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3. FENÔMENO DA INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA

4.3 NASCIMENTO DA RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA

Como visto, na norma geral e abstrata, em seu antecedente, há apenas classes de eventos e critérios para identificá-los no mundo fenomênico, e, no seu conseqüente, por sua vez, critérios de identificação de um fato relacional futuro. Assim sendo, na linha dos pressupostos teóricos adotados, somente com a edição da norma individual e concreta, os enunciados factuais irão ingressar no sistema jurídico, no território denominado da

“facticidade jurídica”, por PAULO DE BARROS CARVALHO, onde estarão os fatos jurídicos stricto sensu e fatos relacionais (as relações jurídicas).189

O que distingue os enunciados relacionais, presentes nas normas individuais e concretas, é a presença de um dos operadores do dever-ser, numa de suas modalidades:

permitido, proibido ou obrigatório. Há, lembre-se, porém, o operador deôntico que atua entre o antecedente e o conseqüente, que se caracteriza como um operador deôntico neutro, na medida em que não se modaliza.190

Em suma, no conseqüente das normas individuais e concretas é que se encontra o operador do “dever-ser”, em um de seus modais, interligando os sujeitos em torno de um objeto, que é a própria prestação jurídica. A relação jurídica oferece, assim, alto grau de determinação de seus elementos integrantes: sujeitos e prestação.191

189 CARVALHO, P. de B. Direito tributário..., p. 132.

190 Ibid., p. 135.

191 Ibid., p. 136-138.

Na acepção de PAULO DE BARROS CARVALHO, para que se instaure o fato-relacional, ou seja, a relação jurídica, é necessária a presença de dois elementos (o sujeito e a prestação), havendo o elemento subjetivo e o prestacional.192

É, precisamente, a partir desse pressuposto que o professor paulista considera que é no conseqüente da norma individual e concreta que será encontrado o elemento pessoal, isto é, os sujeitos da relação jurídica tributária. É, assim, com a subsunção do evento à norma e com a produção da norma individual e concreta, sendo identificada a relação jurídica, que os sujeitos serão conhecidos. No elemento subjetivo está o sujeito ativo, com direito de exigir a prestação, e o sujeito passivo, com o dever de cumpri-la. O elemento relacional ou prestacional contém uma prestação, com conteúdo de direito que tem por seu titular o sujeito ativo. Ele se remete a uma conduta, em uma das formas modalizadas (obrigatório, permitido ou proibido), mas é necessário, ainda, que haja determinação do objeto que essa conduta faz referência.

Voltando-se, então, à noção de que fatos são enunciados lingüísticos, os fatos jurídicos não se resumem em “enunciados protocolares denotativos”; há, ainda, fatos relacionais, na forma de “enunciados protocolares denotativos e constitutivos na conformidade das previsões dos conseqüentes de normas gerais abstratas” .193

Veja-se, de tal modo, que dentro do plano jurídico, quando se aduz que, com a ocorrência do “fato” (stricto sensu) nasce a relação jurídica, está-se diante de dois fatos: o fato-norma (fato jurídico) e o fato-efeito (relação jurídica).

O fato jurídico stricto sensu se revela como um enunciado descritivo, descrevendo um fato já ocorrido (pretérito). De outro lado, o fato relacional se volta para o futuro, fixando a conduta que deverá ser obedecida por um sujeito perante outro. Ou seja, o primeiro tem função declarativa (ou declaratória), e o segundo constitutiva.194

Todavia, para relação jurídica, em si, o cumprimento ou não dos deveres nela estabelecidos não a altera. Logo, ao se considerar que a relação jurídica é um “fato” e “fato”

que se caracteriza como um enunciado de linguagem, para que esse enunciado seja alterado é necessário um outro enunciado em igual ou superior hierarquia, nos moldes postos pelo ordenamento. Isso vale, portanto, para o lançamento tributário, como norma individual e concreta, como será visto, o qual poderá ser alterado apenas pela produção de outra norma individual e concreta, a ser produzida pelo órgão competente no âmbito administrativo ou

192 Id., Curso de direito..., p. 287.

193 Ibid., p. 132-133.

194 Esse pressuposto traz conseqüência na apreciação da natureza do lançamento tributário, como ato de produção da norma individual e concreta, que será objeto de exame na seqüência.

