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5. A imunidade material

5.5. Julgamentos técnicos e políticos

O julgamento perante o Poder Judiciário é baseado na lei e nas provas exis- tentes, em decisão obrigatoriamente técnica, pública e fundamentada, carreada em procedi- mento que observe estritamente o devido processo legal, em especial, a ampla defesa.

Em contraposição, o julgamento político é feito pelos pares do parlamentar, em procedimento (há um rito, que deve ser obedecido) sumário, irrecorrível, discricionário que prescinde de provas e tendo em conta não as leis e não a técnica mas a sensibilidade que o parlamento possua da conveniência e oportunidade de se manter no grupo aquele colega e no clamor público para o deslinde da questão.

Ou seja, a princípio, o povo, que emprestou pelo voto ao servidor eletivo a investidura do cargo, a retira, como foi o caso do ex-Presidente Fernando Collor de Mello, ou a mantém, como no caso do Presidente reeleito Luís Inácio Lula da Silva, quando, em 2006, em razão do episódio do mensalão, a oposição cogitou em ingressar com pedido de impeach-

ment, porém ele não enfrentou o processo em razão do apoio popular que sempre contou.

Em tese, o decoro parlamentar e sua violação são assuntos de feição emi-

nentemente política, interna corporis do Legislativo, não cabendo ao Judiciário julgar a sub- sunção entre a conduta do político e as regras do Regimento Interno da Casa e nem mesmo re- formar ou apreciar o acerto da decisão do parlamento pois, como estabelece Alexandre de Moraes (Direito..., 2003, p. 416), seria uma "[...] indevida ingerência em competência exclu- siva do órgão do Poder Legislativo, atribuída diretamente pela Constituição Federal (art. 55, §§ 1º e 2º), sem previsão de qualquer recurso de mérito".

O Legislativo possui liberdade para avaliar os fatores relativos à tipicidade da conduta do Congressista aos tipos descritos no Regimento Interno da Casa. Destarte, a par da decisão do parlamento ser política, possui um quê da natureza jurídica112, pois:

· 1) Deverão ser obedecidos estritamente os aspectos formais: rito e requisi- tos do Regimento Interno e · 2) só poderá ser considerado que houve quebra de decoro parlamentar (cominando a pena de perda do mandato), se houver subsunção entre a conduta (ativa ou comissiva) do membro e a tipicidade descrita no Regimento Interno (aspecto material).

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112 Na expressão de CALIMAN (op. cit., p. 180) o processo político que visa a perda do mandato parlamentar é

judicialiforme, pois os Regimentos Internos impõem observância ao princípio do devido processo legal, do qual

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Assim, deve ser adotado o princípio da legalidade criminal nullum cri-

men, sine lege. Afrontada essa inflexível regra, poderá o Judiciário julgar a ilegalidade da

medida. Há de se considerar, porém, que a decisão do Judiciário sempre tem um quê de política.

Tito Costa113, discorrendo sobre a cassação dos mandatos eletivos munici- pais, aponta para a necessidade de justa causa para a condenação, o que significa o exame a- curado de fatos e provas, bem como "[...] a perfeita adequação dos motivos da cassação aos exatos termos da lei. Ou melhor: a exata constatação da efetiva prática do fato considerado i- lícito e de seu ajuste ao texto legal".

Mas, obedecidos os parâmetros legais, nada há para ser reformado pelo Judiciário. Vamos conferir uma jurisprudência:

1. Mandado de segurança. 2. Ato da Câmara dos Deputados. Constituição, art. 55, inciso II. Perda de mandato de Deputado Federal, por procedimento declara- do incompatível com o decoro parlamentar. 3. Alegação de inobservância dos princípios de respeito ao contraditório, devido processo legal e amplo direito de defesa. 4. Medida liminar indeferida. Parecer da Procuradoria Geral da Repúbli- ca pela denegação do writ. 5. Inviável qualquer controle sobre o julgamento do mérito da acusação feita ao impetrante, por procedimento incompatível com o decoro parlamentar. 6. Hipótese em que se cumpriu o rito do art. 240, § 3° e in- cisos do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, havendo o impetrante acompanhado o feito e nele se defendido, de forma ampla. 7. Mandado de segu- rança denegado.

STF, Pleno, MS n. 21.861-4/DF, rel. Min. Néri da Silveira, j. 29/9/1994.

Observamos que, às vezes, os tribunais pendem pela impossibilidade, mas em regra optam pela possibilidade de serem judicialmente revistas as decisões dos parlamen- tos. Embora não possam avaliar o mérito das decisões do Legislativo, podem anulá-las, decla- rando-as insubsistentes, quando haja vício formal ou resulte de evidente abuso ou desvio de poder. Tomemos um exemplo114:

[...] Tanto quanto possível, deve ser preservada a disciplina do funcionamento dos órgãos dos Poderes da União, buscando-se, dessa forma, a eficácia da cláusula cons- titucional que lhe é inerente – da harmonia e independência. A solução emprestada ao processo político da perda de mandato não obstaculiza o acesso ao Judiciário, cu- ja atuação se faz, sob o ângulo da legalidade, com a inestimável colaboração do pro- fissional da advocacia.

