o Direito interessar-se pelo animus da ação, pelo elemento vontade, como acontece em matéria penal, onde a intenção do agente é de suma relevância à configuração do delito. A Moral, por outro lado, não se satisfaz apenas com a boa intenção, pois exige a

prática do bem. Ao elaborar essa teoria, Tomásio estava motivado por interesse de natureza política,

pois pretendeu subtrair da esfera de competência do Estado as questões referentes ao pensamento, à liberdade de consciência, à ideologia, ao credo religioso. Foi influenciado também pelo fato de que eram comuns, naquela época, os processos de heresia e magia, em que se procurava, pela tortura, descobrir a intenção dos acusados.

Emmanuel Kant e Fichte levaram avante a concepção de Tomásio reproduzindo-a com alguns acréscimos. Para o filósofo de Koenigsberg, uma conduta se põe de acordo com a Moral, quando tem por motivação, unicamente, o respeito ao dever, o amor ao bem. Quanto ao Direito, este não tem de se preocupar com os motivos que determinam a conduta, senão com os seus aspectos exteriores. Em duas máximas, expõe o seu pensamento. Em relação à Moral: “aja de tal maneira que a máxima de teus atos possa valer como princípio de legislação universal.” Ao mesmo tempo em que reconhece a autonomia da

consciência, exige que a conduta possa servir de modelo para o homem, pois somente assim terá valor moral. Em relação ao Direito: “procede exteriormente de tal modo que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com o arbítrio dos demais, segundo uma lei universal de liberdade”. Por esta máxima, infere-se que o fundamento do Direito repousa na liberdade.

Fichte exagerou a distinção kantiana, colocando distâncias que se afiguram verdadeiro abismo entre o Direito e a Moral. Partiu da premissa de que o Direito permite situações que a Moral não concorda, como seria o caso de um credor poder levar o seu devedor ao estado de pobreza e miséria. Para Del Vecchio, contudo, só haveria contradição entre os dois setores da Ética se o Direito obrigasse a uma conduta proibida pela Moral.9 Com a divulgação das teorias que consideravam o Direito e a Moral como dois processos desvinculados, quase estranhos, surgiu uma reação por parte de muitos pensadores, preocupados com uma recolocação do problema, com o objetivo de reaproximar, na Filosofia do Direito, as duas ordens.

17.4.3. Modernos critérios de distinção. São várias as teorias, fórmulas e critérios de distinção, atualmente apresentados. Todos têm sido alvo de críticas, a tal ponto que se corre o risco de um recuo histórico, à época em que as normas éticas constituíam um todo homogêneo e indiferenciado. Para o exame da matéria, parece-nos obrigatório o método adotado por Alessandro Groppali, que traça o paralelo entre o Direito e a Moral, separando os aspectos forma e conteúdo.10

17.4.3.1. Distinções de ordem formal

a) A Determinação do Direito e a Forma não Concreta da Moral – Enquanto o Direito se manifesta

mediante conjunto de regras que definem a dimensão da conduta exigida ou fórmula de agir, a Moral, em suas três esferas, estabelece uma diretiva mais geral, sem particularizações.

b) A Bilateralidade do Direito e a Unilateralidade da Moral – As normas jurídicas possuem uma

estrutura imperativo-atributiva, isto é, ao mesmo tempo em que impõem um dever jurídico a alguém, atribuem um poder ou direito subjetivo a outrem. Daí se dizer que a cada direito corresponde um dever . Se o trabalhador possui direitos, o empregador possui deveres. A Moral apresenta uma estrutura mais simples, pois impõe deveres apenas. Perante ela, ninguém tem o poder de exigir uma conduta de outrem. Fica-se apenas na expectativa de o próximo aderir às normas. Assim, enquanto o Direito é bilateral, a Moral é unilateral. Chamamos a atenção para o fato de que este critério diferenciador não se baseia na existência ou não de vínculo social. Se assim o fosse, seria um critério ineficaz, pois tanto a Moral quanto o Direito dispõem sobre a convivência. A esta qualidade vinculativa, que ambos possuem, utilizamos a denominação alteridade, de alter, outro. À característica apontada do Direito, Miguel Reale prefere denominar bilateralidade atributiva.11 No quadro comparativo que apresenta sobre os campos da

