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Os alunos L2 e os géneros da didática das Ciências Naturais

Parte I Enquadramento teórico

Diagrama 2.6. Taxonomia meronímica construída pelo texto

2.5 Os alunos L2 e os géneros da didática das Ciências Naturais

Com a presente investigação pretende-se formular respostas para um problema especı́fico: o facto de os alunos de L2 enfrentarem dificuldades significativas no acesso aos textos dos manuais escolares de CN. Nesta secção, apresentam-se os argumentos que motivam uma preocupação particular sobre a compreensão leitora do discurso da didática das ciências do ponto de vista dos alunos.

Segundo Schleppegrell (2004), a aprendizagem da lı́ngua da escola, ou, por outras palavras, a aprendizagem dos géneros escolares, constitui um fator determinante no percurso dos alunos. De facto, para aprender os conteúdos curriculares, é necessário aprender as várias maneiras de usar a lı́ngua para falar e escrever sobre esses mesmos conteúdos, i.e. os géneros. Porém, a leitura e a escrita são objeto de ensino explı́cito apenas nas aulas de lı́ngua, não existindo, de uma forma geral, uma prática de diálogo e de interação em torno dos textos que veiculam saberes cientı́ficos e especializados. Como descreve Schleppegrell (2004):

The classroom context of reading textbooks is often not one of dialogue and interaction. In fact, students will often read this kind of text silently or will read it aloud in teacher- directed activities where they do not have an opportunity to answer the questions and create the suggested dialogue. (Schleppegrell 2004: 141)

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é constitutiva do próprio conhecimento especializado que se ensina na escola. Como ficou exposto antes neste capı́tulo, em LSF presume-se que todo o conhecimento é significado expresso com e pela lı́ngua. Por conseguinte, no caso do conhecimento cientı́fico que se aprende na escola, o domı́nio do discurso especializado da ciência é crucial, facto sublinhado por Osborne (2002):

Central to such activity is the requirement to be literate in science. For such specialised discourse, knowledge of its content is a necessary condition but not sufficient, for sufficiency requires an ability to talk, read and write science. Literacy from this perspective is not a mere adjunct for the storage and transmission of information. Rather, as Norris & Phillips (2001) state, literacy becomes constitutive of science itself. For just as there can be no houses without roofs or windows, there can be no science without reading, talking and writing. And it is only these activities that will allow the learner to transcend the gulf that exists between knowing what is technically correct and having the competence and understanding ‘to say the “right” thing at the “right” time and in the “right” place’ (Gee, 1996). (Osborne 2002: 206)

A ausência de um ensino explı́cito significa que os géneros escolares constituem um currı́culo oculto. Na verdade, o ensino e o treino explı́cito da leitura e escrita dos géneros que fazem parte do processo de escolarização não são praticados, nem dentro, nem fora das aulas de lı́ngua. De uma forma geral, isto deve-se a uma visão mentalista da lı́ngua e à secundarização do trabalho sobre os textos. Mais concretamente, predomina a conceção do conteúdo enquanto entidade independente e separada da lı́ngua.

Segundo a perspetiva sociossemiótica da LSF, o facto de os géneros escolares constituı́rem um currı́culo oculto dificulta fortemente o acesso ao conhecimento especializado que esses géneros veiculam, para além de comprometer a própria aferição da sua aquisição por parte dos alunos (cf. Rose 2005). Trata-se de um problema, uma vez que a escola tem um papel crucial no ensino/aprendizagem dos usos linguı́sticos que lhe são especı́ficos (cf. Scarcella 2002). Nesta situação, paradoxal, tendem a ser favorecidos os alunos que, por várias razões alheias à escola, demonstram uma facilidade (mais ou menos aparente) em aceder aos conteúdos, ao mesmo tempo que são desfavorecidos os restantes alunos, geralmente a maioria.

