• Nenhum resultado encontrado

O conhecimento científico enquanto significado

Parte I Enquadramento teórico

Capítulo 2 – Género e o conhecimento das Ciências Naturais

2.1 Premissas de base

2.1.1 O conhecimento científico enquanto significado

No nosso trabalho, partimos do axioma “o conhecimento cientı́fico enquanto significado”, tal como se encontra formulado no original inglês, knowledge as meaning, em Martin (2013a).

52

O foco particular sobre a relação entre a linguagem e o conhecimento cientı́fico é objeto de uma vasta área de estudos que atravessa diferentes quadros teóricos e que remonta, pelo menos, à década de sessenta do século passado. Para uma revisão tanto diacrónica, como sincrónica do campo veja-se, por exemplo, Bennett (2003), Gardner (2004) ou O'Toole (1996). No campo restrito da LSF, a questão tem sido tratada em profundidade por Halliday (1998, 2004), Halliday e Martin (1993), Lemke (1990a, b, 1998), Martin (1986, 1990, 1998, 2013a), Martin e Painter (eds.) (1986), Martin e Rose (2008), Rose (1997, 1998), Rose, McInnes e Korner (1992), Unsworth (1997a, b, c, 1999a, b, c, 2001, 2004), Veel (1997, 1998), Wignell (1997), Wignell, Martin e Eggins (1993).

Apesar da heterogeneidade teórica abrangida pelas várias referências citadas, trata-se de uma área de estudo que assenta numa asserção fundamental comum, a saber a de que a lı́ngua constrói conhecimento. Esta asserção contraria a conceção da lı́ngua como instrumento inócuo ao serviço da expressão de conhecimento, como se pode conferir nas citações abaixo reproduzidas:

Almost all of what we customarily call ‘knowledge’ is language, which means that the key to understanding a subject is to understand its language. A discipline is a way of knowing, and whatever is known is inseparable from the symbols (…) in which the knowing is codified. What is biology (for example) other than words? If all the words that biologists use were subtracted from the language, there would be no biology.” (Postman e Weingarter 1971 apud Osborne 2002: 207)

Language is constitutive of meaning and social context, not simply a conduit or tool to transmit thought or reality.” (Veel 1997: 161; itálico original)

Language does not just correspond to reality, it construes reality. Lexical and grammatical choices construe particular interpretations and ways of thinking about the world. (Rothery 1996 apud Schleppegrell 2004: 142)

Na perspetiva da LSF, a construção linguı́stica do conhecimento é assegurada principalmente pela metafunção ideacional, a qual, como vimos anteriormente, no Capı́tulo 1, permite, ao ser humano, codificar a sua vivência de e no mundo, seja o mundo exterior, seja o mundo interior. Esta codificação envolve necessariamente uma (re)construção do real, impondo a língua um modelo experiencial. Assim se pode ler em Halliday e Matthiessen (2004: 29; negrito original): “there is no facet of human experience which cannot be transformed into meaning. In other words, language provides a theory of human experience.” Quer isto dizer que a forma como o ser humano vê o mundo é (também) condicionada pelo modo como o (re-)constrói linguisticamente, i.e. pela forma como decide (re-)construı́-lo, mais ou menos conscientemente, atendendo às possibilidades e limitações do sistema linguı́stico. Desta forma, a linguagem transforma o mundo natural num mundo naturalizado e semiotizado. Conforme pragmatiza Halliday (1998: 187): “The way things are is the way our grammar tells us they are.”

53

passa facilmente despercebida, podendo até parecer que a realidade equivale à forma como dela falamos ou que a lı́ngua é (apenas) um veı́culo para a transmissão de conhecimento, ele próprio de natureza extralinguı́stica. Fortemente enraizada na cultura ocidental, esta situação dá-se tanto entre o público leigo, como entre o público especializado (e.g. comunidade cientı́fica, comunidade escolar), conforme argumentam Osborne (2002) e Halliday e Martin (1993):