STF, Pleno, 12/3/1992, relator Ministro Marco Aurélio Mello (RTJ 146/153).

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113 COSTA, Tito. Cassação de mandatos eletivos municipais. São Paulo: Revista dos Tribunais n. 687, a. 82,

1993. p. 54.

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O Ministro Nelson Hungria115 endossa nossa posição, no sentido de que o Ju- diciário pode – sem adentrar no mérito do juízo de valor da causa – verificar a existência de ato suscetível de receber a qualificação de ofensivo ao decoro parlamentar e que não se pode exclu- ir da apreciação do Judiciário o exame do ato de cassação de seus mandatos, dada a ocorrência de manifesto desvio de poder, pelo emprego de uma faculdade constitucional em discrepância com seus reais objetivos. Geraldo F. Lanfredi (1989, p. 164) acompanha Hungria:

[...] cabe ao Judiciário, sempre que solicitado, verificar no processo de cassação de mandato eletivo, se foi observada a regularidade do procedimento estabelecido em lei, bem como se existem, realmente, os motivos autorizadores da cassação e se estes motivos se enquadram no tipo definido como infração político-administrativa ou fal- ta ético-parlamentar.

O julgamento da Câmara não constitui, pois, ato meramente discricionário, mas pre- ponderantemente regrado.

Não fica ao puro arbítrio da Câmara Legislativa o reconhecimento da falta de decoro parlamentar, cujo critério de apreciação há de ser, necessariamente, objetivo, dentro dos padrões aceitos como válidos pela comunidade.

No caso de encontrar ilegalidade na tramitação do processo, bem assim inexistência ou desconformidade dos motivos com os ilícitos previstos em lei, o Judiciário pro- nunciará a invalidade do procedimento ou do julgamento impugnado.

Ou seja, o juiz não pode adentrar no mérito, este entendido como o juízo de valor dado à conduta do parlamentar. Mas se os motivos que ensejaram a cassação foram es- cusos, aí não residirá o mérito, cabendo a verificação de abuso ou o desvio de poder.

Nessa mesma linha, temos Auro Augusto Caliman (2005, p. 182-183):

Compete ao Judiciário considerar tão-somente o aspecto formal do processo de cas- sação: observância do devido processo legal, a aplicação dos princípios constitucio- nais da ampla defesa e do contraditório, impedido que está de valorar ou apontar a- certo em decisão de Casa Legislativa que decide pela perda de mandato de parla- mentar, por tratar-se de decisão política, sendo defeso, pois, ao Judiciário, apreciar se a gradação da medida disciplinar foi correta116.

No entanto, há decisão judicial perscrutando a gradação da medida disciplinar: "Em- bora não possa o Poder Judiciário examinar os motivos políticos da cassação de mandato, é-lhe possível avaliar incidentalmente a relação de proporcionalidade entre a suposta falta de decoro e a sanção aplicada. A pena de cassação de mandato eletivo deve ser proporcional ao ato praticado pelo destinatário desta sanção. Ao Deputado que, ao reagir contra ato que impedia sua entrada na Assembléia, ultrapassou os li- mites da urbanidade, não é lícito aplicar-se a pena máxima traduzida em perda do

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115 Pela possibilidade do Judiciário aferir se a conduta do parlamentar realmente feriu o decoro: MS n. 2.319/SP,

j. 5/1/1954, voto do Ministro Nelson Hungria, RT 285/889. No mesmo sentido: "[...] as medidas políticas, sujei- tas à discrição de um dos poderes, não podem ser censuradas pelo Judiciário, salvo quando tomadas com preteri- ção formal [...]", extraída da Revista de Direito Administrativo, v. 60, abril a junho de 1960, Fundação Getúlio Vargas, p. 260-267, STF em recurso ao mandado de segurança n. 5390, rel. Min. Lafayette de Andrada.

123 mandato. Do contrário, quebra-se a proporcionalidade, ofendendo-se o devido pro-

cesso legal substancial".117

Tito Costa [op. cit., 1993, p. 54-55] advoga o necessário exame, pelo Judiciário, dos motivos da cassação, com o escopo de identificar, notadamente nos casos de perseguição política a Vereador, a existência ou não, de justa causa para a cassa- ção.