Os géneros escolares dificilmente são adquiridos de forma tácita, por meio de uma espécie de imersão cultural, sendo, aliás, ilegı́timo assumir que a capacidade para compreender e produzir textos escolares faça parte de um desenvolvimento linguı́stico espontâneo (cf. Schleppegrell 2004: 153). Um vasto corpo de trabalhos de investigação enquadrados pela LSF e por outras teorias104 com uma abordagem igualmente social, e não cognitivista, evidenciam a

necessidade de um ensino explı́cito focado nas competências de leitura e de escrita. Confiram-se, entre outros, Christie (2002b), Christie e Derewianka (2008), Coffin (2008), Derewianka (1995, 2003), Gee (2004), Halliday e Martin (1993), Ravelli e Ellis (eds.) (2003) e Schleppegrell (2004).

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Entre as várias generalizações apontadas por estes trabalhos, destaque-se o facto de o desenvolvimento de competências de literacia nos géneros da escola envolver uma reaprendizagem/reconstrução do sistema linguı́stico e do conhecimento do mundo, envolvendo geralmente um efeito alienatório e de resistência por parte dos alunos (cf. Halliday e Martin 1993: 3). Trata-se, com efeito, de um desenvolvimento linguı́stico tardio, quer do ponto de vista da leitura, quer da escrita (Christie 2002, Christie e Derewianka 2008).

As dificuldades relacionadas com a aprendizagem da literacia manifestam-se, aliás, em todos os nı́veis linguı́sticos (cf. Scarcella 2002). De acordo com Halliday e Martin (1993:4), o primeiro limiar crı́tico verifica-se nos últimos anos do ensino primário e nos primeiros anos do ensino secundário, momento em que os alunos se deparam pela primeira vez com a lı́ngua das disciplinas. Significativamente, trata-se de um momento em que os alunos, que já sabem ler e escrever, no sentido da descodificação e identificação de significado literal, enfrentam a dificuldade de aceder aos conteúdos curriculares veiculados por meio do significado interpretativo dos textos (cf. Gee 2004: 15).

A aprendizagem das ciências tem sido estudada, considerando as situações especı́ficas dos alunos de lı́ngua materna (L1) e dos alunos de lı́ngua estrangeira (L2). As diversas dificuldades associadas ao uso da linguagem em contextos cientı́ficos incluem problemas com a fala, com a leitura, com a escrita e com a avaliação (cf. O'Toole e O'Toole 2004: 1202) e reportam-se a diferentes nı́veis de escolaridade (e.g. Gardner 1972, 1974, 1976, 1980, Lynch et al.1979, Matsuda et al. 2003, O’Toole 1996, 1997, Peacock 1995, Rosenthal 1996, Shaw e Dybdahl 1996).

As investigações têm-se debruçado predominantemente sobre o desenvolvimento da escrita105 (cf. Merino e Hammond 2002: 228-9), tendo sido dedicada pouca atenção ao papel da

leitura no processo de aprendizagem (cf. Monk e Osborne 2000: 97). No campo da leitura destacam-se, ainda assim, um conjunto de estudos dedicados ao vocabulário. Verificou-se que tanto as palavras técnicas, como as não técnicas constituem obstáculo à compreensão por parte de alunos de L1 e L2 (cf. Gardner 2004: 19-20). Entre os aspetos documentados, refira-se a constatação, porventura menos evidente, de que a generalidade dos alunos revela maior facilidade em compreender palavras técnicas, por oposição a palavras não técnicas106. Com base

em Lynch et al. (1979), pode ainda apontar-se o maior grau de dificuldade na compreensão de palavras que referem processos (no original: process words), por oposição a palavras que referem

105 Para uma comparação entre os processos de escrita ativados por alunos L1 e alunos L2, veja-se Carrell

e Eisterhold (1988) e Merino e Hammond (2002). No que respeita às caracterı́sticas da produção escrita, os alunos L2 evidenciam estruturas mais próximas da oralidade (Matsuda et al. 2003: 167) e revelam grande dificuldade no uso dos conectores discursivos (Schleppegrell 1996a, b).

106 Como se explica em Gardner (2004: 19-20): “This is because learning the meanings of words such as

carbohydrate and molecule is “an automatic consequence of studying the discipline which uses them” and they are often explained as they are introduced by science teachers whereas non-technical words (such as “valid”) are rarely explained.”

