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O Crédit Mobilier dos Pereire e o relatório Watier

3. H ISTÓRIA DOS C AMINHOS DE FERRO EM P ORTUGAL

3.3. Os caminhos-de-ferro

3.3.1. A Linha de Leste e a Linha do Norte

3.3.1.2. O Crédit Mobilier dos Pereire e o relatório Watier

Para resolver este problema, em finais de 1855 e inícios de 1856, Fontes Pereira de Melo contrai um empréstimo em Paris junto do Crédit Mobilier dos franceses Pereire45, que tinham investimentos nos caminhos-de-ferro de França (ligação aos Pirinéus) e dominavam o financiamento dos caminhos- -de-ferro espanhóis. Com o empréstimo, Fontes pretendia adquirir à Peninsular o caminho-de-ferro construído. Era sua intenção encarregar depois os Pereire (caso estes aceitassem e quisessem accionar o direito de preferência que lhes seria atribuído) da construção do resto da via46, depois de realizados os devidos estudos. Tudo isto, sem a realização de qualquer concurso público. O empréstimo servia também para rescindir o contrato com a Shaw & Waring Brothers. As negociações com esta compa- nhia prolongaram-se desde Dezembro de 1855 até Março de 1856, altura em que o Governo, incapaz de tomar uma posição de força, compra os trabalhos realizados e os materiais por usar juntamente com as acções da Central Peninsular detidas pelos empreiteiros (o Governo comprou-as por 100% do seu valor, apesar de elas estarem cotadas a 75% do seu valor nominal). A atitude dos construtores motivou protestos por parte do embaixador português em Inglaterra. O seu congénere britânico, por seu lado, aconselhava o Governo a aceder às pretensões dos britânicos, preparando também o caminho para a chegada de um outro empresário inglês – Sir Morton Peto.

Entretanto, o Crédit Mobilier envia a Portugal um engenheiro, de nome Watier, para estudar a possibilidade de exploração de caminhos-de-ferro em Portugal (as linhas de Lisboa a Espanha e de Lisboa ao Porto, excepto a já contratada com a Central Peninsular). Até Junho de 1856 (prazo para entrega dos estudos), os franceses ficavam com o direito exclusivo de transformar esses estudos em realidade. Tudo isto ficava dependente da sanção legislativa. Watier chegaria a Lisboa em Janeiro de 1856, assumindo a direcção da empreitada no mês seguinte, coadjuvado por dois engenheiros nacio- nais (Margiochi e Gromicho Couceiro). Os estudos de Watier revelar-se-iam importantíssimos para o futuro do caminho-de-ferro em Portugal. Em Maio de 1856, Watier faria seis propostas, que incluíam, além da continuação da Linha de Leste pela margem direita do Tejo, outras possibilidades para a mesma linha atravessando o Alentejo e directrizes de uma linha até ao Porto47, linha esta que ele

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Fontes Pereira de Melo tinha consciência desta situação. Em 31 de Maio de 1854 admitia na Câmara dos Deputados a necessidade de recorrer a técnicos estrangeiros para os projectos das obras públicas, ao mesmo tempo que propunha a colo- cação de engenheiros militares portugueses ao serviço desses projectos.

43 Em Novembro de 1854, são emitidas três portarias intimando os empreiteiros a cumprir fielmente o contrato acordado com o Governo. Por portarias de 22 e 27 de Novembro de 1854, o Governo: (1) suscitava a execução de providências ante- riores sobre a construção do Caminho-de-ferro de Leste para que fosse feito com solidez e elegância, (2) instava os fiscais a suspenderem as obras se estas fossem feitas em desarmonia com o contratado com o Governo e a remeter relatórios das obras realizadas e (3) comunicava aos empreiteiros a providência das anteriores portarias.

44 As desinteligências entre as partes remontavam já a 1854, a atender a uma nota de interpelação (19 de Junho) do depu- tado Cunha Sottomayor ao ministro das Obras Públicas (Fontes Pereira de Melo), na qual pedia esclarecimentos sobre algu- mas notícias de desentendimentos entre os empreiteiros e o Governo. Quem responderia, contudo, seria o ministro do Reino (Rodrigo da Fonseca Magalhães), asseverando que não existiam hipóteses de o caminho-de-ferro parar.

45 Émile Pereire, Isaac Pereire (curiosamente descendentes de portugueses) e B. Fould Oppenheim de Paris e Charles Devaux e Usielli de Londres.

46 Restava ainda rescindir o contrato com a concessionária, o que viria a acontecer apenas em Julho de 1857. Com a res- cisão do contrato, desaparecia também a Central Peninsular sem honra nem glória.

47 Ver Anexo XV. A estimativa dos custos estava, tal como nos relatórios anteriores, longe da realidade. Na Linha do Norte, Watier contou com Francisco Maria Sousa Brandão e com o trabalho anterior do engenheiro John Rennie (um nome

Caminhos-de-ferro nos Debates Parlamentares (1845-1860) Hugo José Silveira da Silva Pereira

considerava a espinha dorsal da viação acelerada do País. A escolha final para a Linha de Leste recai- ria na directriz que partindo do Carregado, passaria por Santarém, atravessaria o Tejo perto de Cons- tância e, no Alentejo, cruzaria Ponte de Sor e Crato antes de chegar à fronteira perto de Elvas.