Ética, assinala a bilateralidade como característica da Moral. O autor distingue, portanto, a bilateralidade atributiva da simples bilateralidade, termo este que emprega no sentido de liame ou vínculo social.

c) Exterioridade do Direito e Interioridade da Moral – A partir de Tomásio, surgiu o presente

critério, desenvolvido por Kant, posteriormente, e conduzido ao extremo por Fichte. Afirma-se que o Direito se caracteriza pela exterioridade, enquanto a Moral, pela interioridade. Com isto se quer dizer, modernamente, que os dois campos seguem linhas diferentes. Enquanto a Moral se preocupa pela vida interior das pessoas, como a consciência, julgando os atos exteriores apenas como meio de aferir a intencionalidade, o Direito cuida das ações humanas em primeiro plano e, em função destas, quando

necessário, investiga o animus do agente. Este critério nos parece verdadeiro para as esferas da Moral autônoma e religiosa sem atingir a Moral social. Partindo da premissa de que não há atos puramente externos, porque as ações revelam sempre algo que se passa no interior, Elías Díaz prefere outra terminologia: atos interiorizados e exteriorizados.12 Os primeiros figuram apenas no plano do pensamento, enquanto os exteriorizados, que já possuem una zona de intencionalidad, têm uma dimensão objetiva, mostram-se externamente. Para o jusfilósofo espanhol, o Direito se limita aos atos exteriorizados, enquanto a Moral se ocupa tanto dos interiorizados quanto dos exteriorizados. Este critério, como o próprio autor confessa, não é decisivo, mas é importante ao afirmar que o Direito não deve interferir no plano do pensamento, da consciência, dos atos que não se exteriorizam.

d) Autonomia e Heteronomia – De uma forma generalizada, os compêndios registram a autonomia, querer espontâneo, como um dos caracteres da Moral. Nesta parte, é indispensável a distinção suscitada

por Heinrich Henkel. Se a adesão espontânea ao padrão moral é inerente à Moral autônoma e peculiar à Ética superior, o mesmo não ocorre em relação à Moral social. Diante do conjunto de exigências morais que a sociedade formula a seus membros, o agente se sente compelido a seguir os mandamentos. Neste setor, não há espontaneidade da consciência. O fenômeno que se dá é o de adaptação das condutas aos padrões morais que a sociedade elege. A Moral social, portanto, não é autônoma.

Em relação ao Direito, este possui heteronomia, que significa sujeição ao querer alheio. As regras jurídicas são impostas independentemente da vontade de seus destinatários. O indivíduo não cria o

dever-ser, como acontece com a Moral autônoma. A regra jurídica não nasce na consciência individual,

mas no seio da sociedade. A adesão espontânea às leis não descaracteriza a heteronomia do Direito.

e) Coercibilidade do Direito e Incoercibilidade da Moral – Uma das notas fundamentais do Direito

é a coercibilidade. Entre os processos que regem a conduta social, apenas o Direito é coercível, ou seja, capaz de adicionar a força organizada do Estado, para garantir o respeito aos seus preceitos. A via normal de cumprimento da norma jurídica é a voluntariedade do destinatário, a adesão espontânea. Quando o sujeito passivo de uma relação jurídica, portador do dever jurídico, opõe resistência ao mandamento legal, a coação se faz necessária, essencial à efetividade. A coação, portanto, somente se manifesta na hipótese da não observância dos preceitos legais. A Moral, por seu lado, carece do elemento coativo. É incoercível. Nem por isso as normas da Moral social deixam de exercer uma certa intimidação. Consistindo em uma ordem valiosa para a sociedade, é natural que a inobservância de seus princípios provoque uma reação por parte dos membros que integram o corpo social. Essa reação, que se manifesta de forma variada e com intensidade relativa, assume caráter não apenas punitivo, mas exerce também uma função intimidativa, desestimulante da violação das normas morais (v. item 44).

