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Parte I Enquadramento teórico

Capítulo 2 – Género e o conhecimento das Ciências Naturais

2.1 Premissas de base

2.1.3 O modelo representacional da escrita

Na nossa investigação, assumimos, por um lado, que a escrita constitui um modelo representacional distinto da oralidade e, por outro, que a escrita está intimamente ligada à geração e armazenamento do conhecimento cientı́fico.

De facto, a semiotização das relações especializadas dos campos cientı́ficos, e portanto dos seus géneros, está fortemente dependente da escrita, conforme se demonstra em Martin (1986) e Wignell, Martin e Eggins (1993). Contudo, esta dependência não se prende tanto com a função de representação grafológica da escrita, mas antes com o entendimento da escrita enquanto modelo de organização semiótica. Na verdade, entende-se que a condensação de significado potenciada pela escrita possibilita a acumulação de conhecimento.

A oralidade ou o modo oral de organização semiótica corresponde ao uso informal e quotidiano da lı́ngua e caracteriza-se pela sua organização eminentemente oracional. Conforme vimos antes, no Capı́tulo 1, a oração configura uma Figura semântica que tem por núcleo um Processo. Como explicam Halliday e Martin (1993: 126), esta representação da experiência é intrinsecamente dinâmica, produzindo significados relativos àquilo que acontece (e não àquilo

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que existe) e as entidades são definidas como contingências do fluxo dos acontecimentos81.

Diferentemente, o modo escrito caracteriza-se pela sua organização nominal, sendo na representação da experiência dada maior ênfase aos Participantes das Figuras semânticas. Esta representação é essencialmente estática, produzindo significados relativos àquilo que existe (e não àquilo que acontece) e os Processos servem sobretudo para relacionar entidades e produtos. Estes dois modos de significação, fortemente distintos, representam momentos de desenvolvimento (ontogenéticos) diferentes, estando associados a diferentes necessidades do uso da lı́ngua. Halliday (2004) distingue entre o estilo dórico e o estilo ático. O estilo dórico corresponde ao modo oracional, dinâmico e lexicogramaticalmente mais expandido, que é tı́pico da oralidade. O estilo ático corresponde ao modo essencialmente nominal, estático e lexicogramaticalmente mais sinótico, que é tı́pico da escrita. O estilo dórico é necessariamente anterior do ponto de vista da evolução do discurso cientı́fico e é motivado historicamente pelas necessidades de documentação do conhecimento especializado. O modo ático tem a sua origem no modo dórico, resultando na verdade de um conjunto de processos de derivação gramatical. As especificidades gramaticais do modo ático têm repercussões diretas na interpretação e na representação da realidade.

Como explicam Martin (1986) e Wignell (1987), o mundo semiotizado por meio da escrita distingue-se do da oralidade em três aspetos fundamentais e correlacionados: (i) encaixe recursivo de constituintes nominais, (ii) elevada densidade lexical e (iii) “empacotamento”82 de

significados por meio da metáfora gramatical. São precisamente estes aspetos que possibilitam a construção do discurso técnico e especializado.

Estas três propriedades fundamentais e indissociáveis do modo da escrita refletem-se, por exemplo, em grupos nominais de difı́cil compreensão. Como se explica em Rose e Martin (2012: 249), “[Q]ualifiers get embedded within Qualifiers, which is common in writing, forming very long nominal groups that students often find hard to understand.” A associação entre a recursividade

81 No original pode ler-se:

The gateway through which meanings are brought together and realized in ordinary grammar is the clause; and the clause nucleus is a happening (…). So natural languages represent reality as what happens, not as what exists; things are defined as contingencies of the flow. (Halliday e Martin 1993: 126)

82 Neste trabalho, empregamos os termos “empacotar”/“empacotamento” e “desempacotar”/

“desempacotamento” como traduções dos termos ingleses packing and unpacking, respetivamente. Não se tratando de termos técnicos no verdadeiro sentido da palavra, são, ainda assim, fundamentais no repertório metalinguı́stico da LSF. O termo empacotar/packing refere-se à condensação e à realização gramaticalmente incongruente de significados, em particular, por meio de metáforas ideacionais. O termo desempacotar/unpacking reporta à reversão gramatical destas estruturas, o que envolve a sua realização gramaticalmente congruente e a explicitação de eventuais significados omissos.