[T]he common conception (…) is that the discourse of science is essentially transparent and that language offers some unique ability to represent the physical world in an unambiguous manner (Lemke, 1990). From such a perspective, the primary difficulty associated with science is merely the acquisition of complex mental concepts and the mental processing required to develop understanding (Shayer & Adey, 1981). Implicit in such a view is a correspondence theory of language often coupled with a naive realism, both of which are positions that have long been philosophically questioned. (Osborne 2002: 208)

Given the view of language that prevails in western thought, it is natural to think of the language of science as a tool, an instrument for expressing our ideas about the nature of physical and biological processes. But this is a rather impoverished view of language, which distorts the relationship between language and other phenomena. (Halliday e Martin 1993: 4-5)

Significativamente, e como se lê em Osborne (2002: 208), a visão falaciosa de que linguagem e conhecimento são realidades distintas foi por mais de uma vez questionada filosoficamente. Da mesma forma, em LSF, concebe-se que não só há uma relação entre linguagem e conhecimento cientı́fico, mas que a própria linguagem determina a existência e a natureza do conhecimento cientı́fico. O contributo particular dos trabalhos em LSF reside em caracterizar o discurso da ciência à luz dos diferentes nı́veis contextuais e textuais do modelo de linguagem e(m) contexto. Segundo Halliday (1998: 187), a caracterização desse discurso parte de uma reflexão metalinguı́stica em torno da dimensão experiencial da gramática: “In the normal course of events we do not problematise this construal; it is our “taken for granted reality”, and we do not reflect on why the grammar theorises experience the way it does or whether it could have been done in some other way.”79. A reflexão metalinguı́stica, inaugurada por Halliday e enriquecida por outros

investigadores (e.g. Halliday 2004, Halliday e Martin 1993, Rose 1998, Wignell, Martin e Eggins 1993), mantém-se na base da investigação sistémico-funcional do discurso da ciência. Todavia, é estendida a outros nı́veis do modelo da TG&R, como o género e a semântica do discurso (e.g. Martin e Rose 2008, Veel 1997). Mais recentemente, o discurso da ciência tem sido estudado também à luz de outras modalidades semióticas, recebendo particular atenção a combinação de

79 Também para Martin, Matthiessen e Painter (1997) o aparato teórico da LSF oferece fundamentação

necessária para se escapar à armadilha epistemológica da visão desinformada. Mais concretamente, a teorização da gramática experiencial por meio do sistema de TRANSITIVIDADE:“It is easy to fall into the trap of thinking that there is some mode of objective phenomenal world that can be reflected in different ways in language (…); but there is not. We construe our experience actively by imposing organization.” (idem: 101; nota de rodapé)”.

54

significados verbais e visuais em textos multimodais (e.g. Lemke 1998, O’Halloran 1999, 2004, Martin 2007b, 2013b). Freebody, Maton e Martin (2008: 192) sintetizam do seguinte modo os resultados desta linha de investigação da LSF: “each discipline has its own distinctive set of preferred genres, ways of inter-relating and co-interpreting language and other modalities (Lemke, 1998), register combinations, ways of co-ordinating knowledge in language and image, ways of using abstraction and technicality, and so on – to summarise: its own take on the uses of literacy.”

A conceptualização do conhecimento cientı́fico em LSF parte, pois, da refutação da visão falaciosa da linguagem enquanto ferramenta ao serviço desse conhecimento e resulta na descrição da dimensão linguı́stica do conhecimento à luz do modelo introduzido antes, no Capı́tulo 1. Porém, esta é apenas uma visão parcelar, na medida em que a teorização inclui igualmente uma dimensão intervencionista no âmbito do ensino/aprendizagem da literacia cientı́fica. Mais concretamente, o modelo da LSF contempla questões relacionadas com o acesso ao conhecimento cientı́fico e ao discurso que o codifica (cf. Luke 1993: xiv). Quais são as competências linguísticas necessárias à aprendizagem do conhecimento científico? Até que ponto a escola assegura a transmissão dessas competências? Que estratégias permitem otimizar essa transmissão? Estas são algumas das perguntas que decorrem diretamente do axioma “conhecimento cientı́fico como significado” e que ilustram as ambições do projeto LSF nesta área especı́fica.

Outline

Documentos relacionados