• Nenhum resultado encontrado

1.6 Transposição Didática

1.6.2 Origem e conceito da Transposição Didática

De acordo com Almeida (2007), o termo transposição didática (TD) surge com o sociólogo Michel Verret, em 1975, mais precisamente em sua tese de doutorado - Le temps

des études, apresentada na universidade de Paris V, mas é consolidado pelo educador

francês Yves Chevallard, que o coloca em evidência no campo do estudo das didáticas. O berço da TD é o da didática do ensino da Matemática mas, no entanto, ela vem se difundindo em outras áreas do meio acadêmico, chegando, por exemplo, na Física; fato notado por Chevallard (1991) em seu trabalho que leva o nome de sua teoria - La trans-

posición didáctica - Del saber sabio al saber enseñado, na Química; como, por exemplo,

o trabalho de Wartha (2013), em que discute a TD do conceito de eletronegatividade nos livros didáticos, utilizados no ensino superior de Química, e também no ensino de língua estrangeira; trabalho relatado por Silva (2011), que estuda os pressupostos teóricos do manual do professor em atividades de escrita em um livro didático usado no ensino da língua inglesa. Como percebemos, o conceito de TD extrapolou os limites das didáticas do ensino de Matemática e hoje é usada para auxiliar os educadores em sua prática docente nas diversas áreas; daí sua importância no campo da didática.

O sistema didático é formado pela relação entre o professor, o aluno e um saber. Diferentemente do conhecimento, que é algo individual, o saber é constituído socialmente. No centro dessa relação situa-se o real objeto de ensino, ou seja, o objeto a ser ensinado. Esse objeto possui relação Ąlhar com o saber sábio, isto é, nascido do conhecimento academicista, ou seja, o Śsaber sábioŠ, produzido dentro das esferas acadêmicas e cientíĄcas. Quando um dos saberes sábios são designados a serem ensinados (saber a ensinar), eles passam por deformações, até que se tornem aptos a serem transformados em um objeto de ensino (saber ensinado, processado dentro do âmbito escolar). A esse processo de transposição (saber sábio → saber a ensinar → saber ensinado) Chevallard dá o nome

de transposição didática. Podemos assim entender que a TD é o processo de fabrico do objeto de ensino, cujo saber origina-se no meio acadêmico. Percebemos isso na passagem a seguir do texto de Chevallard:

Um conteúdo de saber que tenha sido deĄnido como saber a ensinar, sofre, a partir de então, um conjunto de transformações adaptativas que irão torná-lo apto a ocupar um lugar entre os objetos de ensino. O ŚtrabalhoŠ que faz de um objeto de saber a ensinar um objeto de ensino, é chamado de transposição didática68.(CHEVALLARD, 1991, p.45) Essas deformações, descritas por Chevallard, sugere que há diferenças daquilo que é criado nos espaços cientíĄcos e educacionais. No entanto, essas deformações não signi- Ącam que há diferenças conceituais entre o que é produzido entre essas duas esferas do conhecimento. Por exemplo, uma reação química tem o mesmo sentido em um laboratório (onde se faz ciência) e na escola (onde se ensina ciência). O que se entende por reações químicas nos espaços educacionais advém do conhecimento cientíĄco, produzido dentro dos laboratórios, centros de pesquisa, etc. Almeida (2007) aponta que, nesse caso, há ape- nas uma conformação mais abrangente dos termos usados - no campo semântico e léxico, ou seja, diferenças textuais para o mesmo conceito. Na teoria de Chevallard é imprescin- dível que haja essa deformação do saber sábio para que o mesmo possa ser ensinado nos ambientes escolares. De acordo com o autor, temos:

Para que o ensino de um determinado elemento de saber seja meramente

possível, esse elemento deverá ter sofrido certas deformações, que o fa-

rão apto a ser ensinado. O saber-tal-como-é-ensinado, o saber ensinado, é necessariamente distinto do saber-inicialmente-designado-como-o-que- deve-ser-ensinado, o saber a ensinar69.(CHEVALLARD, 1991, p. 16) Para Chevallard, o objeto de ensino (ou objeto do saber) só tem sentido dentro do ambiente onde ele é criado, ou seja, no campo de consciência dos agentes envolvidos no sistema de ensino - professores e educandos. Para os matemáticos, por exemplo, um objeto de saber é um conglomerado de temas dentro do que ele chama de Śnoções matemáticasŠ. Ele cita, como exemplo, as noções de adição, do círculo e das equações diferenciais como participantes desse objeto do saber. Todas são noções que advém da esfera cientíĄca do saber, desenvolvida e criada por seus representantes - os matemáticos.

