• Nenhum resultado encontrado

ORALIDADE E GÊNEROS TEXTUAIS: CONCEPÇÕES TEÓRICAS “Ploculando”

1.3 Letramento e oralidade: práticas sociais e eventos comunicativos

Os estudos do letramento surgem no cenário educacional como mola propulsora para um novo olhar sobre a oralidade, bem como sobre a alfabetização, a leitura, a escrita e a produção textual. A noção de letramento incorpora na reflexão sobre língua e linguagem o modelo do contínuo entre oralidade e escrita, deslocando o foco da perspectiva dicotômica da relação fala e escrita para uma perspectiva em que ambas as modalidades de uso da língua se completam (KLEIMAN, 2002, MARCUSCHI, 2008), sem, entretanto, desconsiderar que há especificidades em ambas as modalidades, o que implica diferenças.

Historicamente, a visão dicotômica entre fala e escrita conduziu à separação entre forma e conteúdo, língua e uso, o que promoveu o ensino da língua como instruções de regras gramaticais, sem atentar para os aspectos dialógicos e discursivos. Temos nessa perspectiva dois modelos teóricos, o modelo autônomo e o modelo

ideológico, difundidos nas décadas de 1950 e 1980 respectivamente. O primeiro desprezou as influências sociais sofridas pela língua e o segundo encarou a escrita como recurso tecnológico autônomo que propiciava ao indivíduo a ampliação da capacidade cognitiva (MARCUSCHI, 2001a, p.26).

Para Street (2003), o modelo autônomo assume a supremacia cognitiva da escrita, enxergando-a em oposição à oralidade. O letramento, por sua vez, é tomado como modelo homogêneo, associado ao progresso, a modernidade e a mobilidade social. Enfim, o modelo autônomo concebe o letramento independente do contexto social e cultural, admitindo o seu funcionamento independente da escrita (MARCUSCHI, 2005).

Em oposição a esse modelo, o autor propõe o modelo ideológico3, cuja concepção está firmada em uma pluralidade de letramentos, implicada nas determinações sociais e culturais. Inserem-se nessa discussão as questões técnicas, culturais, cognitivas e sociais dentro das relações de poder. A fala e a escrita, nessa visão, são analisadas em suas interfaces, afastando-se da polarização que permeava o modelo autônomo.

Na visão de Street (op. cit), o modelo ideológico de letramento superou alguns mitos que reforçavam a visão dicotômica, a saber: o mito de que a escrita era uma reprodução fiel da fala, enquanto que a fala usava como base os elementos paralinguísticos; o mito de que a fala era fragmentada, caótica, enquanto que o texto escrito era mais coesivo e coerente; e o mito de que a escrita era autônoma em sua produção de sentido, limitando-se ao conteúdo, enquanto a fala conduzia o sentido se apoiando no contexto e nas condições da relação presencial.

No trato com o “modelo ideológico do letramento”, temos que considerar dois termos estruturais: os “eventos de letramento” e as “práticas de letramento”. Ambos necessitam ser compreendidos de forma associada, de modo a não procedemos a análise apenas no nível da descrição, como alerta Soares, fundamentando-se em Street:

O conceito de evento de letramento, dissociado do conceito de práticas de letramento, não ultrapassa, segundo Street (2001:11), o nível da descrição, embora tenha a vantagem de orientar o pesquisador ou estudioso para a observação de situações que envolvem a língua escrita e para identificação das características dessas situações; não revela, porém, como são construídos, em determinado evento, os sentidos e os significados, produtos

3

Street emprega o termo ideologia no sentido de tensão entre autoridade e poder, de um lado, e a resistência e criatividade, de outro lado (essa tensão manifesta-se no uso da língua, seja na sua forma oral ou escrita).

não só da situação e de suas características específicas, mas também das convenções e concepções que as ultrapassam, de natureza social e cultural (SOARES, 2003, p. 105).

