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4. C AMINHOS DE FERRO NOS DEBATES PARLAMENTARES

5.5. Portugal e o estrangeiro

A comparação com o estrangeiro não deixou de ser aduzida neste período, contudo tornou-se um cotejo pela positiva, muito embora as comparações pela negativa se mantivessem (sobretudo do lado da oposição): “Pois querem comparar França com Portugal! França, onde ha caminhos de ferro, onde ha diligencias, onde ha muitas vias de communicação, e nós que em estando atraz de um monte A ou B, já não sabemos para onde havemos de ir!”52. Do lado dos governos, o atraso passou a servir de motivação para o fomento e não motivo para uma auto-comiseração colectiva. O estrangeiro conti- nuava a ser considerado superior e civilizado e por isso exemplo a imitar pelos portugueses. O atraso passou a ser motivo para se apressarem as medidas e meio para tornar mais eficazes essas mesmas medidas, uma vez que Portugal tinha a vantagem de poder contar com a experiência alheia e assim cometer menos erros (amiúde se referiam os casos ou as autoridades franceses, belgas, ingleses, espa- nhóis ou norte-americanos, tanto do lado do Governo como do lado da oposição, conforme a sua argumentação, no que eram invariavelmente saudados com Apoiados). Fontes esperava que em pouco tempo se deixasse de dizer que África começava nos Pirinéus. No entanto, em 1856, após a paragem dos trabalhos na Linha de Leste, o subdesenvolvimento nacional seria lembrado pelos apoiantes do Governo para diminuir o alcance do fracasso: os 37 quilómetros de via eram já um grande feito num país como Portugal.

5.6. Caminhos-de-ferro e estradas

Falar em caminhos-de-ferro era também falar em estradas, quer das que lhes deviam ser comple- mentares quer das que lhes podiam ser concorrentes. De facto, a relação com entre as duas vias nunca foi consensual nem tampouco definida. A ausência de estudos concretos e definitivos sobre as directri- zes dos caminhos-de-ferro ou sobre um sistema geral de transportes contribuiu também para esta situação.

As vantagens apresentadas pelas estradas de ferro virtualmente empurravam as estradas de maca- dame para uma posição subalterna53. Se havia deputados para quem os caminhos-de-ferro bastavam54, outros estavam conscientes de que sem estradas os caminhos-de-ferro de pouco valiam; além disso, o deficit podia impedir investimentos avultados, mas não impedia a construção de estradas ordinárias que, por seu lado, tinham o condão de acostumar os portugueses ao transporte facilitado. Esta corrente de pensamento, contudo, era claramente minoritária e típica da oposição – a falta de estradas não dei- xava de ser uma boa forma de atacar o Governo (a pugna pela construção da estrada Lisboa – Porto prova isso mesmo).

Para os governos, o caminho-de-ferro tornara-se um fim e um meio económico e político dema- siado importante para poder ser ultrapassado pelas estradas ordinárias, rios, canais ou oceano. Na opi- nião de Fontes, “Se a imprensa pôde matar a architectura, como meio de traduzir o pensamento de um individuo ou de uma epocha, porque não ha de o caminho de ferro matar a estrada, como meio de transporte, como elemento de vida das nações, e como a ultima formula da civilisação moderna?”55. Deste modo, as estradas seriam construídas nas regiões que não iriam ser cruzadas pelos caminhos-de- -ferro, numa tentativa de aplicar uniformemente o rendimento do imposto das estradas (que era pago por todos) e de satisfazer os interesses de campanário. Por outro lado, até meados da década de 1850, ainda não estava completamente definido o quadro de responsabilidades quanto à construção de estra- das locais: Governo central ou municípios?

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D. Rodrigo de Meneses. Diario da Camara dos Deputados, 1 de Abril de 1856, Acta n.º 1, p. 12. 52 Alves Martins. Diario da Camara dos Deputados, 6 de Junho de 1854, Acta n.º 121, p. 83. 53

Sobretudo na Linha de Leste que, sendo uma linha internacional, apenas deveria ligar o porto de Lisboa a Espanha. 54

José Estêvão dizia que caso se tivesse inventado o caminho-de-ferro antes das estradas, não haveria estradas, mas só caminhos-de-ferro, enquanto que Lobo de Ávila alvitrava que primeiramente se deviam construir caminhos-de-ferro e só depois as estradas para ele convergentes.

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A mudança de Governo em 1856 e sobretudo o Discurso da Coroa de 1857 traz definitivamente à Câmara a questão da construção de estradas de acesso às estações. A partir desta data, a necessidade de estabelecer aquelas vias de comunicação, paulatinamente, passou a ser tomada em maior considera- ção, embora continuassem a coexistir com estradas concorrentes ao caminho-de-ferro.

5.7. O financiamento

Na visão dos regeneradores, o crédito aplicado aos melhoramentos na viação acelerada deveria aumentar a riqueza pública e daí a matéria tributável, permitindo assim pagá-los, prevendo também o recurso aos impostos para pagamento dos seus juros. O sacrifício seria assim espaçado no tempo, não incidindo apenas sobre as gerações presentes mas também sobre as gerações futuras, da mesma forma que os algarvios eram onerados pelos melhoramentos no Alentejo e vice-versa: “o imposto (…) é antes um adiamento, um emprestimo que a nação faz a si mesma, e de que ella há de vir a tirar em pouco tempo sobejamente para pagamento de um grande juro e amortisação do capital”56. Era, assim, um investimento produtivo que se pagava a si próprio.