Como toda nova teoria, ela também é passiva de criticismo e de simpatia. De acordo com o autor, essas duas posições podem ser perigosas, pois, no primeiro caso, a 68 Traduzido do original em espanhol: Un contenido de saber que ha sido designado como saber a

enseijar, sufre a partir de entonces un conjunto de transformaciones adaptativas que van a hacerlo apto para ocupar un lugar entre los objectos de enseñanza. El ŚtrabajoŠ que transforma de un objeto de saber a enseijar en un objeto de enseijanza, es denominado la transposición didáctica.

69 Traduzido do original em espanhol: Para que la enseijanza de un determinado elemento de saber

sea meramente posible, ese elemento deberá haber sufrido ciertas deformaciones, que lo harán apto para ser enseijado. El saber-tal-como-es-enseijado, el saber enseijado, es necesariamente distinto del saber-inicialmente-designado-como-el-que-debe-ser-enseijado, el saber a enseijar.

rejeição da teoria dá-se por uma má interpretação do leitor, no qual Ś[...] os primeiros usos de um conceito consideram-se frequentemente como casos ŚpatológicosŠ, porque se trata de forçar as características com o propósito de a ver ou de fazer ver.Š (CHEVALLARD, 1991, p. 19); já no segundo Ś[...] o ativismo obstrui a análise e uma certa atitude reĆexivaŠ (CHEVALLARD, 1991, p. 20), inviabilizando assim a teoria.

As críticas mais fortes, segundo Halte (2008), vêm da obra de Claude Raisky e Michel Caillot (1996) - Au-delá des didactiques, le didactique: debats autour de concepts

fédérateurs. Nesse trabalho os autores discutem as falas de Chevallard em que, por exem-

plo, este diz existir um saber cientíĄco, e de um modo geral, um saber. Isso leva os autores da crítica a entenderem que existe um saber e que ele é único, um explícito reducionismo se pensarmos nos outros campos senão os da Matemática. Halte (2008) em seu trabalho - ŚO espaço didático e a transposiçãoŠ, chama a atenção para a redução da problemática didática em seu todo à transposição. Trabalho este discutido em torno da temática do ensino da língua materna francesa, ele questiona o excessivo enfoque dado a apenas um dos polos do sistema didático, concedendo destaque especial aos saberes em detrimento às relações entre os professores e os alunos com esse saber. O papel do professor e do aluno parece ser para Chevallard secundário, o que Halte critica, conferindo a eles um papel essencial no processo de transposição didática.

Essa supervalorização do saber, em detrimento aos outros polos do sistema didá- tico, não Ąca muito explícita no esquema montado por Chevallard para explicar os Ćuxos tomados na TD. Esse esquema simpliĄcado (Figura 30), segundo o autor, engloba o con- ceito de sistema didático mas, no entanto, é sempre o saber sábio (proveniente das esferas cientíĄcas) que Ąca em evidência em suas falas. É a transposição didática restrita.

A B C Ambiente Noosfera Sistema de ensino Şstricto sensuŤ

Figura 30 Ű Transposição Didática - Yves Chevallard

Fonte: Baseado na figura em (CHEVALLARD, 1991, p. 28).

Do interior (sistemas didáticos) para a parte mais exterior (ambiente), Chevallard descreve os conceitos presentes no esquema. Na Ągura, temos ao centro círculos represen- tados por (A), (B) e (C) que são os sistemas didáticos. Esses sistemas didáticos, como

descrito anteriormente, são formados pela tétrade - professor, aluno e saber. O sistema de ensino engloba todos esses sistemas didáticos, tendo a seu favor todos esses recur- sos tornando-o viável. Na camada mais externa do sistema de ensino está o que o autor chama de sistema de ensino stricto sensu, um local extremamente conturbado, visto que, de acordo com ele, é ali que se processa o encontro da sociedade e suas exigências, lo- cal que surgem os conĆitos, as negociações e as soluções. É nessa esfera que se pensa o funcionamento didático. Ao interior desse camada o autor dá o nome de noosfera. Essa conturbação tem como agentes não só os educandos e professores, mas, também, é local prolíĄco de outros membros representantes da sociedade (pais de alunos ou representantes de órgãos políticos, por exemplo) e os representantes do ensino (por exemplo, desde os já mencionados professores até os que cuidam da organização escolar). Na parte mais externa do esquema, no que o autor chama de ambiente, está a sociedade laica - contrastando com a sociedade dos especialistas, presente no sistema de ensino.

A transposição didática opera dentro na noosfera, ou seja, na transposição do objeto de ensino (originado do centro do sistema didático) para o ensino a ensinar (pro- cessado dentro dessa esfera).