Os termos que propomos para o português não serão, porventura, os mais elegantes. A proximidade semântica e formal com os termos originais em inglês é porém, fundamental para nós.

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do encaixe de constituintes nominais, a elevada densidade lexical e a metáfora gramatical pode ser ilustrada por meio da leitura da frase (a), citada de um manual de CN do corpus, e sua comparação com as paráfrases em (b) e (c):

(a) A cárie dentária corresponde à destruição do dente devido à degradação dos glícidos da dieta (em particular, de açúcares), feita por bactérias que vivem na boca. (Sales et al. 2011: 34) (b) O ser humano ingere alimentos. Uma parte dos alimentos fica agarrada aos dentes. Os

alimentos contêm glícidos. Na boca do ser humano vivem bactérias. (As bactérias são seres unicelulares. As bactérias pertencem ao Reino Monera.) As bactérias degradam os glícidos. Os açúcares são um tipo de glícido. As bactérias degradam, em particular, os açúcares. A atividade das bactérias pode destruir os dentes. A cárie dentária é o que resulta desse processo. (c) O que é a cárie dentária? Quando comemos, uma parte da comida fica agarrada aos dentes. Na

comida existem vários nutrientes, um deles chama-se glícidos. Um exemplo de glícidos são os açúcares. Na boca vivem milhares de bactérias. (As bactérias são seres que têm uma só célula e que pertencem ao Reino Monera.) As bactérias degradam os glícidos agarrados aos dentes. Degradam sobretudo os açúcares. Quando isso acontece, os dentes ficam com cáries.

Como se pode ler em (a), a definição da cárie dentária inclui dois nomes (destruição e degradação) onde se encontram condensados vários eventos materiais, isto é, que envolvem processos e agentes de transformação. Para desempacotar os diferentes momentos da mudança no mundo fı́sico e identificar de forma explı́cita todas as entidades neles envolvidas, é necessário elaborar um grande número de frases como, por exemplo, por meio da paráfrase (b) ou (c) em que se procurou formular as Figuras completas e evitar o uso de orações dependentes.

Não havendo uma única forma de realizar esta tarefa, o facto é que estes dois exercı́cios de desconstrução da frase (a) tornam evidente a quantidade de Figuras que pode ser integrada numa mesma oração por meio do encaixe recursivo de constituintes nominais. A frase (a) mostra como, no modo escrito, se amplia, de facto, e em teoria indefinidamente, o número de potenciais Figuras dentro de uma mesma oração e como, além disso, os vários eventos que implicam mudança e/ou transformação no mundo fı́sico são compactados e integrados numa oração principal de natureza relacional, e não material.

A este propósito importa esclarecer que a estruturação de tipo oracional dos eventos, associada ao modo oral, constitui uma realização congruente, enquanto a estruturação de tipo nominal configura uma realização incongruente ou metafórica. Na verdade, os dois modos de organização semiótica em foco, a escrita e a oralidade, equivalem, portanto, não apenas a estruturas gramaticais distintas mas sobretudo a formas diferentes de representar e conhecer o mundo.

O sistema semiótico da escrita caracteriza-se também pelo seu potencial de integração e condensação de informação recorrendo a mecanismos gramaticais. Em contrapartida, na oralidade, esta mesma acumulação é impossível, dada a sua estruturação predominantemente oracional e a sua forte dependência contextual, que não permite que se retome e se assuma informações proferidas noutro espaço ou tempo.

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A condensação de significado potenciada pela escrita, sublinhe-se, possibilita a acumulação de conhecimento. Como se lê em Halliday e Martin (1993: 131): “I am packaging the knowledge that has developed over a long series of preceding arguments and presenting it as 'to be taken for granted – now we can proceed to the next step'.” Trata-se, pois, de uma caracterı́stica determinante do registo escrito e, em particular, dos textos que constroem conhecimento especializado (cf. Halliday 1986, Schleppegrell 2004).

A condensação semiótica toma forma, entre outros aspetos, na expansão dos grupos nominais por meio de orações encaixadas83 e na combinação de várias orações num mesmo

complexo oracional, em particular por meio de relações de hipotaxe. Em ambas as situações, a estrutura resultante configura uma construção gramatical complexa.

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