judicial. Isso porque, a relação jurídica, inclusive a relação jurídica tributária, é, antes de tudo, uma relação, de modo que, como tal, somente poderá ser alterada ou extinta por outras relações jurídicas, que entrando em contacto com a primeira, faz surgir uma nova relação jurídica.195

Há, ainda, que se lembrar que as relações jurídicas são irreflexidas por pedido do próprio Direito, ou seja, são interpessoais ou intersubjetivas, uma vez que, via de regra, o Direito não se ocupa de disciplinar direitos e deveres de uma pessoa consigo mesma, preocupa-se, sim, em disciplinar as relações entre sujeitos.196

A relação jurídica nasce, dentro do pressuposto teórico tomado, por força de um enunciado fático, previsto pelo conseqüente da norma individual e concreta. Ou seja, vale aqui recordar mais uma vez, na norma geral e abstrata se encontram apenas classes de predicados. A relação jurídica nasce, pois, quando o operador deôntico modalizado (obrigatório, proibido ou permitido) promove a síntese entre condutas contrapostas, entre dois ou mais sujeitos, em um enunciado relacional e esse enunciado é traduzido em linguagem própria.

Mantendo coerência com aquilo que já foi dito, o instante em que nasce a obrigação tributária é exatamente aquele em que a norma individual e concreta, produzida pelo particular ou pela Administração, neste último caso por meio do lançamento, ingressar no sistema do direito positivo, o que implica reconhecer que a relação se dá juntamente com a ocorrência do fato jurídico. (...) A contar desse ponto na escala do tempo, existirá um enunciado lingüístico, formulado em consonância com os preceitos da ordem jurídica, e que somente poderá ser modificado por outros enunciados especialmente proferidos para esse fim, segundo a orientação do sistema.197

As relações jurídicas nascem, pois, com os enunciados lingüísticos, individualizados pela presença da síntese deôntica. Desse modo, qualquer modificação ou mesmo a extinção de uma relação jurídica deverá decorrer de outro enunciado lingüístico.

Em que pese, portanto, grande parte da doutrina entender de forma diversa198, na linha teórica aqui adotada, seguindo em especial a doutrina de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES e

195 CARVALHO, P. de B. Direito tributário..., p. 142.

196 NOGUEIRA, R. B., op. cit., p. 143-145.

197 CARVALHO, P. de B. Direito tributário..., p. 183-184.

198 Cuidam-se dos autores que consideram que com a ocorrência do “fato” descrito na hipótese da norma, há a incidência infalível da norma e o nascimento do vínculo jurídico. Já citou-se: Geraldo Ataliba, Alfredo Augusto Becker, José Roberto Vieira, Mary Elbe Gomes Queiroz.

PAULO DE BARROS CARVALHO, a ocorrência do evento (“fato gerador”199) descrito na sua hipótese não repercute, por si só, na incidência infalível da norma jurídica e no nascimento da relação jurídica. O mesmo ocorre no nascimento da relação jurídica tributária. É necessária, assim, a tradução do evento em linguagem jurídica própria, com a produção da norma individual e concreta, dando origem à relação jurídica tributária, ao fato jurídico tributário. 200

PAULO DE BARROS CARVALHO procura deixar bastante claro que o nascimento da relação jurídica, isto é, nos seus termos, de “um vínculo deôntico intersubjetivo”, é um fato como outro qualquer.

Resumindo: no plano das normas gerais, teremos apenas a indicação de classes com notas que um acontecimento precisa ter para ser considerado fato jurídico (no antecedente), implicando a indicação de classes com as notas que uma relação tem de ter para ser considerada como relação jurídica (no conseqüente). Um enunciado conotativo implicando outro enunciado conotativo.

