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5. A imunidade material

5.2. Natureza jurídica

técnicos e políticos.

5.1. Características

Torna o parlamentar inviolável por suas palavras, opiniões e votos nas sea- ras penal, civil, administrativa e política. Foi plantada no artigo 53 da Carta atual.

A observação de José Afonso da Silva é oportuna, pois em sua obra87 abor- dou o assunto de forma sucinta, porém, muito bem estudada. Para esse jurista, a inviolabilida- de material não seria propriamente uma imunidade: apenas as imunidades formais de não pri- são e não processamento. De certa forma, até a isenção do serviço militar seria imunidade, pois somente esta afasta os parlamentares de uma obrigação imposta pela Lei Fundamental a todos os cidadãos comuns.

É mais ampla que as imunidades formais, pois garante aos parlamentares de to- das as esferas: senadores, deputados e vereadores, estes últimos restrito aos atos praticados dentro do município. Notamos que a imunidade material é mais autêntica que as formais, pois respalda a atividade parlamentar em si, em seu cotidiano, possibilitando ao político uma atuação mais livre e audaciosa sempre que galgar a tribuna ou qualquer que seja o veículo de comunicação que utilize.

A inviolabilidade tem como objetivo assegurar o Legislativo contra pressões e represálias, não só dos demais Poderes, mas, modernamente, também dos influentes grupos privados – que não raro têm penetração na seara pública, da mídia, das igrejas, dos partidos políticos e tantos outros, com seus respectivos interesses (SPROESSER, 2002, p. 200).

Para Henrique Coelho88, em texto de cem anos atrás, mas, perfeitamente a- tual, a inviolabilidade é necessária em razão dos deveres do parlamento, abaixo descritos e, especialmente, porque os trabalhos internos devem ser publicados para ciência do eleitorado. ––––––––––––––

87 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 535 e 537. 88 COELHO, Henrique. O Poder Legislativo e o Poder Executivo no direito publico brazileiro. São Paulo: Ty-

106 A qualidade de senador ou deputado, a natureza especial da funcção politica, a indo- le dos assumptos que têm de discutir os membros do corpo legislativo, as aprecia- ções, as criticas, que se vêm obrigados a formular, as reclamações, as queixas, os protestos, que o dever do officio manda que fundamentem, do alto da tribuna, tudo isso, muitas vezes, não permite descobrir, nitido, evidente, o elemento primario, a base do facto criminal, a intenção de offensas punidas nos termos das leis penaes.

É irrenunciável a imunidade material, pois é uma garantia do parlamentar

em prol das atividades do parlamento, institucional, portanto. Como se destina e visa ao bem da sociedade, não pode o político abrir mão dela nem genericamente, nem em caso específico. A irrenunciabilidade está vinculada à outra característica: a inviolabilidade é prerrogativa de ordem pública, o que significa ser cogente, imprescritível e inderrogável, pois dada não para o desfrute do legislador, mas, como já o dissemos, para fortalecer o Legislativo. A inviolabilidade civil por opiniões, palavras e votos (art. 53, caput) foi uma inovação da Emenda n. 35/2001, pois o direito anterior não a previa. Desta feita, o parlamen- tar não tem de indenizar a vítima por possível dano moral, atingida por suas palavras e opini- ões, desde que ligadas ao exercício do mandato. Vale transcrever a arguta doutrina de Ale- xandre de Moraes (Direito..., 2003, p. 401 e em Imunidades..., 1998, p. 51)89:

Independente da posição adotada, em relação à natureza jurídica da imunidade, im- porta ressaltar que da conduta do parlamentar (opiniões, palavras e votos) não resul- tará responsabilidade criminal, qualquer responsabilização por perdas e danos, ne- nhuma sanção disciplinar, ficando a atividade do congressista, inclusive, resguarda- da da responsabilidade política, pois trata-se de cláusula de irresponsabilidade geral de Direito Constitucional material.

Pedimos licença para reproduzir aresto sobre o tema:

Nesse sentido, determinando a extinção de processo sem julgamento de mérito, em que se pleiteava indenização por danos morais contra atos praticados por deputada fe- deral no exercício das funções, decidiu o Plenário do Supremo Tribunal Federal que 'A imunidade parlamentar prevista no art. 53, caput, da CF (Os Deputados e Senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos) alcança a responsabilidade civil decorrente dos atos praticados por parlamentares no exercício de suas funções'. STF, Pleno, R. Extr. n. 210.907/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, Decisão: 12/8/1998, Informativo STF n. 118.

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89 No mesmo sentido, informativos STF n. 438 (28/8 a 1°/9/2006), Pet. 3.686/DF, rel. Min. Celso de Mello, j.

