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3. FENÔMENO DA INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA

7.3 PRINCÍPIOS INFORMADORES DO PROCESSO ADMINISTRATIVO

7.3.1.6 Princípio do devido processo legal: ampla defesa e contraditório

O devido processo legal, integrado pelos princípios do contraditório e da ampla defesa, é extraído dos incisos LV e LIV do artigo 5º da Carta Constitucional de 1988, lidos em conjunto, que os insere no rol dos direitos e garantias fundamentais.601 Como examinado, o processo administrativo, na concepção de parte respeitável da doutrina602, foi elevado a

598 SILVA, J. A. da, op. cit., p. 563.

599 BACELLAR FILHO, R. F., op. cit., p. 192.

600 BANDEIRA DE MELLO, C. A. Curso de direito..., p. 108.

601 BACELLAR FILHO, R. F., op. cit., p. 61.

602 Já citamos: Manoel Antônio de Oliveira Franco, Carlos Ari Sundfeld, Odete Medauar, Romeu Felipe Bacellar Filho, Egon Bockmann Moreira, entre outros.

verdadeiro direito e garantia constitucional do cidadão-administrado, sendo, notadamente, pelo devido processo legal que o exercício dessa garantia se instrumentaliza e viabiliza.603

O devido processo legal é o conjunto de garantias propiciadas para a tutela de posições jurídicas perante a Administração, ou seja, é a obrigatoriedade de que o Poder Público atue mediante processo em determinadas situações. “Tal implica para o particular, em princípio, o direito de conhecer os fatos e o direito invocado pela autoridade, o direito de ser ouvido pessoalmente e de apresentar provas e, ainda, de confrontar as posições dos adversários (confrontation and cross-examination)”.604

A partir da previsão contida nos incisos LIV e LV do artigo 5º da Carta Constitucional, o processo administrativo é imposto, deverá ser observado pela Administração, a fim de que seja garantida ao cidadão-administrado a possibilidade de apresentação de defesa, argumentos, explicações, informações, provas, antes da expedição do ato final que venha intervir na sua esfera individual.605 Enfim, o devido processo legal desdobra-se nas garantias do contraditório e da ampla defesa, sendo que, ao serem analisados em conjunto, passam a ter um significado novo, mais amplo do que teriam se fossem examinados isoladamente.606

O contraditório possibilita ao interessado a ciência de dados, fatos, argumentos, documentos, de modo que possa reagir ou contraditar o seu teor ou interpretação, apresentando contra-argumentos, provas, documentos, fatos, dados. O princípio do contraditório está vinculado à ampla defesa.

Do ponto de vista técnico, o contraditório tem finalidade instrutória da busca da verdade material, conhecimento amplo e preciso dos fatos, dados, argumentos e provas na sua totalidade para o proferimento da decisão mais correta. Propicia, ainda, a impessoalidade ao conceder a oportunidade de que todos os sujeitos envolvidos participem do processo. Com isso, amplia-se a transparência administrativa.607

O contraditório está vinculado, portanto, à democratização administrativa, tanto sob o ângulo da cooperação dos interessados quanto sob o prisma da visibilidade dos momentos que antecedem a decisão. Na lição de ODETE MEDAUAR,“o contraditório significa a faculdade de manifestar o próprio ponto de vista ou argumentos próprios ante fatos,

603 XAVIER, A. Princípios do processo..., p. 6.

604 Ibid., p. 7.

605 MEDAUAR, O. A processualidade..., p. 83.

606 ÁVILA, H., op. cit., p. 99.

607 MEDAUAR, O. A processualidade..., p. 96.

documentos ou pontos de vista apresentados por outrem”.608 Para a autora, representam desdobramentos diretos do contraditório: a informação geral, a ouvida dos sujeitos e a motivação.

O contraditório e a ampla defesa estão visceralmente ligados, isto é, a defesa garante o contraditório, decorrendo dele a possibilidade de uma defesa ampla. Nesse ponto cumpre notar que a Constituição Federal de 1988 não alude apenas ao direito de defesa, reporta-se à “ampla defesa”, o que, segundo ODETE MEDAUAR, representa a evolução do princípio, significando “que a possibilidade de rebater acusações, alegações, argumentos, interpretações de fatos, interpretações jurídicas, para evitar sanções ou prejuízos, não pode ser restrita, no contexto em que se realiza”.609

O princípio da ampla defesa pede, assim, pela anterioridade da defesa, ou seja, a garantia de que a apresentação de argumentos, alegações, provas, dados, serão levados a efeito pelos interessados antes da produção do ato decisório que venha a afetar os direitos do cidadão-administrado. A garantia da defesa prévia, desse modo, não se limita aos atos decisórios punitivos. Em vista do disposto no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal de 1988, a ampla defesa deve ser garantida previamente ao proferimento de qualquer ato que venha a intervir na esfera de direitos dos cidadãos.