No plano concreto das interações intersubjetivas: um enunciado protocolar denotativo, que se obteve pela redução à unidade das classes de notas (conotação) do antecedente da regra geral e abstrata, implicando outro enunciado, também protocolar denotativo, construído pela redução à unidade das classes de notas (conotação) do conseqüente da norma geral e abstrata. Enunciados conotativos: antecedente e conseqüente da norma geral e abstrata; enunciados denotativos: antecedente e conseqüente da norma individual e concreta.201 (grifo nosso)

É dizer, os direitos e deveres dos sujeitos, dentro de uma relação, se manifestam por meio de um fato, de uma norma individual e concreta, e tais direitos somente se instauram com a formação de um “enunciado lingüístico, protocolar e denotativo”, presente no antecedente da norma, e “de um enunciado constitutivo”, presente do seu conseqüente.202 É, pois, do conseqüente da norma individual e concreta que se revela o fato da relação jurídica, que vincula os sujeitos da relação. Daí porque o autor paulista entende que somente interessam as relações “intranormativas”, colocando de lado as “relações efectuais”, isto é, aquelas que não se revestem de forma lingüística e não se inserem no mundo jurídico.

Mantendo coerência com aquilo que já foi dito, o instante em que nasce a obrigação tributária é exatamente aquele em que a norma individual e

199 Na verdade, segundo Paulo de Barros Carvalho, esse “fato jurídico” a que os doutrinadores se referem é aquilo que ele denomina de evento. Para ele, assim, é até possível fazer tal afirmação, mas desde que se esteja se referindo à ocorrência do fato jurídico tributário como subclasse dos eventos tributários, que tem como critério caracterizar a condição de estar relatado em linguagem competente.

200 CARVALHO, P. de B. Direito tributário..., p. 128.

201 Ibid., p. 129.

202 Ibid., loc. cit.

concreta, produzida pelo particular ou pela Administração, neste último caso por meio do lançamento, ingressar no sistema do direito positivo, o que implica reconhecer que a relação se dá juntamente com a ocorrência do fato jurídico. (...) A contar desse ponto na escala do tempo, existirá um enunciado lingüístico, formulado em consonância com os preceitos da ordem jurídica, e que somente poderá ser modificado por outros enunciados especialmente proferidos para esse fim, segundo a orientação do sistema.203

Essa noção é também compartilhada por DENISE LUCENA CAVALCANTE, para quem a relação jurídica tributária não se inicia com a ocorrência do fato gerador, mas com a interferência do elemento humano, seja o “cidadão-contribuinte”, na sua expressão, seja o agente fazendário. Na sua linha, a presunção de alguns autores, tal como AUGUSTO BECKER204, de que existe direito antes do lançamento, numa suposição da incidência automática e infalível é uma abstração que não encontra respaldo na realidade. Para a autora, a incidência não é automática e não surge abstratamente da lei, ela é apenas autorizada pela lei e concretizada pelo elemento subjetivo.205

As relações jurídicas nascem, pois, com os enunciados lingüísticos, individualizados pela presença da síntese deôntica, de modo qualquer modificação ou mesmo a extinção de uma relação jurídica deverá decorrer de outro enunciado lingüístico.

Não há qualquer relação jurídica sem expressão de linguagem e, em qualquer ramo do direito, as modificações que lhe forem introduzidas provirão de outras manifestações lingüísticas, formuladas de acordo com o padrão hierárquico vigente. (...) o que permite concluir que as relações jurídicas e, entre elas, as de cunho tributário, vivem e desaparecem no plano das construções comunicativas, mais precisamente, no estrato da linguagem jurídica competente.206

Como ensinou JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, apoiado na doutrina de KELSEN, a relação jurídica é uma relação instituída, constituída e regulada pelo Direito, não se está, assim, ignorando a importância do “evento” e da “relação efectual” e, tampouco, relegando-a a um segundo plano de importância. Tem de ser levado em conta, contudo, no estudo da relação jurídica e de seu nascimento, que se cuida de uma entidade do universo normativo, inserida em um processo de positivação que pretende atingir condutas humanas. Desse modo, o “evento” e a “relação efectual” somente saem do entorno (da margem) do sistema jurídico e passam a integrá-lo, quando forem traduzidas em linguagem competente207.

203 Ibid., p. 183-184.

204 BECKER, A. A., op. cit., p. 352.

205 CAVALCANTE, D. L., op. cit., p. 66.

206 Ibid., p. 188.

207 CARVALHO, P. de B. Curso de direito..., p. 360.

4.4 RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA, OBRIGAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA E