• Nenhum resultado encontrado

Interpretação estratificada do contexto social em TG&R (Adaptado de Martin 1984/2010: 20)

Parte I Enquadramento teórico

Diagrama 1.2. Interpretação estratificada do contexto social em TG&R (Adaptado de Martin 1984/2010: 20)

Em consonância com esta interpretação estratificada, a exposição divide-se agora em dois subpontos, de modo a esclarecer as particularidades técnicas dos dois sistemas. Antes, porém, de tecnicizar os conceitos de género e registo, julgamos ser apropriado caracterizá-los em termos de senso (mais) comum. Tal como propõe Martin (1992, 1984/2010, 2014a) pode estabelecer-se um paralelismo entre os referidos conceitos e os conceitos de “contexto de cultura” e de “contexto de situação” propostos por Malinowski (1923, 1935). Devido a dificuldades de tradução de dados orais recolhidos na Papua Nova Guiné, Malinowski concluiu que um texto é incompreensı́vel quando se desconhece: (i) a atividade imediata em que participam os interlocutores, i.e. o contexto de situação, e (ii) a cultura em que se integram estes interlocutores e as suas atividades, i.e. o contexto de cultura. Assim, e desenvolvendo o paralelismo, a soma das práticas sociais (e portanto linguı́sticas) que definem uma cultura equivalem aproximadamente ao conceito de género e a soma das práticas sociais (e portanto linguı́sticas) que definem os múltiplos cenários interacionais dentro da cultura, ao conceito de registo21.

Vejamos, então, nos dois pontos seguintes, a caracterização técnica dos conceitos de género e registo.

21 Como esclarece Martin (2014a) os termos “contexto de cultura” e “contexto de situação” propostos por

Malinowski não são equivalentes aos conceitos “género” e “registo”, tendo sido inicialmente sugeridos por Martin como glosas intertextuais para tornar a Teoria de Género e Registo (mais) acessı́vel a professores (Martin 1984/2010). Ainda que o uso dos termos “contexto de cultura” e “contexto de situação” (referentes aos sistemas de género e de registo) seja generalizado em LSF (e.g. Christie e Derewianka 2008, Coffin 2006, Martin e Rose 2008), neste trabalho, adotaremos unicamente os conceitos “género” e “registo”.

20 1.2.1 Género

O termo género serve dois usos distintos na TG&R. Por um lado, refere-se à cultura enquanto sistema de significado; neste uso, género constitui um nome próprio não flexionável em número. Por outro, a mesma palavra refere-se aos géneros individuais que integram este sistema. Isto é, entende-se que cada cultura possui e faz uso de um conjunto alargado, embora finito, de géneros e que é a soma desses géneros individuais, organizados numa rede sistémica, que permitem definir semioticamente a cultura. Neste segundo uso, “género” constitui um nome comum sujeito à subclassificação (e.g. “o género instrução”) e à flexão em número (e.g. “os géneros da didática das ciências”).

De um ponto de vista técnico, Martin e Rose (2008) definem os géneros como padrões de significado recorrentes que concretizam e representam as práticas sociais de uma cultura22. Um

primeiro aspeto crucial nesta definição é o facto de os géneros serem entendidos como configurações semióticas recorrentes. Segundo este entendimento, a pertença (ou não) de um género a uma determinada cultura é apurada em função da sua frequência de uso. Além disso, presume-se que os géneros constituem padrões de significado mais ou menos estáveis e que há margem para a variação diacrónica (na medida em que o conjunto de géneros que define uma cultura pode mudar com o tempo23) e sincrónica (visto que dois textos de um mesmo género

podem apresentar caracterı́sticas ligeiramente distintas) (Martin 1997: 236).

Um segundo aspeto fundamental da mesma definição, porventura implı́cito, é o facto de as culturas se esgotarem semioticamente no género. O mesmo equivale a dizer que não é possı́vel veicular significado numa cultura exceto por meio dos géneros (re)conhecidos pelos seus membros24. Neste mesmo sentido se compreende a definição do contexto de cultura de Coffin

(2006: 27) (leia-se, o género) como “a soma de todos os significados possı́veis numa determinada cultura”25.

Encontra-se frequentemente, na literatura, uma segunda definição do conceito de género, nomeadamente em Martin (1997, 2000), Eggins e Martin (1997) ou Martin e Rose (2008) (cf. Gouveia 2013, Avelar 2008: 60). Para sermos precisos, não se trata de uma definição distinta, mas, sim, de uma formulação alternativa, de uma operacionalização da definição original, acima

22 Confira-se a formulação original, em inglês: “[i]n functional linguistics terms what this means is that

genres are defined as a recurrent configuration of meaning and that these recurrent configurations of meaning enact the social practices of a given culture.” (Martin e Rose 2008: 6).