Neste campo, a oposição sentia-se mais à vontade para discutir do que propriamente na área téc- nica dos caminhos-de-ferro. António José de Ávila tinha sido ministro da Fazenda na década de 1840 e falava com maior conhecimento de causa. Contudo, muito do seu discurso era exequível na oposi- ção, mas não no Governo. A oposição duvidava da eficácia de contrair empréstimos para os melhora- mentos materiais, preferindo as economias (os cortes orçamentais)57 ou as reformas; a reorganização da Fazenda; o equilíbrio orçamental (que aumentaria o crédito português); e a melhoria da fiscalidade e da máquina do Estado tornando-a mais produtiva e menos dispendiosa. A este propósito, retorquia Fontes a Macedo Pinto: “o nobre deputado entende, que, porque ha deficit, não se deve fazer o cami- nho de ferro; eu entendo, que, porque ha deficit, é que se deve fazer”58. Os históricos chegaram a adiantar que o Estado podia construir caminhos-de-ferro por si, o que na altura era um argumento quimérico, atendendo à falta de conhecimentos, capitais e experiência para levar a efeito caminhos-de- ferro por conta exclusiva do Tesouro59. Parecia muito mais prudente (aliás era o que se fazia, grosso modo, em toda a Europa) conceder subsídios ao concessionário para construir ou explorar o caminho- de-ferro. Criticava-se também a origem dos capitais (o estrangeiro) e as consequências da sua angaria- ção: para os regeneradores, os impostos eram um mal necessário60, o que era negado inicialmente pelos seus opositores61. Contudo, estes acabariam por dar a mão à palmatória, mas quando o fizeram, porém, a abjuração de doutrinas erróneas não era suficiente para satisfazer a oposição62.

O caminho-de-ferro não era visto como serviço público, mas como um investimento estatal do qual se esperava obter lucro: “Se se calcular que o rendimento de um caminho de ferro é inferior á despeza que o estado faça com elle, esse caminho de ferro não convém”63, diria Carlos Bento. Assim se explica o facto de só se proporem caminhos-de-ferro para as regiões tidas como ricas (Alentejo, litoral). Porém, considerava-se que entregar perpetuamente os caminhos-de-ferro aos privados (como em Inglaterra) não era o ideal porque a linha-férrea possuía uma utilidade pública que fazia deles pro- priedade nacional: “Eu entendo que os caminhos de ferro são de utilidade particular e de utilidade publica; como elementos de utilidade publica eu considero-os propriedade nacional, e considerando- -os assim, entendo que não será conveniente nem vantajoso nunca aliena-los”64. À medida que o tempo corria, os contratos não iam sendo cumpridos e o interesse dos privados se ia esmorecendo,

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Nogueira Soares. Diario da Camara dos Deputados, 12 de Fevereiro de 1857, Acta n.º 9, publicado a p. 182.

57 Sendo que os caminhos-de-ferro eram também uma grande economia, na medida em que eram um investimento pro- dutivo.

58 Diario da Camara dos Deputados, 30 de Junho de 1855, Acta n.º 22, p. 403. O caminho-de-ferro chegou a ser usado várias vezes como argumento nos debates sobre a Fazenda.

59 Também José Estêvão e Oliveira Marreca chegaram a propor a construção pelo Governo. Mas as suas proposta reve- lavam mais entusiasmo pelo caminho-de-ferro e desilusão face à iniciativa privada, respectivamente, que propriamente von- tade de fazer oposição. De qualquer modo a ideia seria amplamente rejeitada e relegada para um expediente ao qual o Estado devia recorrer em último caso.

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Além disso, a organização da Fazenda era uma realização administrativa que não se via. Os caminhos-de-ferro viam-se e impressionavam os interlocutores dos deputados.

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Uma das razões pelas quais a Linha do Norte foi escolhida em prejuízo da Linha de Leste foi o facto de aquela pro- meter maiores rendimentos (à companhia, logo ao Estado) que tornava desnecessário o levantamento de impostos.

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E mesmo dentro do Partido Histórico havia vozes dissonantes em relação a esta posição do Governo. 63 Diario da Camara dos Deputados, 11 de Julho de 1854, Acta n.º 146, p. 204.

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Caminhos-de-ferro nos Debates Parlamentares (1845-1860) Hugo José Silveira da Silva Pereira

começou-se a admitir que o investimento beneficiaria o País, mesmo que a empresa concessionária não retirasse do caminho-de-ferro uma grande rendibilidade, o que era uma hipótese cada vez mais plausível, principalmente entre os deputados das oposições. De facto, estes (fossem regeneradores, históricos ou cartistas) eram sempre menos optimistas que os governamentais, como vimos. A verdade é que as esperanças de retorno do investimento a curto prazo eram cada vez mais ténues, como o prova o facto de a garantia de juro ser completamente posta de parte pelos deputados após o contrato com a Peninsular e ser uma das responsáveis pela recusa das alterações ao contrato com Sir Samuel Morton Peto. Desse modo, pensava-se obrigar o concessionário a uma boa construção para depois executar uma boa operação da linha. Era impensável que os empresários apenas pretendessem lucrar com a construção, desobrigando-se da exploração.