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1. Democracia e representação popular

1.3. O voto, o sufrágio e a natureza jurídica da representação

Não há outra forma de se governar que não seja por intermédio de represen- tantes. Daí, o problema que se põe é com relação à forma de escolhê-los, pois cada pessoa tem seus interesses particulares e uma noção própria de qual deve ser a imagem e o agir do governante.

O voto é o meio pelo qual o eleitor concede um mandato a determinadas

pessoas, que passarão a representar aquele, exprimindo sua vontade e decidindo no lugar dele. Consoante escólio de Alexandre de Moraes18, o voto é dotado de determinadas características, previstas no texto constitucional. São elas:

· 1) A personalidade, pois é um direito que só pode ser exercido de forma

personalíssima, vedado o voto por procuração.

· 2) A obrigatoriedade, salvo para menores de 18 e maiores de 70, devendo a

ausência ser justificada sob pena de multa. Para muitos atos, a Administração requisita a comprovação de regularidade eleitoral.

· 3) A liberdade de poder votar em quem quiser ou não votar em ninguém

(em branco) Anular o voto também é um direito.

· 4) A sigilosidade é garantida por diversos mecanismos, como a cabina, a

urna eletrônica e todo o processo eleitoral em si. Sua finalidade é evitar pressões ou ofertas, em favor da lisura do processo democrático.

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· 5) A igualdade que cada cidadão tem para valer um voto – one man,

one vote, independente do padrão social, sexo, cor, credo ou idade, em contraposição

com as eleições censitárias ocorridas no Brasil (vide a Lei de 1824, a Constituição da

mandioca).

· 6) E a periodicidade, pois os mandatos têm prazo determinado.

Sufrágio vem de aprovar19, patrocinar, homenagear, fazer uma deferên-

cia a uma alma, pessoa ou ideologia. É o processo de escolha por votação, podendo ser encarado como um direito, como um dever ou até como uma função – já que o eleitora- do atua como órgão deliberativo para a escolha de membros do Executivo e do Legisla- tivo.

O sufrágio expressa-se pela capacidade de eleger (capacidade eleitoral ativa, ou alistabilidade) e de ser eleito (passiva ou elegibilidade).

Josaphat Marinho20 distingue sufrágio de voto pois, geralmente, são confun- didos: o sufrágio é o direito de escolher os representantes e governantes; o voto é a forma de exercê-lo; ou seja, o sufrágio seria a garantia e o voto, o instrumento que o concretiza. Assim como no direito à liberdade, o habeas corpus é sua garantia e a locomoção, o ato de exercitá- la. Temos o sufrágio universal e o restrito.

Escrutínio é o modo de se exercer o voto – secreto ou aberto.

A Revolução Francesa, historia Dalmo A. Dallari (1995, p. 156), ideali- zou o sufrágio de forma contraditória, pois sustentou o sufrágio universal e a igualdade de todos, porém objetivava de fato somente a possibilidade de participação política daqueles que não eram nobres – a burguesia. Articulou um sistema em que o voto era restrito às eli- tes econômica e intelectual, excluindo também as mulheres. Ou seja, o sufrágio era restri- to.

O ideal é estender o direito de voto ao maior número de pessoas, conferin- do-lhes cidadania ativa. Mas pelas mais variadas razões, as leis de cada nação sempre estabe- lecem alguns limites.

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19 HOUAISS, Antônio et al. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 2634. 20 MARINHO, Josaphat. O cidadão e o direito de sufrágio. Revista de Informação Legislativa, a. 03, n. 10, abril

a junho/1966, p. 03 e/ss. E BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 543 distingue os direitos fundamentais das garantias institucionais.

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Consoante escólio de Monica Herman Salem Caggiano21, as limitações po- dem ocorrer pelo fator idade, pelo critério patrimonial, pelo sexo, pelo grau de instrução, pela deficiência física ou mental, em razão de condenação criminal e pelo serviço militar.

Quanto à natureza jurídica da representação, como solucionar o parado-

xo jurídico de um sistema de representação no qual o outorgante obedece e o outorgado man- da, não pode ser destituído, não tem contas a prestar, não se responsabiliza por suas decisões e representa a todos – mesmo aqueles que não votaram nele ou que sequer votaram?

É evidente que esse sistema não pode ser explicado pela teoria do mandato do direito civil. Muito menos pelo conceito de representação civil. Mas tradicionalmente uti- lizamos a expressão mandato para designar a representação política e apesar de não haver a

responsabilidade do direito privado, existem vários pontos em comum entre esse instituto no

direito civil e no político.

Algumas teorias tentam explicar o fenômeno. Segundo escólio de Monica Herman Salem Caggiano (1987, p. 22), o abade Siéyès entendia a representação como uma

delegação de poder, originalmente nas mãos do povo.