23 Pode, então, falar-se em géneros “maduros” ou “estabelecidos”, por oposição a géneros “emergentes” e

géneros “em declı́nio” (cf. Rose e Martin 2012: 54, Martin e Rose 2008: 242).

24 Nas palavras de Martin (2000: 53), não isentas de humor: “[o]ur law of genre was something like “you

cannot not mean genres”.”

25 No original: “[w]ithin SFL, the cultural context is seen as playing an important role in shaping meanings.

Indeed the “context of culture”, as it is more technically referred to, is sometimes described as the sum of all the meanings it is possible to mean in a particular culture (…) or “sub”-culture such as an academic discipline or school subject.” (Coffin 2006: 27).

21

reproduzida. Esta segunda formulação, de ı́ndole mais prática (referida, no original, como working definition), visa orientar o mapeamento genológico de culturas, orientar a análise de textos particulares e facilitar a apreensão da TG&R e/ou da Pedagogia de Género por parte de professores. Segundo a definição em questão, os géneros são entendidos como processos sociais, faseados e orientados para fins especı́ficos. Diz-se que são faseados porque tendem a organizar- se em mais do que um momento ou etapa de significado, havendo uma sensação de incompletude quando não se realizam todas as etapas previstas. Entende-se que estão orientados para um fim especı́fico porque visam a concretização de propósitos sociocomunicativos26 válidos numa dada

cultura. Por fim, são caracterizados como sociais porque permitem aos falantes de uma cultura interagir socialmente; isto é, realizar tarefas para e com os outros27.

Assumem particular relevância, neste estudo, as dimensões intencional e faseada dos géneros, que passamos a explicitar com mais detalhe.

Na TG&R, o propósito sociocomunicativo não é encarado como prévio, externo ao género, situado no plano das intenções, porventura subjetivas28. Diferentemente, o propósito é concebido

como sendo realizado por meio do género (Martin 1997: 236). O propósito constitui, assim, a principal força configuradora dos géneros, que motiva escolhas ao nı́vel do registo e que determina a sua realização textual, gramatical e lexical. Deste mesmo entendimento decorre a premissa de que é possı́vel identificar e estabelecer relações entre géneros à luz do seu propósito29, seja agrupá-los em famı́lias, seja, em última instância, mapear culturas enquanto

sistemas genológicos.

O propósito sociocomunicativo raramente é tornado verbalmente explı́cito, antes constitui um significado implı́cito, metatextual, que se realiza por meio de um conjunto previsı́vel de passos ou unidades de significado. Por conseguinte, a principal evidência linguı́stica dos géneros é a sua organização discursiva e, em termos práticos, o cerne da análise de género reside na identificação

26 O termo original em inglês é “social purpose” (e.g. Rose e Martin 2012: 128). A' semelhança de Gouveia

(2013) preferimos a designação “propósito sociocomunicativo” que faz referência tanto à dimensão social como comunicativa da razão de ser dos géneros.

27 Confira-se também a seguinte definição de Rose e Martin (2012), concebida especificamente na

perspetiva de quem escreve:

social because we are inevitably trying to communicate with readers (even if they do not immediately read or respond to our work), goal-oriented because we always have a purpose for writing and feel frustrated if we do not accomplish it, and staged because it usually takes us more than one step to achieve our goals. (Rose e Martin 2012: 54; negrito original)

28 Não se trata, pois, de uma visão mentalista do uso da lı́ngua.

29 Admitindo que um mesmo género pode apresentar dois ou mais propósitos sociocomunicativos, Rose e

Martin (2002: 22) distinguem entre propósito “principal” ou “global” e propósito(s) “secundário(s)”. Assumimos, neste trabalho, que o propósito principal é responsável pela geração e a configuração do género na sua globalidade, realizando-se por meio de padrões de significado explı́citos. Um propósito é secundário, por outro lado, quando motiva apenas uma passagem restrita dentro do género ou, nos casos em que afeta o género na sua globalidade, quando é realizado por meio de padrões de significado menos explı́citos.

22 desses momentos estruturais30.

Na análise de género ou, melhor, na análise da estrutura genológica são considerados dois tipos de unidades de significado: as etapas e as fases. Estas unidades distinguem-se essencialmente em função do seu âmbito: o propósito sociocomunicativo é codificado em etapas, que se codificam, por seu turno, em fases31. Cada etapa e cada fase contribui, de forma distinta,

embora complementar, para a realização do propósito sociocomunicativo global do género (i.e. cada unidade genológica tem o seu propósito dentro do propósito global).

