3. FENÔMENO DA INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA
7.3 PRINCÍPIOS INFORMADORES DO PROCESSO ADMINISTRATIVO
7.3.2 Processo Administrativo Tributário e sua Disciplina Infraconstitucional
7.3.2.8 Princípio da segurança jurídica
O princípio da segurança jurídica não pode ser extraído de um dispositivo constitucional único e específico, como lembra CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, mas como norma jurídica, decorre da exegese de diversos dispositivos contidos no texto constitucional. O princípio da segurança jurídica se justifica na própria existência do sistema jurídico, tendo precisamente a função de controlar as instabilidades existentes no (sub)sistema jurídico. O Direito se propõe, assim, a auferir estabilidade às relações da vida social.680
O princípio da segurança jurídica exige, pois, que diante de um quadro de mutação de realidades, orientações, procedimentos e relações, as inovações ocorridas sejam processadas de forma a causar “o menor trauma possível”. Pelo princípio da segurança jurídica, “firmou-se o correto entendimento de que orientações firmadas pela Administração
678 MEDAUAR, O. A processualidade..., p. 119.
679 MOREIRA, E. B., op. cit., p. 243-244.
680 BANDEIRA DE MELLO, C. A., Curso de direito..., p. 110-111.
em dada matéria não podem, sem prévia e pública notícia, ser modificadas em casos concretos para fins de agravar a situação dos administrados ou denega-lhes pretensões”.681
No plano infraconstitucional, no que pertine ao processo administrativo, a Lei Federal nº 9.784/99 e a Lei Complementar paranaense nº 107/05 prevêem a segurança jurídica como princípio informador da atuação administrativa.
ALLAN BREWER-CARÍAS, na análise da legislação latino-americana, vincula ao princípio da segurança jurídica os seguintes princípios: (i) da predição ou do prenúncio; (ii) da proibição da reformatio in pejus; (iii) do non bis in idem; (iv) da presunção de licitude ou de inocência; e do (v) princípio da irretroatividade.682 Vale examiná-los à luz do ordenamento jurídico brasileiro.
Nessa linha, o princípio da predição, que se revela ainda como uma decorrência do próprio princípio da legalidade, impõe que o processo administrativo se desenrole conforme os trâmites e regras preestabelecidas e conhecidas pelos cidadãos-administrados, de forma a impedir surpresas no que tange ao próprio curso do processo.
Ainda que não exista previsão expressa na legislação brasileira quanto a esse princípio, ele se revela como corolário do próprio princípio da legalidade e em diversas passagens, tal como, por exemplo, quando o artigo 11 da Lei Federal nº 9.784/99 dispõe que a competência dos órgãos administrativos é irrenunciável, salvo em casos de delegação e avocação legalmente admitidos. Na mesma linha, todas as demais disposições legais voltadas à fixação do rito processual do processo administrativo revelam sua existência no direito posto.683
Pelo princípio da proibição da reformatio in pejus veda-se a possibilidade de que a autoridade ou órgão superior hierarquicamente modifique decisão anterior, prejudicando o recorrente.684 Tratando-se de decisão contra ato primário (contra o próprio lançamento tributário), isto é, a decisão de primeira instância, a reformatio in pejus se refuta pela própria incompetência do julgador de primeira instância, visto que a agravação no lançamento, anteriormente efetuado, ou na penalidade imposta, somente poderia decorrer de um novo ato de lançamento ou de aplicação de multa, sendo a autoridade incompetente para levá-lo a efeito. Em segunda instância administrativa deve ser, contudo, feita a diferenciação entre a reformatio in pejus pertinente ao ato primário (o lançamento ou imposição de penalidade) e o ato secundário (a decisão de primeira instância). A reformatio in pejus do ato primário não é cabível pelos motivos já examinados, ou seja, por falta de competência do órgão julgador de
681 Ibid., p. 112.
682 BREWER-CARÍAS. A., op. cit., p. 279-284.
683 Ibid., p. 279.
684 Ibid,. p. 280.
segunda instância, cujas atribuições se limitam ao exame de legalidade e validade do ato primário.685
Neste contexto, reveste-se de especial relevância no Direito Tributário brasileiro a distinção entre órgãos de lançamento e órgãos de julgamento: os órgãos de lançamento têm competência exclusiva ou reservada para a prática dos atos primários em que o lançamento se traduz; os órgãos de julgamento têm competência exclusiva ou reservada para a prática dos atos secundários, de reapreciação dos primeiros.
No processo de impugnação administrativa de tributos federais, a lei atribui a competência para julgamento a órgão destituído do poder de praticar o lançamento (as Delegacias da Receita Federal especializadas em julgamento e os Conselhos de Contribuintes) e, como veremos, não é admissível a
“reformatio in pejus”, pelo que a decisão do processo se reduz às alternativas da anulação ou da confirmação, não podendo jamais revestir a modalidade de substituição (na forma de lançamento suplementar).686
Contudo, dentro do exame de legalidade e validade, é cabível a revisão do ato primário – decisão de primeira instância –, mesmo que favorável ao sujeito passivo ou responsável. Tanto é assim que as legislações postas prevêem a existência de recurso de ofício, que pressupõe a revisão de um ato-decisão favorável ao contribuinte (ex vi do artigo 34 do Decreto Federal nº 70.235/72 e do artigo 56, inciso XII, da Lei Estadual paranaense nº 11.580/96). Isso tudo na medida em que o escopo final do processo administrativo fiscal é o controle da legalidade e validade do lançamento tributário e ato de imposição de multa, matéria de interesse público.