28/8/2006; n. 433 (26 a 30/6/2006), Inq. 2.282/DF, rel. Min. Marco Aurélio, j. 30/6/2006; n. 327 (27 a 31/10/2003), Inq. 1.958/AC, rel. Min. Carlos Velloso, 29/10/2003; n. 323 (29/9 a 3/10/2003), Inq. 1.944/DF, rel. Min. Ellen Gracie, j. 1°/10/2003; n. 316 (11 a 15/8/2003), Inq. 1.955/PB, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 13/8/2003; n. 365 (11 a 15/10/2004), Inq. 2.130/DF, rel. Min. Ellen Gracie, j. 13/10/2004 (reconhecimento da inviolabilidade em carta anônima via internet); n. 274 (24/6 a 1°/7/2002), Inq. 655/DF, rel. Min. Maurício Cor- reia, j. 1°/7/2002 (reconhecimento da inviolabilidade em CPI); n. 379 (7 a 11/3/2005), AI 473.092/AC, rel. Min. Celso de Mello, j. 7/3/2005 (a imunidade afastou a indenização por danos morais).

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5.2. Natureza jurídica

Primeiro, vamos explicar sucintamente o que seja natureza jurídica, com res- paldo em Andyara K. Sproesser (2002, p. 108). Esta seria a essência de um modelo ou instituto jurídico. Para este pesquisador, seria "[...] o conjunto de notas essenciais, comuns a todos os in- divíduos da mesma espécie, com o acréscimo da sua disposição para atingir certos fins".

Entendemos que a natureza da inviolabilidade é híbrida (KURANAKA, 2002, p. 117): tem um quê de jurídica e outro de política, pois, de um lado, garante a não res- ponsabilidade civil e penal (jurídica) e, institucionalmente, presta-se à mais ampla e livre re- presentação da sociedade pelo Legislativo (política).

A finalidade precípua da imunidade material seria garantir a independência do Legislativo, para bem desempenhar suas tarefas, pelo que pode o legislador caluniar, difa- mar, injuriar e acusar, tendo convicção em suas palavras, ou mesmo, sem ela.

Está constitucionalmente livre para praticar delitos de opinião (ou crimes de

palavra), como os crimes contra a honra, apologia ao crime ou a criminosos e outros, pois é

caso de exclusão do crime: o fato típico não constitui crime, pois a proteção afasta a incidên- cia da norma penal (MORAES, Direito..., 2003, p. 400).

Canotilho e Moreira90 afirmam que a inviolabilidade confere irresponsabili- dade criminal, civil, disciplinar e até política, não podendo o parlamentar ser destituído nem pelos eleitores nem partidos pelos quais foram eleitos:

II. A irresponsabilidade (n.1) implica, desde logo, que os deputados não incorrem em responsabilidade criminal, por causa de votos e opiniões, nem pelos chamados

crimes de responsabilidade (cfr. art. 120°-3) nem por quaisquer outros, incluindo os

crimes de injúria. Também não incorrem em qualquer responsabilidade civil ou dis- ciplinar com fundamento nos votos ou opiniões [...].

Os abusos não poderão ser coibidos pelo Judiciário, por decisão técnica, pois daí resultaria invasão na esfera do Legislativo.

O Ministro José Celso de Mello Filho91 nota que existe uma grande diver- gência na doutrina, uns entendendo que a inviolabilidade penal é causa excludente da ilicitu- ––––––––––––––

90 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada. 3ª

ed. Coimbra: Coimbra, 1993. p. 638.

91 MELLO FILHO, José Celso de. A imunidade dos Deputados Estaduais, Justitia, São Paulo: Procuradoria Geral de Jus-

tiça do Ministério Público, a. 43, v. 114, jul.-set./1981. p. 165-169. O mesmo em MORAES, Alexandre de. Imunidades

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de, outros optando pela excludente da criminalidade, alguns vertendo pela causa de isenção de pena, mas em qualquer caso, livrando a punição. Pedimos vænia para copiar o texto:

Em relação à natureza jurídica da imunidade material, salienta o Ministro Celso de Mello tratar-se "a imunidade material ou real, de causa justificativa (excludente da antijuridicidade da conduta típica), ou de causa excludente da própria criminalidade, ou, ainda, de mera causa de isenção de pena, o fato é que, nos delitos contra a honra objetiva (calúnia e difamação) ou contra a honra subjetiva (injúria), praticados em razão do mandato parlamentar, tais condutas não mais são puníveis".

Dessa forma, Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967), Nélson Hun- gria (Comentários ao Código Penal), e José Afonso da Silva (Curso de Direito Consti- tucional Positivo) entendem-na como uma causa excludente de crime, Basileu Garcia (Instituições de Direito Penal), como causa que se opõe à formação do crime; Damásio de Jesus (Questões Criminais), causa funcional de exclusão ou isenção de pena; Aníbal Bruno (Direito Penal), causa pessoal e funcional de isenção de pena; Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal) considera-a causa pessoal de exclusão de pena; Ma- galhães Noronha (Direito Penal) causa de irresponsabilidade; José Frederico Marques (Tratado de Direito Penal), causa de incapacidade penal por razões políticas.