No que respeita o delineamento feito pela Câmara dos Deputados de atos tidos como incompatíveis com o decoro parlamentar, é entendimento do Supremo Tribunal Fe- deral que não cabe a ele reexaminar o enquadramento, sob alegada atipicidade do ato incompatível.118

Contra esse entendimento, temos a opinião de Jorge Kuranaka119, ao defen- der que o processo de perda de mandato é de feição política e não judicial ou administrativo, amparando-se em decisões da Suprema Corte. Vejamos:

Com a devida licença, ousamos divergir desse entendimento: ampliando de tal modo o campo de apreciação do Poder Judiciário, estaria este julgando além do que a legitimidade do ato no seu aspecto legal ou constitucional, analisando, pois, questões de fundo de atos interna corporis. É que o processo de perda de mandato não é administrativo nem judicial, mas político, sendo regido por normas interna

corporis.

Pedimos vænia para reproduzir em parte o voto do Ministro Paulo Brossard no mandado de segurança n. 21.443-1/160-DF, na Lex de jurisprudência do STF 172/92:

[...] 10. A Constituição reserva à Câmara e ao Senado a competência para decretar a perda do mandato de Deputado ou Senador, "cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar". A decisão há de ser tomada "por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa", art. 55, II, § 2°. Observadas as formalidades constitucionalmente enunciadas, a decisão, da Câmara ou do Senado, poderá ser discutível, poderá ser injusta, poderá ser desa- certada, mas será definitiva e irrecorrível; será insuscetível de revisão judicial. Porque a Constituição deu à Câmara e só à Câmara, ao Senado e só ao Senado, a competência para decidir algo que à Câmara e ao Senado diz respeito. De mais a mais, os tribunais julgam segundo critérios de legalidade e decidir que um proce- dimento é decoroso ou não transcende os limites da pura legalidade. Esta não ex- clui, mas não se esgota nesse critério, pois depende de mil e uma circunstâncias extra-legais. [...]

Acrescenta esse Mestre e Professor de Direito Constitucional, que não é possível sequer o reexame das provas juntadas ao processo de cassação do mandato de depu- tado federal, que é sanção de caráter político-disciplinar por meio de mandado de segurança, com respaldo no julgado do STF, retro transcrito.

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117 STF, suspensão da segurança n. 1855/ES, rel. Min. Carlos Velloso, j. 20/9/2000, DJ de 5/10/2000. p. 06. 118 Informativo STF n. 204, de 25 a 29/9/2000. STF, Pleno, MS n. 23.529/DF, rel. Min. Octavio Gallotti, j. 27/9/2000. 119 KURANAKA (op. cit., p. 216/217), baseado em aresto da Revista de Direito Administrativo, 192/122 (ed.

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Tito Costa (1993, p. 55-59) segue um raciocínio impecável: o que diferencia o ato político, espécie do gênero ato administrativo, seriam seus fins, que devem ser estrita- mente políticos. Ou seja: seu alcance não pode objetivar direitos individuais e concretos (esse seria o ato administrativo comum), porém, apenas interesses abstratos, como a elaboração de uma lei.

Se o ato for do tipo administrativo não político, ainda que originado de um membro (ou colegiado) eletivo, há de ser apreciado pelo Judiciário, pelo princípio da inafas- tabilidade (art. 5°, inc. XXXV CR). Em sendo estritamente político, pela respectiva Casa.

Ora, a deliberação do parlamento de cassação de mandato atinge direito sub- jetivo concreto do acusado, caracterizando, portanto, um ato administrativo. Como tal, pode estar sujeito ao exame judicial de sua legalidade, o que abrange não só a aferição da compe- tência e das formalidades, mas também dos motivos ensejadores dessa decisão, não havendo uma nítida separação entre o poder do Legislativo e a competência do Judiciário, quando o as- sunto é cassação de mandato eletivo.

A inconformidade (falta de subsunção) do ato do acusado (ensejador da cas- sação) com a conduta que a lei tipifica como pressuposto dessa punição constitui vício no mo-

tivo como elemento do ato administrativo, que resta inquinado de nulidade. Se esse motivo foi

falso e se a cassação foi fruto de desvio ou abuso de poder, de rigor o reparo judicial.

Lembramos que em setembro de 2005 os deputados João Paulo Cunha, Jo- sias Gomes da Silva, Professor Luizinho, Paulo Rocha, José Mentor, João Magno de Moura, Vadão Gomes, José Janene, Pedro Corrêa, Pedro Henry, José Borba e José Dirceu recorreram ao Supremo Tribunal Federal, postulando que não lhes teria sido totalmente garantido (con- forme uma interpretação mais benéfica dada ao Regimento Interno da Câmara) o direito à ampla defesa perante o Conselho de Ética da Câmara das acusações que eram alvo, obtendo liminar da Suprema Corte e adiando o processo de cassação de seus mandatos.

O episódio, capítulo do escândalo do mensalão, foi um embate da legalida- de contra a conveniência e oportunidade, ocorrido em um momento de aguda crise ética do Legislativo, amplamente debatido e reportado pela mídia, demonstrando quão relevante e pal- pitante pode ser essa polêmica.

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