Desse modo, a reformatio in pejus, no Direito brasileiro posto, impede a reforma agravante do ato primário combatido: o ato de lançamento tributário e de imposição de penalidade.
Pelo princípio do non bis in idem, impede-se que o mesmo cidadão-administrado, pelos mesmos fatos, seja novamente penalizado e julgado, inclusive no tange à aplicação de multa pecuniária aplicada diante de ilícito tributário.687 Dito princípio encontra-se expresso no Direito Tributário posto, quando o artigo 156 do Código Tributário Nacional prevê, como hipótese de extinção do crédito tributário – o que é constituído pelo lançamento (ex vi do artigo 142) –, a decisão administrativa irreformável. Vê-se, portanto, que é requisito para a aplicação desse princípio a existência de decisão anterior de mérito. Isto é, caso o ato administrativo de lançamento tenha sido anulado anteriormente por vício de forma, é possível
685 QUEIROZ, M. E. G. Do lançamento tributário..., p. 170.
686 XAVIER, A. Do lançamento no direito..., p. 311.
687 BREWER-CARÍAS. A., op. cit., p. 282.
a expedição de outro ato de lançamento e de imposição de penalidade, respeitado, evidentemente, o prazo decadencial.
De origem constitucional, a partir da norma extraída do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, o princípio da presunção de licitude ou de inocência impõe que, no plano do processo administrativo fiscal, tal princípio seja observado no trâmite procedimental, preservando-se os direitos que o cidadão-administrado gozava antes da instauração do processo.688 Lamentavelmente, contudo, no dia-a-dia, a prática administrativa revela-se ser, justamente, a contrária. Para combatê-la, a Lei Complementar paranaense nº 107/05 pretendeu garantir tratamento isonômico ao contribuinte litigante e devedor. O seu artigo 20 dispõe, nesse sentido, que a “existência de processo administrativo, (...), não impedirá o contribuinte de fluir de benefícios e incentivos fiscais ou financeiros, nem de participar de licitações”, do mesmo modo foram impostas vedações à Administração, nos moldes do artigo 30.689 Outra medida de proteção ao princípio da presunção de licitude e inocência se revela, na legislação paranaense, ao ter sido vinculada a comunicação do Ministério Público, em caso de eventual crime contra a ordem tributária, ao encerramento do processo administrativo tributário.
A. GORDILLO aplica esse princípio, outrossim, no que concerne à questão da prova, pontuando que:
Por último, es muy importante recordar que en la duda debe estarse a favor del administrado. Esto, que es un principio elemental de derecho, no siempre es tenido presente por los funcionairos de las jerarquías inferiores o por algunos asesores técnicos, y en los casos ocurrentes su critério de apreciación habrá de ser controlado en el aspecto indicado.690
Por fim, a irretroatividade é outro princípio derivado do próprio princípio da segurança jurídica, e que forma o seu conteúdo, aplicando-se aos atos administrativos no curso do procedimento administrativo fiscal. BREWER-CARÍAS sustenta a aplicação desse princípio também aos atos administrativos, no sentido que de somente podem produzir efeitos
688 Ibid., loc. cit.
689 “Art. 30. É vedado à administração fazendária, sob pena de responsabilidade funcional de seu agente:
I - recusar, em razão da existência de débitos pendentes, autorização para o contribuinte imprimir documentos fiscais necessários ao desempenho de suas atividades;
II - induzir, por qualquer meio, a auto-denúncia ou a confissão do contribuinte, por meio de artifícios ou prevalecimento da boa-fé, temor ou ignorância;
III - bloquear, suspender ou cancelar inscrição do contribuinte sem a observância dos princípios do contraditório e da prévia e ampla defesa;
IV - reter, além do tempo marcado no início do procedimento, fiscalizatório, documentos, livros e mercadorias apreendidos dos contribuintes, nos casos previstos em lei;
V - fazer-se acompanhar de força policial nas diligências ao estabelecimento do contribuinte, salvo se justificado por justo receio de resistência ao ato fiscalizatório; e
VI - divulgar, em órgão de comunicação social, o nome de contribuintes em débito”.
690 GORDILLO, A., op. cit., p. VII-22.
a partir de sua edição, existentes, contudo, exceções nas hipóteses em que o ato administrativo produza efeitos favoráveis aos próprios administrados e quando não lesionarem direitos adquiridos.691 No plano infraconstitucional brasileiro, tais assertivas encontram guarida na previsão do inciso XIII do parágrafo único do artigo 2º da Lei Federal nº 9.784/99, ao rezar que nos processos administrativos, incluindo-se os de natureza tributária em âmbito federal, devem ser observados critérios de “interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação”.