Para Heath (1982 apud MARCUSCHI, 2001a, p.37), o evento de letramento é qualquer ocasião em que uma peça de escrita integra a natureza das interações dos participantes e seus processos interpretativos. Para Barton (1991), são atividades particulares em que o letramento exerce um papel: costumam ser atividades regularmente repetidas. Para Street (2003), são eventos que envolvem a leitura e a escrita, com características bem determinadas, como por exemplo, o evento acadêmico, o evento escolar, em que a escrita e a leitura envolvem a prática dos sujeitos, a escrita e a leitura de uma carta pessoal, por exemplo, podem ser citadas como um evento de letramento, pois envolvem um texto escrito. Nas mais variadas esferas sociais, em que a escrita e a leitura estruturam as diversas atividades, entre elas as que se destinam ao trato com a oralidade.

Para Bortoni-Ricardo (2004), nos eventos de letramento o texto pode estar presente no âmbito da interação ou pode ter sido estudado ou lido anteriormente. Em um ofício religioso, por exemplo, os religiosos, ao ministrarem seu sermão, realizam um evento de letramento, seja porque eles têm diante de si o roteiro escrito de sua fala, seja porque eles prepararam previamente esse roteiro escrito, no qual introduziram passagens bíblicas, por exemplo. Analisar os eventos de letramento na sala de aula significa descrever as regras a eles subjacentes, considerando a situação de interação, os sujeitos e seus objetivos, o referente ou objeto de interação e o material escrito (os gêneros textuais e seus suportes), e os modos de relação com esse material.

As práticas de letramento, por sua vez, ampliam a noção de eventos de letramento, visto que, de acordo com Street (2003, p. 7), trata-se dos eventos e dos padrões ligados ao letramento, associadas a “algo mais amplo, de uma natureza cultura e social”. Para o autor,

parte dessa amplificação tem a ver com a atenção dada ao fato de que trazemos para um evento de letramento conceitos, modelos sociais relacionados à natureza que o evento possa ter, que o fazem funcionar, e que lhe dão significado. É impossível para nós chegar a esses modelos simplesmente permanecendo sentados sobre um muro com uma câmera de vídeo, observando o que estiver acontecendo. Aqui, surge uma outra questão etnográfica: temos que começar a falar com as pessoas, a ouvi-las e a associar a sua experiência imediata a outras coisas que possam também estar fazendo.

Por essa perspectiva, as práticas de letramento compreendem as formas de uma sociedade produzir significado para determinado evento com base na leitura e na escrita realizada no contexto dessa sociedade. Segundo Marinho (2006, p.7), configura-se prática de letramento “uma concepção cultural mais ampla de forma particular de pensar e ler e de escrever em contextos culturais”.

Podemos, na reflexão sobre o letramento, observar também a noção de “práticas comunicativas”, conforme adverte Grillo (1982) e reforça Marcuschi (2001a). Os autores afirmam que tal pratica inclui as atividades sociais através das quais a linguagem ou comunicação é produzida”. Isto equivale à forma como essas atividades são inseridas nas instituições, situações ou domínios, que por sua vez são implicados em processos sociais, econômicos, políticos e culturais e em outros processos maiores.

Um outro ponto que pode ser trazido na discussão sobre o letramento, diz respeito aos “eventos de oralidade” (BORTONI-RICARDO, 2004, p.62). Tais eventos são identificados quando não há influência direta da língua escrita sobre as instâncias comunicativas dos interagentes. Entretanto, devemos atentar para o fato de que as fronteiras que demarcam os eventos de oralidade e letramento não se apresentam de forma enrijecida, havendo muitas sobreposições entre eles.

Bortoni-Ricardo (2004), para exemplificar o que são eventos de oralidade, menciona uma pesquisa realizada em escolas de Goiás e do Distrito Federal, cujos professores agiam de forma monitorada em sua linguagem quando conduziam um ditado, na aula de leitura (eventos mediados pela língua escrita), e agiam de modo espontâneo quando chamavam atenção para a manutenção da disciplina ou brincavam com os alunos de forma descontraída (evento de oralidade).