A jurista prossegue citando que Le Doyen Maurice Hauriou acreditava tratar-se de uma investidura, na qual a eleição acarretaria uma atribuição de competências, pelo que o parlamentar não se obrigaria à vontade de seus eleitores. Devendo, porém, por cautela, tentar cumprir suas promessas de campanha, já que novas eleições vêm periodi- camente e, pelo menos parte do eleitorado fiscaliza sua atuação. Este é o modelo mais a- dotado.

Assim, a teoria hoje aceita é a da investidura, pela qual por meio do voto o representante (que na realidade não representa, como vimos acima) recebe o poder de querer, tornando-se a vontade presumida da coletividade. Ele receberia uma atribuição de competên- cia via processo eleitoral e não estaria adstrito à vontade dos eleitores.

Mas existem outras teorias.

· 1) Pelas doutrinas de Siéyès e de Hauriou há dois pólos na relação: repre-

sentantes e representados, ou mandante e mandatário, ou eleitores e eleitos.

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21 CAGGIANO, Monica Herman Salem. Sistemas eleitorais x representação política. Brasília: Senado Federal,

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· 2) Há, contudo, a doutrina alemã do órgão, que se caracteriza por presumir

a existência de um só pólo: a sociedade organizada, atuando por meio de seus órgãos. A co- munidade seria como uma pessoa jurídica, com vontade própria, distinta das vontades particu- lares de cada membro. A coletividade exprime sua vontade por intermédio de determinadas pessoas escolhidas, que seriam órgãos daquela. No momento em que um parlamentar atua, quem age não seria um representante, porém um órgão (uma parte integrante) da sociedade. Destarte, ela própria atuou.

· 3) Na outra ponta, José Joaquim G. Canotilho22 observa que a relação polí- tica não é mais bilateral (eleitor-representante), porém triangular: eleitor-representante- partido.

O mandato imperativo teve sua utilização repudiada. Por ele os eleitos têm

a obrigação de agir como os mandatários – ou sua maioria – desejam e determinam, bem co- mo renunciar ao cargo caso seu eleitorado queira, sob compromisso assinado (BOBBIO, 2002, p. 37). Um exemplo desse sistema ocorreu na cidade de Londres, pela Resolução de Londres, de 17 de outubro de 1832 (DALLARI, 1995, p. 133).

Esse mecanismo foi defenestrado pela Revolução Francesa de 1791, que es- tabeleceu que "os representantes eleitos nos departamentos não serão representantes de ne- nhum departamento em particular, mas de toda a nação, e não lhes poderá ser dado nenhum mandato".

José Joaquim Gomes Canotilho (2003, p. 627/628), discorrendo sobre o modelo português, esclarece com acuidade que

O facto de órgão parlamentar representar todos os portugueses explica, de algum modo, que o Deputado continue a ser considerado como representante do povo e não apenas do partido que o propôs ou do círculo eleitoral pelo qual foi eleito (cfr. art. 152.°/2), compreende-se a consagração do princípio do mandato livre e não do mandato imperativo.

Contudo a liberdade do eleito não é total. Existem balizas éticas e jurídicas (a Constituição, a Lei de Improbidade Administrativa, o Código de Ética, o Regimento Inter- no e as leis em geral), capazes de cassar seu mandato. Há também o dever moral de cumprir pelo menos em parte as promessas de campanha, até porque o mandato é por tempo determi- nado e novas eleições virão.

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22 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Alme-

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A nosso ver, as promessas de campanha e os discursos deveriam obrigar a conduta dos parlamentares no momento do voto, sob pena de cassação. Isso, aliado ao voto aberto, reduziria em boa parte a demagogia e as negociatas. Nem tanto à terra, nem tanto ao mar.

Concluindo, as principais características do mandato político são: · O outorgado, apesar de eleito por uma parcela do eleitorado, representa e

decide por toda a população, eleitores ou não, seu eleitor ou da oposição.

· O parlamentar não está adstrito à vontade daqueles que o elegeram, pois

representa toda a sociedade. Até porque não se pode definir quem são esses eleitores e qual a vontade deles, que sequer é unânime.

· O mandatário tem total autonomia e independência por suas decisões, re-

presentando toda a população, obrigando aqueles que discordarem e mesmo os que não vota- ram nele. Este é um dos preceitos fundamentais da democracia. Pelo sistema atual, pode até divergir de suas promessas de campanha.

· O mandato é de caráter geral, concedendo poderes para a prática de todos

os atos de competência do cargo empossado.

· O parlamentar é irresponsável por suas decisões políticas, desde que ado-

tadas dentro da ética e da legalidade. Apesar de muitas vezes ser prudente fazê-lo, não está obrigado a explicar suas opções.

· Em razão disso, seu mandato é irrevogável, sendo passível de cassação a-

penas se faltar com a ética ou cometer alguma infração, como a quebra de decoro parlamentar ou improbidade administrativa.