Também partindo da Barquinha se lançaria a Linha do Norte passando ainda por Tomar, Pombal, ao largo de Coimbra, Aveiro, Estarreja, Ovar e a partir daqui até à parte baixa de Gaia seguindo a linha da costa (atravessava assim regiões férteis e apresentava também a vantagem de prolongar ao máximo o tronco comum entre as linhas do Norte e de Leste). Já nesta altura a passagem do Douro levantava problemas, tendo implicações sobre o traçado da linha até Gaia. Segundo Watier, a travessia para o Porto não seria muito difícil, mas também adianta que o término da linha em Gaia servia já as exigên- cias presentes e futuras. A escolha desta directriz prejudicou todas as outras possibilidades avançadas: construir a Linha do Norte por Mafra e Torres Vedras, por Vila Nova da Rainha e Leiria (zona dema- siado estéril), por Rio Maior e Leiria (idem), pelo vale do Zêzere a partir de Constância (demasiado difícil) ou pela Atalaia (idem). Segundo FREDERICO DE QUADROS ABRAGÃO48, a primeira ideia que veio à mente do francês para a Linha do Norte era fazer avançá-la por Viseu. Aqui se bifurcariam duas linhas, uma para o Porto e outro para Torre de Moncorvo. A partir daqui, partiria uma outra linha que se haveria de ligar ao Caminho-de-ferro de Burgos, ficando assim Portugal em ligação com França de uma forma mais directa. No entanto, acabaria por abandonar esta ideia, dadas as difíceis condições orográficas daquela área. O facto de em Janeiro de 1856 já se encontrar concluída a secção entre Lis- boa e o Carregado acabaria por ser determinante para a escolha da directriz da Linha de Leste e para a adopção de um tronco comum às linhas de Leste e do Norte.

O francês proporia ainda que a bitola fosse igual à de Espanha e que apenas se construísse uma via de caminho-de-ferro. No entanto, os estudos de Watier não passariam, no imediato, do papel, uma vez que a maioria da Câmara dos Pares49 rejeitava o projecto de Fontes (que incluía também a recon- versão da dívida externa e a contracção de um empréstimo de 13 500 contos para obras públicas) e D. Pedro V50 recusava o pedido de Saldanha de nomear novos Pares favoráveis ao Governo que garantis- sem a aprovação do diploma. Já antes, os avilista haviam começado a recolher assinaturas contra os projectos financeiros de Fontes (várias representações municipais neste sentido chegaram à Câmara), procurando provar que a maior parte dos portugueses não apoiava o Governo. A 6 de Junho de 1856, o Governo demitia-se, sendo substituído por um novo gabinete composto por homens que se opunham a Saldanha e a Fontes.

Em Julho, o novo Governo entregaria mais 450 contos à empresa por conta das acções não subs- critas para que aquela pudesse continuar os trabalhos, que, por portaria de 28 de Julho de 1856, são devolvidos à Peninsular. Em 13 de Agosto, o prazo de entrega dos trabalhos é prorrogado até Setem- bro de 1857. De qualquer modo, as obras continuavam e em 28 de Outubro de 1856 fazia-se a primeira viagem oficial nos 37 quilómetro de linha entre Lisboa e o Carregado (que contou com a ausência de Fontes, alegadamente por causa da morte de seu pai na véspera). Embora sem incidentes de maior, tornou-se notória a deficiência do trabalho51: má qualidade dos materiais (os construtores optaram por escolher materiais baratos para aumentar o seu lucro, além de que da totalidade do material importado, só parte foi utilizado), drenagem insuficiente, valas sem as dimensões previstas, inexistência de esta- ções, oficinas e do muro de protecção ao longo do rio, desrespeito pela bitola contratada e total inob- servância pelas condições de boa e sólida construção são alguns dos aspectos que contribuem para uma má avaliação do desempenho dos construtores ingleses. Também não se pode isentar de respon- sabilidades o próprio Governo português que facilitou, e muito, no campo da supervisão dos trabalhos (o que foi assumido pelo próprio Fontes Pereira de Melo).

Terminava assim a primeira fase da construção de caminhos-de-ferro em Portugal. CARLOS

MANITTO TORRES resume, de uma forma eufemística e um tanto optimista, este período nas seguintes palavras: “as frustradas mas pertinazes tentativas desta época constituíram a primeira fase romanti- camente infeliz da realização deste empreendimento; mas nem tudo se perdeu, uma vez que tais tenta-

frequentemente omisso da bibliografia nacional), sobretudo na secção entre Coimbra e o Porto. Por esta altura, já Fontes Pereira de Melo estava certo de que o entroncamento da Linha do Norte na Linha de Leste se faria em Vila Nova da Barqui- nha.

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Abragão – Caminhos de ferro portugueses, pp. 315-316.

49 Onde pontificava uma maioria de cabralistas (desde as fornadas dos anos 1840), liderada pelo próprio Conde de Tomar 50

O Rei sempre acompanhou de perto todo o processo e apesar de ser um grande entusiasta dos caminhos-de-ferro (nos quais depositava enormes esperanças) apelidava este contrato de negócio de judeus; o monarca nunca simpatizara com Fontes (achava-o demasiado orgulhoso a ponto de não dar ouvidos a ninguém) nem nunca aprovara a forma como este geria a cons- trução de caminhos-de-ferro no Reino.

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tivas foram a base do triunfo posterior e puseram à prova a tenacidade de governantes, engenheiros e empreiteiros em trabalho tão transcendente para a época e para o meio”52.