As etapas, de natureza mais abrangente e abstrata do que as fases, constituem elementos genológicos relativamente fixos e previsı́veis. Seguindo Labov e Waletzky (1967), Martin e Rose (2008) distinguem entre etapas obrigatórias ou definidoras e etapas opcionais. As etapas definidoras ocorrem em todas as instanciações canónicas de um género e são indispensáveis à realização do propósito sociocomunicativo. Quanto às etapas opcionais, estas podem, ou não, ocorrer nas instanciações canónicas sem prejuı́zo para a realização do propósito sociocomunicativo. Note-se, ainda, que as etapas, e principalmente as de caráter obrigatório, obedecem a uma ordem fixa.

As fases, em contraste, caracterizam-se pela sua natureza mais instável, podendo ou não ocorrer em textos particulares, não estando presas a uma ordem pré-estabelecida. Por outras palavras, enquanto as etapas são determinadas ao nı́vel da cultura, as fases parecem estar mais dependentes de opções situacionais e/ou pessoais de quem fala/escreve (cf. Rose e Martin 2012: 54). Martin e Rose (2008) resumem do seguinte modo a diferença entre as etapas e as fases:

While the stages of a genre are relatively stable components of its organisation, that we can recognize in some form in text after text of the genre, phases within each stage are much more variable, and may be unique to the particular text. Stages unfold in highly predictable sequences, but phases may or may not occur within any stage, and in variable sequences. (Martin e Rose 2008: 82)

A extensão das etapas e das fases varia de texto para texto. Ainda assim, Martin (1994) defende que os géneros, quando realizados por via da escrita, raramente excedem uma página, sendo frequentemente mais curtos32. As fases tendem a expressar-se por meio do parágrafo,

30 Como ficará claro na secção 1.3, adiante, os passos ou momentos de um género são eles próprios

realizados por meio de configurações particulares de recursos lexicais, gramaticais e grafológicos/fonológicos.

31 Note-se, porém, que se admite a possibilidade de uma etapa se realizar por meio de uma única fase. 32 Como se pode ler na abertura do artigo, marcada pelo seu humor:

My computer screen is too small - it doesn't hold a page. Maybe this shouldn't matter, but it seems to. (…) I should be used to it. But I still miss having a page. (…) I want my page.

As a linguist interested in genre, I'm also worried about the page. Most of the texts my colleagues and I have been developing genre theory around fit snugly into a page (…). Sometimes they are a little longer, but by choosing a smaller font we can squeeze them into a page. (Martin 1994: 29)

23

enquanto as etapas se apresentam como uma sequência de parágrafos ou, no caso limite, em que uma etapa se realiza numa única fase, por meio de um parágrafo simples (Martin e Rose 2003/2007).

No presente trabalho, e seguindo convenções de Martin e Rose (2008) e Rose (2011c), os géneros dos manuais de CN são nomeados à luz do seu propósito sociocomunicativo e grafados com letra inicial minúscula. As etapas e as fases são nomeadas em conformidade com o seu contributo particular na consumação do propósito global do género. As etapas são grafadas com letra inicial maiúscula e as fases com letra inicial minúscula. A estrutura genológica é representada pelo alinhamento das etapas obrigatórias e opcionais, encontrando-se as etapas separadas pelo sı́mbolo “^”, que denota sequenciação lógica. As etapas opcionais são delimitadas por meio de parêntesis curvos. As fases, não sendo configuradoras do género, não integram a estrutura genológica, podendo ser identificadas à parte, sempre que se mostram (relativamente) estáveis ao nı́vel do sistema. As convenções genológicas podem ser conferidas na Tabela 1.1., adiante, que oferece uma caracterização do género instrução33, em função do seu propósito global,

da sua estrutura genológica e das suas fases.

