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As vantagens do caminho-de-ferro

4. C AMINHOS DE FERRO NOS DEBATES PARLAMENTARES

5.2. As vantagens do caminho-de-ferro

A Regeneração não esfriou o desejo de construir caminhos-de-ferro em Portugal. Pelo contrário, os governos souberam aproveitar a ideia lançada e consolidada por Costa Cabral e tentaram torná-la realidade. Nisto – e só nisto, na necessidade e capacidade de Portugal se dotar de vias-férreas – foram acompanhados pela quase unanimidade dos deputados, independentemente do quadrante político. De facto, nos dez primeiros anos da Regeneração, ninguém se pronunciava contra a ferrovia: “Não que- remos caminhos de ferro! Quem é o temerário que se levanta ahi, e diga – não quero caminhos de ferro!”2, era uma oração que recorrentemente se repetia na Câmara. Praticamente havia competição para decidir quem era o maior apoiante do caminho-de-ferro: “Não ha ninguém (…) que possa apoiar e desejar mais do coração do que eu, que entre nós se façam caminhos de ferro; eu que os vi nascer (…) em Inglaterra, que foi perto da cidade onde eu então residia, fallo do caminho de ferro de Man- chester a Liverpool, quantas vezes vi o que havia a esperar d'elles? Muitas. Sei que as vantagens d'elles provenientes são incalculáveis, póde assim dizer-se; e n'estes termos poder-se-ha dizer, que eu não quero caminhos de ferro?”3. No Governo de Loulé mantinha-se a competição: “não queira fazer subsistir o monopolio do amor do paiz, e do desenvolvimento physico e moral d’esta terra. É epocha de acabar com os monopolios”4.

Eram justamente aquelas vantagens incalculáveis que constituíam o cimento que agregava a uni- dade da Câmara. Ao longo de todo o período estudado, nenhum deputado as negava, aproximando-se algumas das intervenções do discurso do personagem queirosiano Alípio Abranhos, sobretudo se fos-

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Cunha Sottomayor. Diario da Camara dos Deputados, 25 de Janeiro de 1854, Acta n.º 20, p. 162. 3

Faustino da Gama. Diario da Camara dos Deputados, 2 de Maio de 1855, Acta n.º 2, p. 32. 4

Caminhos-de-ferro nos Debates Parlamentares (1845-1860) Hugo José Silveira da Silva Pereira

sem de deputados ministeriais ou eleitos por zonas por onde os caminhos-de-ferro haveriam de pas- sar5. Em 1852, o regenerador Casal Ribeiro, por exemplo, via na questão ferroviária um caso de vida ou de morte: “Eu intendo que a questão do caminho de ferro é para nós uma questão de vida ou de morte, porque elle é o mais poderoso incentivo que ha de dar energia á nossa agricultura, á nossa industria, á riqueza nacional; e é nisto que está, segundo o meu intender, a solluçao de toda a questão económica e financeira do paiz, porque o nosso estado financeiro não póde melhorar, sem primeiro se pôr em movimento a riqueza do paiz, e o caminho de ferro ha de ser o principal motor desse movi- mento”6. Havia, assim, uma grande expectativa em relação aos caminhos-de-ferro, sobretudo depois de trinta anos de liberalismo pouco produtivos, embora não se especificasse o prazo a partir de quando as mudanças se efectivariam. O caminho-de-ferro era o meio de desenvolvimento da agricultura, da indústria, do comércio e inclusivamente das finanças. Para os regeneradores essa mudança passava pela ligação à Europa (tinham consciência que internamente Portugal estava muito atrasado para necessitar de um caminho-de-ferro exclusivamente nacional)7; para as restantes forças políticas, pela Linha do Norte. Ambos comungavam da necessidade de centralizar a rede em Lisboa (já prevista desde o relatório Du Pré, o que constitui mais uma prova de ser o Fontismo um Cabralismo sem Costa Cabral): “Quem duvida, sr. presidente, que (…) todo o dinheiro mesmo da opulenta Inglaterra, se agora o possuissemos, facil nos fôra (…) fazer d’este bello paiz um verdadeiro paraizo, dotá-lo de uma extensa rede de caminhos de ferro, que communicasse a capital com todos os pontos do reino”8. Acreditava-se que Portugal, por ter um porto como o de Lisboa, tinha de o dotar de caminhos-de-ferro para o aproveitar melhor9. Casal Ribeiro acreditava que mesmo se Espanha não prolongasse o Cami- nho-de-ferro de Leste no imediato, haveria de ficar convencida mais tarde, quando Portugal já tivesse a sua parte construída. Era ideia generalizada que os caminhos-de-ferro bastavam para desenvolver o País, mesmo sem um plano de conjunto ou sem pequenas comunicações.

E embora se admitisse que havia outros aspectos a melhorar internamente, também se entendia que a melhor maneira era começar pelas obras públicas em geral e caminhos-de-ferro em particular. De tal modo assim era que mesmo depois do fracasso da Peninsular, os caminhos-de-ferro não perde- ram a sua aura de alavanca para o desenvolvimento nacional, bem pelo contrário: “É pois este [o caminho-de-ferro] o unico meio que nós temos para nos levantar do abatimento em que jazemos”10, diria o regenerador Martens Ferrão tentando fundamentar o projecto n.º 12-B. Este deputado seria apoiado pelo também regenerador Latino Coelho: “Pois não fizemos nós em 1640 esforços de gigan- tes, para manter a independência da nossa pátria? (…) E porventura allegou-se então a penuria do thesouro e a pobreza d’este paiz, para que não tratassemos de salvar a liberdade, e de vindicar a nossa independencia (…)?”11. Para os apoiantes do Governo, o caminho-de-ferro era comparável à Revolução de 1640, sendo por isso merecedor de todos os sacrifícios.