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Em suma, a par de uma redefinição do conceito de literacia cientı́fica, urge uma mudança na abordagem aos textos que veiculam os conteúdos escolares. Como aponta Martin (2013a), a escola deve assumir, de facto, a tarefa de ensinar a ler e a escrever os textos do currı́culo. Embora se trate de uma necessidade diagnosticada há muito tempo e fundamentada por uma vasta quantidade de estudos107, a implementação de estratégias pedagógicas orientadas para o ensino

explı́cito da literacia não é um ponto isento de controvérsia.

Na verdade, as estratégias pedagógicas vocacionadas para a aprendizagem da literacia entram em conflito com uma visão mentalista dos conteúdos escolares e da aprendizagem, isto é, com a conceção de que os conteúdos escolares são adquiridos independentemente da sua forma linguı́stica. Contudo, e como se evidencia nos capı́tulos que seguem na dissertação, o foco na literacia e no empowerment108 linguı́stico dos alunos é uma condição necessária para um ensino

mais eficaz. Assim se argumenta em Martin (2013a).

This would mean (…) spend more time learning to read and writing to learn (Christie, 2002; Rose & Martin, 2012). The reaction of most secondary classroom teachers to proposals of this kind is that the curriculum is so full that they have no time to teach reading and writing. However, given the incredible inefficiency of most of the oral communication that goes on, stranding most students in common sense over and over again as it does, perhaps it is time for a re-appraisal of what matters as far as knowledge building is concerned. Accumulating disciplinary knowledge (Freebody, Maton, & Martin, 2008) is after all something every teacher (excepting of course mother tongue language teachers) can agree on. What seems to be missing is awareness of what knowledge is, how it is organised and how power words, power grammar and power composition privilege writing as the mode of communication where uncommon sense knowledge is stored. Spoken language has a role to play, and its role has been carefully designed in the genre- based reading and writing programs of the Sydney School (Feez & de Silva Joyce, 2012; Rose & Martin, 2012). But advanced literacy is the key. It’s time to reclaim curriculum and pedagogy on behalf of all students, not just a privileged few, and start teaching the written discourse all students need to accumulate the high stakes knowledge secondary and tertiary education was intended to provide. (Martin 2013a: 34)

107 Esta é, aliás, uma preocupação crucial para a própria LSF, como mostra Christie (2004: 25): “The

learning of literacy requires overt instruction in order to do justice to its character and it has been in developing accounts of written language (e.g. Halliday 1985) and their pedagogical implications (e.g. Hammond 1990, Derewianka 1995) that SF theory has made a major contribution.”

108 O termo empowerment é essencial ao repertório metalinguı́stico da LSF e, em particular, da Escola de

Sydney. Refere-se à criação de condições de sucesso escolar para os alunos tradicionalmente negligenciados pelo sistema. Estas oportunidades acabam por conferir um maior poder a estes alunos, os quais, em consequência, poderão vir a ocupar, na escola e na sociedade em geral, posições que lhes estavam anteriormente vedadas. O termo empowerment é de difı́cil tradução para português. O equivalente mais próximo em termos semânticos e formais é “empoderamento”, que, infelizmente, deixa muito a desejar em termos de elegância linguı́stica. Adotaremos excecionalmente o termo original em inglês, ficando a sua tradução adiada para um momento futuro, apoiada numa discussão com outros investigadores.

78 2.6 Conclusão

Neste capı́tulo, apresentaram-se os três axiomas fundamentais para a conceptualização dos textos dos manuais de CN enquanto veı́culos de conhecimento especializado, a saber: (i) que há uma relação entre linguagem e conhecimento cientı́fico, (ii) que os campos cientı́ficos podem ser caracterizados como uma teia de relações especializadas de composição, classificação e sequenciação e que (iii) a escrita constitui um modelo representacional particular. Foi ainda traçada uma breve revisão da literatura sobre o discurso da ciência produzida no âmbito da LSF e, em particular, dos estudos genológicos enquadrados pela TG&R, sendo o eixo central do capı́tulo a caracterização do discurso da ciência à luz das relações de composição, classificação e sequenciação.

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