Fernanda Dias Menezes de Almeida92 preconiza que a inviolabilidade é ma- joritariamente entendida como uma causa excludente de criminalidade, motivo pelo qual não se permite processar criminalmente o parlamentar.

Por sua vez, Damásio Evangelista de Jesus93 interpreta sistematicamente o art. 29, VIII da Carta e o art. 142, III Código Penal para concluir que, na difamação e na injúria, ha- veria exclusão da ilicitude (não há crime), por incidir o Código Penal. Já no caso da calúnia, se- ria aplicável a Constituição Federal, havendo crime mas, inexistindo a pretensão punitiva.

Estamos com a maioria: o legislador constituinte pretendeu guarnecer o

representante popular de forma ampla e segura, a tal ponto que ele não precisasse, pelo menos em tese, responder a processo que viesse a embaraçar sua atividade. Para que não haja ação penal de rigor que não tenha ocorrido o crime, o que de plano afasta a tese da exclusão ou i- senção de pena, pois pressupõe a existência daquele.

A doutrina penalista majoritária entende que o crime é constituído por três elementos94: fato típico, ilícito (antijurídico) e culpável – um desses três componentes deverá estar ausente, para que não se configure o delito.

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92 ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. As imunidades parlamentares na Constituição brasileira de 1988.

Anuário Português de Direito Constitucional. v. III. Lisboa: Coimbra, 2003. p. 91.

93 JESUS, Damásio Evangelista de. Código Penal anotado. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 506.

94 Mas existem penalistas que defendem ser o crime constituído apenas por fato típico e ilícito (teoria bipartida) e

há os que definem crime como fato típico, ilícito, culpável e punível, como BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal: parte geral. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 115.

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Não será caso de atipicidade, desde que haja subsunção entre a conduta do parlamentar e a descrição do tipo penal. Também não é hipótese de excluir a culpabilidade, que é constituída pela imputabilidade, pela consciência potencial da ilicitude e pela exigibili- dade de conduta diversa (MONTEIRO DE BARROS, 2004, p. 116): esses três elementos es- tão presentes.

Então o elemento que desaparece, para desaparecer o crime é a ilicitude [a expressão antijuridicidade é equívoca conforme Fernando Capez (2007, p. 271)]. Observe-se que não há divergência entre os que defendem a exclusão da criminalidade e os adeptos à ex- clusão da ilicitude: apenas que esses últimos foram mais específicos, mais precisos, pois se a conduta não for ilícita não haverá o crime em si.

E vamos além: o artigo 23 do Código Penal estabelece que a ilicitude pode ser excluída pelo estado de necessidade, pela legítima defesa, pelo estrito cumprimento de de- ver legal ou pelo exercício regular de direito, verbis:

Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:

I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa;

III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Parece-nos claro que é hipótese do inciso III, pois ao denunciar possível ili- citude, ainda que de modo equívoco, o legislador estará cumprindo seu dever constitucional- mente atribuído. Não é sequer exercício de um direito, mas de seu múnus. Confira-se Fernan- do Capez (2007, p. 91), quem argumenta que não faz sentido a ordem jurídica cominar um dever a alguém e, posteriormente, responsabilizar essa pessoa por ter atendido tal obrigação.

Nossa posição é endossada pelo conteúdo do artigo 142, inc. III do CP, que disciplina não constituir injúria ou difamação punível "III –o conceito desfavorável emitido por funcionário público, em apreciação ou informação que preste no cumprimento de dever de ofício". Veja-se que o texto fala em dever de ofício.

A doutrina penalista interpreta esse artigo 142 CP como causa excludente do crime, especificamente como excludente da ilicitude95, admitindo haver a conduta típica po- rém, lícita, rotulando de imunidade funcional essa prerrogativa.

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Cremos que a natureza jurídica da inviolabilidade plantada no art. 53 caput da Lei Maior é a mesma: causa excludente do crime, especificamente da ilicitude por consistir estrito cumprimento do dever legal. Entretanto foi erigida a patamar constitucional, é especí- fica aos parlamentares e é mais ampla que o art. 142 CP, por valer para a injúria, para a calú- nia e para a difamação –pelo que, só nesse detalhe, ousamos discordar do mestre Damásio Evangelista de Jesus.

Destarte, perfilhamo-nos com aqueles que entendem ser a inviolabilidade causa excludente do crime (ou que se opõe a sua formação), mais especificamente que atinge um de seus elementos constitutivos – a ilicitude (por ser caso de estrito cumprimento do dever legal), pelo que não ocorre a situação delituosa. Isso porque, deduzindo por exclusão, a tipici- dade e a culpabilidade, vænia confessa, não são atingidas pela imunidade material. No mais, existem as características discutidas no subcapítulo retro: é de ordem pública e irrenunciável.