Nota-se assim um certo desconhecimento em relação às capacidades do caminho-de-ferro: espe- rava-se dele o aumento da produção nacional quando a sua principal função era o transporte; tanto se opinava que os preços haveriam de aumentar como de diminuir com o desenvolvimento das comuni- cações; na própria construção se evidenciava alguma ignorância, (malgrado os amplos conhecimentos técnicos de alguns deputados, que, contudo, não superavam o fraco conhecimento estatístico e topo- gráfico do País12). Fontes, por exemplo, referia, a propósito do Caminho-de-ferro do Norte, que este deveria ser começado a partir do Porto para Sul atendendo à facilidade da construção. Ora, a ligação

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Estes só após 1857. Antes, nenhum deputado (ou representação municipal) procurava trazer o caminho-de-ferro à porta de sua casa.

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Diario da Camara dos Deputados, 26 de Maio de 1852, Acta n.º 76, p. 31. 7

Nos cinco anos do Governo regenerador, nada se fez quanto ao Caminho-de-ferro do Norte, apesar de este ter sido decretado em 30 de Agosto de 1852. Aparentemente, esta medida não passou de um pretexto usado por Fontes para se apro- priar do Fundo Especial de Amortização.

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Pereira Garcez. Diario da Camara dos Deputados, 10 de Maio de 1856, Acta n.º 8, publicado a p. 141.

9 Por isso surgiam previsões de rendimento das linhas completamente exageradas, que mais tarde não se viriam a con- firmar.

10 Martens Ferrão. Diario da Camara dos Deputados, 1 de Abril de 1856, publicado a p. 33.

11 Diario da Camara dos Deputados, 6 de Maio de 1856, Acta n.º 4, publicado a p. 318. A este exemplo seguiam-se as Invasões Francesas e a Guerra Civil. O caminho-de-ferro era visto como mais do que um meio de desenvolver Portugal. Era também um meio de colocar o nome do homem que os instalasse no País na sua História. Bastava ver as alusões que se faziam a grandes figuras da História de Portugal e aos seus feitos: D. João IV na Restauração, o Marquês de Pombal após o terramoto ou, mais recente, Mouzinho de Albuquerque e D. Pedro IV na consolidação do regime liberal. O desejo de pro- tagonismo era assim muito evidente.

12 Albino de Figueiredo chegaria a sugerir que se começasse por conhecer topograficamente o Reino antes de o começar a dotar de caminhos-de-ferro.

de Gaia ao Porto só se fez mais de 20 anos depois, dada a dificuldade em atravessar o Douro. De mão dada a este desconhecimento, seguia uma confiança cega em Espanha13 e na iniciativa privada por parte dos governos (que eram quem contratava os empresários14). Daquela, esperavam os regenerado- res a continuação da Linha de Leste até Madrid (algo de que a oposição histórica, cartista e avilista não tinha tanta certeza); desta, a perfeita construção das vias, uma vez que o Estado não tinha os capi- tais necessários e os próprios empreendedores teriam interesse em explorar convenientemente as linhas que construíam.

Esta expectativa em relação às potencialidades do caminho-de-ferro para desenvolver o País nunca foi, em geral, posta em causa. As vozes dissonantes após os desgostos com os empresários eram muito raras, se bem que existentes: “[Lamento] também a existência a fórma que se deu ao caminho de ferro de leste, que é um cancro que afflige os ministros actuaes, que affligiu os passados e affligirá os futuros: entendo que os fundos ali empregados, applicados a estradas do paiz, dar-nos-iam as communicações para todas as cabeças dos districtos, e estavamos hoje em communicações frequentes com todos os povos; em quanto que esses fundos ali empregados estão improductivos, e improductivos hão de ser sempre”15. Outros chegaram a colocar como alternativa a construção pelo Estado, surgindo também algumas opiniões sobre meios melhores em que investir. No entanto, o caminho-de-ferro ainda tinha muito influência sobre a mente dos governantes. Também a necessidade de desenvolver não só o transporte, como a produção e o consumo chegou a ser aludido. Mas tal como a situação ante- rior, apenas raramente e em discussões de caminhos-de-ferro secundários (do pinhal de Leiria) que não contribuía para generalizar estes conceitos à política ferroviária geral16.

Em 1859 ainda se dizia: “O caminho de ferro é um grande elemento de civilisação: não quero aqui dizer qual a utilidade e a vantagem dos caminhos de ferro, seria isso uma banalidade. Em 1859 ninguem duvida da grande utilidade das vias ferreas”17. Mas apesar de ser uma banalidade, Gomes de Castro não se coibia de as referir: “Eu entendo que os caminhos de ferro têem sido muito mal conside- rados, e não têem sido encarados debaixo do seu verdadeiro ponto de vista; não se deve considerar tanto os onus que hão de resultar para o thesouro, como o bem que há de vir ao paiz do seu maior desenvolvimento, e do incremento que hão de tomar todas as industrias do paiz, porque tudo isto se traduz em mais facil e maior cobrança de tributos”18. E estas vozes soavam ainda mais alto.