Género instrução Propósito

sociocomunicativo

Instruir como se faz uma determinada atividade

Em didática das ciências, trata-se sobretudo de instruções para a realização de experiências e de observações cientı́ficas

Etapas (Objetivo) ^ Equipamento e material ^ Método

Fases A etapa Método é, habitualmente, realizada por um conjunto de passos Tabela 1.1. Género instrução: propósito, estrutura genológica e fases

Para terminar esta secção dedicada à caracterização teórica do género, importa esclarecer ainda que o género pode ser encarado tanto na perspetiva do sistema, como na perspetiva da instanciação desse sistema em textos particulares, atendendo ao princı́pio de instanciação discutido anteriormente (cf. secção 1.1). Enquanto sistema, os géneros correspondem aos padrões de significado recorrentes ou “validados” pela cultura (e apenas a esses padrões). Como aponta Martin (2012), estes padrões podem ser definidos como “canónicos”. Os textos, sendo instanciações desse sistema, podem confirmar estes padrões culturalmente estabelecidos ou, pelo contrário, apresentar divergências. E*, aliás, a frequência de uso das divergências, seja no espaço, seja no tempo, que está na base de eventuais reconfigurações sistémicas. Quando se trata de divergências menos regulares, por seu turno, estas devem ser interpretadas como instanciações

24

atı́picas ou não canónicas de um género particular e/ou de um sistema genológico34.

Como se tornará claro mais adiante, a distinção entre género (sistema) e texto (instanciação) revela-se particularmente útil na análise genológica de textos de manuais de CN. Na Parte II deste trabalho, procuramos definir os manuais de CN enquanto sistema genológico. Na parte III, por outro lado, analisamos em pormenor duas instanciações particulares do género relatório classificativo. Em diversos aspetos, os textos focados desviam-se das caracterı́sticas canónicas apresentadas na Parte II.

1.2.2 Registo

O contexto situacional, enquanto força motivadora e estruturante mais imediata dos textos, é teorizado em LSF por meio do conceito de registo. Tal como sucede com a palavra “género”, também a palavra “registo” reporta a duas realidades distintas. Por um lado, o registo pode ser definido como um sistema semiótico; por outro pode reportar-se à instanciação desse sistema semiótico, i.e. às variáveis situacionais de um texto particular.

Segundo a definição de registo proposta por Halliday (e.g. Halliday 1985, Halliday e Matthiessen 2004), qualquer situação interacional – situação que envolve semiose – pode ser analisada segundo três dimensões complementares. Estas dimensões, designadas (i) campo, (ii) relações e (iii) modo, dizem respeito, respetivamente, (i) à atividade social em que participam os interlocutores, (ii) às relações sociais pré-existentes ou instanciadas entre eles e (iii) ao papel desempenhado pela lı́ngua na troca de informação e/ou de serviços/bens35.

As três dimensões de registo são concebidas como estando simultaneamente presentes em qualquer contexto situacional e como afetando a realização dos textos, seja em termos dos seus padrões semânticos, seja em termos dos seus padrões lexicogramaticais. Considerando que variações de registo motivam variações textuais especı́ficas, as dimensões de campo, relações e modo respondem também à designação coletiva de variáveis de registo.

As variáveis de registo podem ser parafraseadas, por meio de uma metalinguagem de senso comum, como (i) o “quê”, (ii) o “quem” e (iii) o “como” dos textos. Assim sucede, por exemplo, com alguma frequência, na literatura em LSF dirigida a um público não especializado (e.g. professores). Confira-se, a tı́tulo ilustrativo, a seguinte definição proposta em Christie e Derewianka (2008: 7,

34 Martin (2002: 264) chama a atenção para a necessidade de se analisar e, caso pertinente, categorizar os

casos (aparentemente) atı́picos que resultam da combinação de dois ou mais géneros num mesmo texto. Segundo argumenta este autor, deve evitar-se a designação genérica de géneros “mistos” ou “hı́bridos”, dado que (i) confunde sistema e instanciação e (ii) ignora a possibilidade de a combinação genológica ser uma prática culturalmente estabelecida. A combinação de dois ou mais géneros num mesmo texto (tecnicizada como “macrogénero”) não será explorada neste estudo

35 Para uma definição mais detalhada dos termos “campo”, “relações” e “modo” propostos por Halliday

25

itálicos originais): “At the level of the specific situation within the culture, we find the contextual variables of field (“what is going on?”), tenor (“who is involved?”) and mode (“what role is language playing”?).”

Assume-se, em LSF, que as três variáveis de registo se realizam, ao nı́vel do sistema linguı́stico, em três metafunções36. Mais concretamente, postula-se que a variável de campo se

realiza na metafunção ideacional, a variável de relações na metafunção interpessoal e a variável de modo na metafunção textual. O mapeamento das variáveis de registo nas metafunções linguı́sticas encontra-se representado multimodalmente no Diagrama 1.3, adiante. Note-se que o diagrama foca apenas parte do modelo de linguagem e(m) contexto da LSF discutido no Diagrama 1.2, em cima, dado omitir o nı́vel contextual do género.

Diagrama 1.3. Variáveis de registo e respetivas metafunções linguísticas

Outline

Documentos relacionados