17.4.3.2. Distinções quanto ao conteúdo

a) O Significado de Ordem do Direito e o Sentido de Aperfeiçoamento da Moral – Ao dispor sobre

o convívio social, o Direito elege valores de convivência. O seu objetivo limita-se a estabelecer e a garantir um ambiente de ordem, a partir do qual possam atuar as forças sociais. A função primordial do Direito é de caráter estrutural: o sistema de legalidade oferece consistência ao edifício social. A realização individual, o progresso científico, tecnológico e o avanço da Humanidade passam a depender do trabalho e discernimento do homem. A Moral visa ao aperfeiçoamento do ser humano e por isso é absorvente, estabelecendo deveres do homem em relação ao próximo, a si mesmo e, segundo a Ética superior, para com Deus. O bem deve ser vivido em todas as direções.

b) Teorias dos Círculos e o “Mínimo Ético”:

1o) A teoria dos círculos concêntricos – Jeremy Bentham (1748-1832), jurisconsulto e filósofo inglês, concebeu a relação entre o Direito e a Moral, recorrendo à figura geométrica dos círculos. A ordem jurídica estaria incluída totalmente no campo da Moral. Os dois círculos seriam concêntricos, com o maior pertencendo à Moral. Desta teoria, infere-se: a) o campo da Moral é mais amplo do que o do Direito; b) o Direito se subordina à Moral. As correntes tomistas e neotomistas, que condicionam a validade das leis à sua adaptação aos valores morais, seguem esta linha de pensamento.

2o) A teoria dos círculos secantes – Para Du Pasquier, a representação geométrica da relação entre os dois sistemas não seria a dos círculos concêntricos, mas a dos círculos secantes. Assim, Direito e Moral possuiriam uma faixa de competência comum e, ao mesmo tempo, uma área particular independente.

De fato, há um grande número de questões sociais que se incluem, ao mesmo tempo, nos dois setores. A assistência material que os filhos devem prestar aos pais necessitados é matéria regulada pelo Direito e com assento na Moral. Há assuntos da alçada exclusiva da Moral, como a atitude de gratidão a um benfeitor. De igual modo, há problemas jurídicos estranhos à ordem moral, como, por exemplo, a divisão da competência entre a Justiça Federal e a Estadual.

3o) A visão kelseniana – Ao desvincular o Direito da Moral, Hans Kelsen concebeu os dois sistemas

como esferas independentes. Para o famoso cientista do Direito, a norma é o único elemento essencial ao Direito, cuja validade não depende de conteúdos morais.

4o) A teoria do “mínimo ético” – Desenvolvida por Jellinek, a teoria do mínimo ético consiste na ideia de que o Direito representa o mínimo de preceitos morais necessários ao bem-estar da coletividade. Para o jurista alemão toda sociedade converte em Direito os axiomas morais estritamente essenciais à garantia e preservação de suas instituições. A prevalecer essa concepção o Direito estaria implantado, por inteiro, nos domínios da Moral, configurando, assim, a hipótese dos círculos

concêntricos.

Empregamos a expressão mínimo ético para indicar que o Direito deve conter apenas o mínimo de conteúdo moral, indispensável ao equilíbrio das forças sociais, em oposição ao pensamento do máximo

ético, exposto por Schmoller. Se o Direito não tem por finalidade o aperfeiçoamento do homem, mas a

segurança social, não deve ser uma cópia do amplo campo da Moral; não deve preocupar-se em trasladar para os códigos todo o continente ético. Diante da vastidão do território jurídico, não se pode dizer que o

mínimo ético não seja expressivo. Basta que se consulte o Código Penal para certificar-se de que o

mencionado bem-estar da coletividade exige uma complexidade normativa. A não adoção dessa teoria, assim interpretada, implicaria a acolhida do máximo ético, pelo qual o Direito deveria ampliar a sua missão, para reger, de uma forma direta e mais penetrante, a problemática social.13