Em que pese o entendimento de ODETE MEDAUAR,aoconsiderar que, naqueles casos, como no auto de infração, em que o ato inicial vem acompanhado da imposição de penalidade pecuniária (tal como multas de trânsito), não sendo possível a apresentação de defesa prévia antes da aplicação da penalidade, o princípio da ampla defesa resta respeitado com a concessão de prazo para a interposição de recurso cabível antes do vencimento da multa, algumas legislações infraconstitucionais têm procurado assegurar o direito à apresentação de defesa prévia.610 Isso se observa, no âmbito do Estado do Paraná, na Lei Complementar Estadual nº 107/2005, ao se assegurar, nos termos do artigo 22, que “a autuação do contribuinte, exceto no caso de infrações verificadas por ocasião do transporte de mercadorias ou de configuração instantânea, depende da análise de sua defesa prévia, apresentada no prazo de 10 (dez) dias da intimação”.

Note-se, ainda, que o respeito da garantia à ampla defesa, na lição de A.

GORDILLO, tem um conteúdo positivo. Ou seja, o agente administrativo tem o dever de facilitar ao cidadão-administrado o exercício pleno e adequado de defesa, devendo chamá-lo a

608 Ibid., loc. cit.

609 Ibid., p. 112.

610 Ibid., p. 116.

integrar o processo administrativo e auxiliar o exercício do seu direito com as informações e esclarecimentos necessários, participando-o, por exemplo, do real escopo, objetivo e efeitos do ato administrativo na iminência de ser produzido, bem como, das conseqüências de seus atos (do administrado) ou da ausência deles.611

Outro desdobramento do princípio da ampla defesa identificado por ODETE MEDAUAR é o direito de interpor recurso, o que alguns denominam de “recorribilidade” das decisões. Logo, mesmo que não exista previsão específica na legislação de regência do processo, quando a decisão, ainda em primeira instância (ato-fim), proferida atingir direitos do cidadão-administrado, este tem o direito de recorrer ou pedir a reapreciação da questão por superior hierárquico àquele que a proferiu. A “recorribilidade” resulta e está respaldada no artigo 5º, inciso XXXIV, alínea “a”, da Constituição Federal de 1988 e no próprio artigo 5º, inciso LV.612

ALBERTO XAVIER em análise do artigo 5º, inciso XXXIV, alínea “a”, da Constituição Federal de 1988 – que cuida do direito de petição – e do inciso LV, do mesmo dispositivo, entende que o direito de petição dá sustentação à impugnação (também chamada de defesa ou reclamação) a ser apresentada contra o ato administrativo primário que se discute, enquanto que o direito de recurso, contido na parte final do inciso LV, se refere ao recurso apresentado contra ato secundário, ou seja, já um ato de decisão.613 Daí o autor português visualizar a existência de fundamento constitucional que assegure um “duplo grau de deliberação” ou “dupla instância” administrativa.

O que se pretende assegurar, enfim, é que a análise das matérias e a decisão administrativa, revelada pelo ato-fim, não se limite a uma única “instância”, tendo em vista que a possibilidade de reapreciação, reavaliação de fatos, provas e argumentos, por autoridade em nível superior hierárquico – muitas vezes com maior liberdade e autonomia – é indispensável para a efetiva democratização do processo de produção da decisão final.614

No âmbito do processo administrativo tributário, as legislações de regência costumam assegurar a possibilidade de reexame da matéria, geralmente, em duas ou três instâncias. Situação peculiar, que não se refere propriamente ao processo administrativo tributário, mas merece ser comentada, é a previsão de existência de instância única

611 GORDILLO, A., op. cit., p. II-27.

612 MEDAUAR, O. A processualidade..., p. 117.

613 XAVIER, A. Princípios do processo..., p. 13-15.

614 “Ou seja, será cabível o recurso desde que o órgão encarregado do julgamento ano se caracterize como o de mais elevada hierarquia no âmbito da Administração Pública. Se isso ocorrer, poder-se-á admitir pedido de reconsideração ou representação, para apontar os defeitos ou manifestar impugnações de cunho inovador”.

(JUSTEN FILHO, M. Curso de direito..., p. 237.)

administrativa no processo que discute a aplicação da perda de perdimento, prevista no artigo 690, do Regulamento Aduaneiro, aprovado pelo Decreto nº 4.543/02. Tratando-se de medida administrativa que priva o cidadão-administrado da propriedade de seus bens, a restrição da discussão da matéria a uma única instância viola diretamente o princípio do devido processo legal, consubstanciado pelos princípios do contraditório e da ampla defesa.615

Outro ponto a ser observado é a “defesa técnica” e autodefesa, consideradas duas vertentes da ampla defesa. A autodefesa é o direito outorgado ao interessado, sujeito de direitos, de pessoalmente apresentar seus argumentos, enfim, atuar no processo administrativo, inclusive no que tange ao direito de audiência, isto é, apresentando razões orais. A defesa técnica se caracteriza pela atuação do representante legal do interessado, o advogado.