Sob essa perspectiva, uma conversa à mesa de um bar é um evento de oralidade, mas se um dos participantes começa a declamar um poema que ele recolheu em suas leituras, o evento passa a ter influências de letramento (BORTONI-RICARDO, 2004).

Para Street (2003), as práticas de letramento variam de acordo com os distintos contextos, as diversas culturas, e estão sob efeito de diferentes letramentos em diferentes condições, visto que estão agregadas aos inúmeros sentidos atribuídos pelos sujeitos em suas comunidades de pertencimento.

Por essa via, Xavier (2005), citando Barton, declara que

antes de constituir um conjunto de habilidades intelectuais, o letramento é uma prática cultural, sócio e historicamente estabelecida, que permite ao individuo apoderar-se das suas vantagens e assim participar efetivamente e

decidir, como cidadão do seu tempo, os destinos da comunidade à qual pertence e as tradições, hábitos e costumes com os quais se identifica. A capacidade de enxergar além dos limites do código, fazer relações com informações fora do texto falado ou escrito e vinculá-las à sua realidade histórica, social e política são características de um individuo plenamente

letrado (p. 135).

Essa visão de letramento tem por discurso a vertente teórica os “Novos Estudos do Letramento4” (STREET, 2003; KLEIMAN, 1996), a qual se sustenta na compreensão da linguagem enquanto interação social, observando não apenas as propriedades formais e qualidades intrínsecas da escrita, mas, sobretudo, a legitimação de usos reais pelos indivíduos. Assim, uma nova relação é estabelecida, pois passa a ser legitimada no letramento, em seu “modelo ideológico” de representação. Este modelo implica não apenas aspectos de cultura, mas também das estruturas de poder de uma sociedade.

Costa, Marinho e Ribeiro (2007, p.241) advertem sobre a necessidade de investigarmos a concepção do significado social do letramento “fundamentado em um trabalho de campo cuidadoso sobre as funções que as habilidades de leitura e escrita exercem na vida social”. O chamamento das autoras também contempla a oralidade mediada pela escrita, pois compreende que elas se entrelaçam e se realizam no contexto das demandas sociais e vieses ideológicos dos sujeitos que delas fazem uso.

O “modelo ideológico de letramento” oferece maior atenção para o papel das práticas de letramento e das relações de poder imperantes na sociedade. Marcuschi (2005) afirma que a visão do contínuo complementa o modelo adotado por Street e concebe as relações entre oralidade e letramento envoltas nas práticas sociais e atividades comunicativas. Na perspectiva de Marcuschi (op. cit.), para se tratar adequadamente os problemas do letramento é necessário ter a compreensão do “modelo ideológico” agregado ao contínuo e à organização das formas linguísticas no contínuo dos gêneros textuais, concebendo-se a oralidade e o letramento como complementares no contexto das práticas socioculturais.

Nas práticas comunicativas, os gêneros textuais são importantes para tratar o letramento. Muitas vezes os gêneros abarcam simultaneamente o letramento e a oralidade. Vejamos o caso de uma conferência científica, em que há toda uma preparação oral envolta pela escrita. As práticas comunicativas que envolvem esse

4

Após esclarecermos, neste trabalho, a adoção da linguagem como interação, é importante reforçarmos a concepção de letramento que o sustenta, devido à polissemia do termo. Essa explicitude visa a garantir a percepção mais nítida do que compreendemos como práticas e eventos de letramento.

gênero textual são tanto de fala como de escrita. O gênero conferência científica se configura enquanto evento de letramento, pois envolve um texto escrito que é usado socialmente de forma situada, dentro das funções que a comunidade lhe atribuiu. No caso, o gênero conferência científica é utilizado pelo meio acadêmico, que determina o domínio discursivo5 ao qual pertence, sendo assim uma prática comunicativa.

Documentos relacionados