ODETE MEDAUAR apresenta várias justificativas a favor da defesa técnica:

equilíbrio entre os sujeitos ou paridade de armas; conhecimento especializado; e a própria presença do advogado que não é guiado por emoções ligadas ao resultado da lide.

Acompanhada por ROMEU FELIPE BACELLAR FILHO, no âmbito do processo administrativo disciplinar, a autora considera que a chamada “defesa técnica” não deve ser tida como mera faculdade, mas como exigência para que se assegure a ampla defesa do cidadão-administrado nas questões que envolvam grande complexidade ou que impliquem aplicação de penalidade de grave teor. Nesses casos, assim, na sua acepção, caberia à Administração Pública, em processos cuja decisão pudesse afetar gravemente a esfera de direito do cidadão-administrado, nomear defensor dativo quando o administrado não estivesse assistido.616

O tema traz controvérsia, tendo a Lei nº 9.784/99 se limitado a prever a defesa técnica como mera faculdade.617 A mesma linha seguiu a Lei Complementar paranaense nº 107/05.

Desdobramento da ampla defesa é o direito de solicitar a produção de provas e de tê-las produzidas e consideradas. É dizer, ainda que a legislação de regência do processo administrativo – e, no caso, do processo administrativo tributário – não assegure, expressamente, a possibilidade de produção e apresentação de provas, é ela um direito que decorre do próprio princípio constitucional do devido processo legal e da ampla defesa.618

615 Pelo cerceamento do direito de defesa, assegurando o duplo grau: Brasil. Tribunal Regional Federal 2ª Região. 3ª Turma. Apelação em Mandado de Segurança nº 9802491160/RJ. Data da decisão: 04.06.2002. DJU de 29.08.2002. Em sentido contrário: Brasil. Tribunal Regional Federal 4ª Região. 1ª Turma. Apelação em Mandado de Segurança nº 2001.71.05.005351-3/RS. Data da Decisão: 23.11.2005. DJU de 11.01.2006 p. 432.

616 MEDAUAR, O. A processualidade..., p. 118.

617 BACELLAR FILHO, R. F., op. cit., p. 310-311.

618 MEDAUAR, O. A processualidade..., p. 119.

A Constituição argentina não veicula expressamente a garantia ao “devido processo legal”, porém a Ley de Procedimientos Administrativos (Ley 19549/72), trata do princípio do “debido proceso adjetivo”.619

Para JUAN CARLOS CASSAGNE, o princípio do “debido proceso adjetivo”

assegura ao cidadão-administrado três direitos fundamentais: (i) direito de ser ouvido; (ii) direito de oferecer e produzir provas; e (iii) direito de uma decisão fundamentada. O direito a uma decisão fundamentada, que converge com o princípio da motivação dos atos administrativos, permite ao cidadão-administrado exigir que a decisão enfrente e trate dos principais argumentos e questões postas em discussão, demonstrando como conduziram ao ato-fim; exige, ainda, que a notificação dessa decisão seja realizada de modo “auto-suficiente”, isto é, repudiando uma revisão genérica do ato, já que muitas vezes o administrado não teve acesso pleno a todo o processo administrativo. 620

Por sua vez, BREWER-CARÍAS, após fazer a análise cotejada de diversas legislações latino-americanas, considera que o princípio do “devido processo adjetivo” (due process) pode ser analisado a partir do estudo dos seguintes princípios: (a) do contraditório;

(b) da ampla defesa; (c) da gratuidade; (d) da motivação dos atos administrativos; (e) da confiança legítima; e (f) do esgotamento do via administrativa e da garantia da efetiva tutela jurisdicional.621

A idéia central, enfim, que norteia os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório é inerente à própria noção de Justiça, como esclarece AGUSTÍN GORDILLO, para quem, além de ser princípio de Justiça, a oitiva dos interessados antes da prática do ato pela Administração Pública é também princípio de eficácia, pois assegura o conhecimento mais aprofundado dos fatos.622

Examinados os princípios constitucionais informadores do processo administrativo tributário, passa-se ao estudo dos princípios legais, que regem os processos administrativos federal e estadual, no âmbito do Estado do Paraná.

619 BREWER-CARÍAS, Allan R. Princípios del procedimiento administrativo en América latina. Bogotá: Legis, 2003. p. 261.

620 CASSAGNE, J.C., op. cit., p. 530.

621 BREWER-CARÍAS, A., op. cit., p. 261-262.

622 GORDILLO, A., op. cit., p. XVII-36.