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2 HISTÓRICO ACERCA DA INSTALAÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA

4.2 SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS NO ÂMBITO DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL

4.2.3 Os países em desenvolvimento no sistema de solução de controvérsias

Comentou-se no primeiro capítulo desse trabalho a incessante luta dos países em desenvolvimento na participação da instalação da ordem econômica internacional. Encontraram dificuldades em especial na participação do sistema de solução de controvérsias.

Se analisado os artigos XXII e XXIII do GATT-1947, constata-se que neles não se consagrou regras sobre a participação desses países no sistema de solução de controvérsias. Somente na década de 60 é que surgiram iniciativas “tendentes a conceder aos países em desenvolvimento condições mais favoráveis na defesa de seus interesses”.509

506

CRETELLA NETO, José. Direito processual na Organização Mundial do Comércio, OMC:

casuística de interesse para o Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 116.

507

Ibidem, p. 115. 508 Ibidem, p. 117.

Relata Amaral que essas iniciativas advieram mediante uma demanda do Uruguai em face de “restrições comerciais, sobretudo de caráter não tarifário, impostas por quinze países desenvolvidos às exportações de produtos primários provenientes de zonas temperadas”.510

Conquanto os argumentos do Uruguai não surtissem efeito para se lograr êxito – dada a dificuldade de se provar o dano comercial sofrido –, essa demanda ficou como histórico das dificuldades que os países em desenvolvimento enfrentariam para ter acesso facilitado – mais equânime com os países desenvolvidos – ao sistema de solução de controvérsias.

No ano de 1964, com a instituição da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento – UNCTAD511 (espécie de “Tribuna dos países em

desenvolvimento” por encampar posições anti-GATT),512 provocou-se a criação do

Comitê sobre Comércio e Desenvolvimento no âmbito do GATT. A intenção, por intermédio desse Comitê, era criar regras de abrandamento do GATT que acabaram sendo introduzidas entre os anos de 1964 a 1980.513

Uma das primeiras regras de abrandamento foi efetuada no ano de 1965 quando se anexou ao GATT, uma seção intitulada “Comércio e Desenvolvimento” constituindo a Parte IV, “podendo ser interpretada como verdadeiro reconhecimento da desigualdade compensatória”.514 Em que pese as modificações – que poderiam

resultar em benefício aos países em desenvolvimento –, elas tinham aplicação limitada, haja vista serem facultativas. Equivaliam-se, na verdade, a meras declarações de boa vontade.515

Também no ano de 1965, Brasil e Uruguai apresentam ao Comitê sobre Comércio e Desenvolvimento uma proposta para se alterar o artigo XXIII do GATT a fim de facilitar esse acesso.

510 AMARAL Jr., Alberto. A Solução de Controvérsias na OMC. São Paulo: Atlas, 2008, p. 119. 511 Sigla inglesa de United Nations Conference on Trade and Development.

512 Entendimento defendido por José Cretella Neto. Cf. CRETELLA NETO, José. Direito processual

na Organização Mundial do Comércio, OMC: casuística de interesse para o Brasil. Rio de

Janeiro: Forense, 2003, p. 35. 513 Ibidem.

514 Ibidem.

515 Ibidem. Cretella Neto menciona as seguintes modificações que teriam por consequência, ainda que pequena dada a facultatividade, beneficiar os países em desenvolvimento. Nesse sentido: “o Artigo XXXVI (“Principles and Objectives”), especialmente o § 8, consiste em significativa inovação autorizando a não observância estrita do princípio da reciprocidade ao assumirem compromissos nas negociações com os PMDs visando à redução ou a eliminação de tarifas, e impondo que, nesses casos, somente os países industrializados reduzam suas tarifas aduaneiras. Os Artigos XXXVII (“Commitments”) e XXXVIII (“Joint Action”) preveem compromissos dos países desenvolvidos, individual ou coletivamente, para celebrar acordos sobre produtos básicos.

Amaral enumera os principais pontos dessa proposta:

Os principais pontos da proposta são os seguintes: (1) a previsão de assistência técnica aos países em desenvolvimento e a possibilidade de que outras partes contratantes promovam demandas em nome desses países; (2) os prejuízos sofridos pelos países em desenvolvimento, resultantes da violação das regras do GATT que não originassem compensação adequada, deveriam ser reparados por meio de uma indenização monetária; (3) nas controvérsias entre um país em desenvolvimento e um país desenvolvido, o primeiro estaria automaticamente desobrigado de cumprir os preceitos do GATT nas relações comerciais que mantêm com o segundo até a decisão final do painel; (4) as partes contratantes poderiam considerar, após o transcurso de certo lapso temporal, a adoção de medidas coletivas para obter o cumprimento de uma decisão do painel que beneficie um país em desenvolvimento.516

Vê-se, assim, que a proposta era criar benefícios aos países em desenvolvimento tornando o sistema mais equânime quando se estivesse diante de um litígio entre esses países e os países desenvolvidos.

A proposta brasileira e uruguaia foi, no entanto, rejeitada sob o argumento de que o pleito contrariaria a soberania do Estado condenado. Ademais, consignou-se na Decisão adotada em 5 de abril de 1966 os seguintes aspectos:

a) no caso de não se atingir uma solução não satisfatória na fase de consultas estabelecida pelo artigo XXIII.1 do GATT, o país em desenvolvimento poderia invocar os bons ofícios do diretor-geral. b) se não se obtiver consenso no prazo de dois meses a partir do início das consultas, o diretor-geral, a pedido de uma das partes, solicitaria às partes contratantes a designação de um grupo de especialistas para analisar a disputa e efetuar recomendações no período de sessenta dias; c) após a apresentação das recomendações, a parte contratante condenada deveria executar a medida no prazo de noventa dias; e d) se adoção da medida não se verificasse ou se fosse ela insuficiente para o cumprimento das recomendações, as partes contratantes poderiam autorizar a suspensão das concessões previstas pelo GATT.517

Conquanto não se atendesse, pela decisão, o pleito requerido por Brasil e Uruguai, extrai-se dela dois importantes assuntos: primeiramente foi a instituição de prazos fixados para as etapas do procedimento de solução de controvérsias; e em segundo foi a introdução “do tema do desenvolvimento na ordem de preocupações do sistema”.518 Ressalta-se que o assunto relativo aos prazos fixados serviu de

embasamento para as modificações do sistema de solução de controvérsias verificadas na Rodada Tóquio. Quanto ao tema da inserção dos países em

516

AMARAL Jr., Alberto. A Solução de Controvérsias na OMC. São Paulo: Atlas, 2008, p. 119. 517 Ibidem, p. 120.

desenvolvimento no sistema, esse serviu de base para as futuras negociações na Rodada Uruguai que resultaram, ao final, da instituição da OMC.

Se observado o próprio preâmbulo do Acordo Constitutivo da OMC verifica-se a incorporação da ideia de que os países em desenvolvimento merecem trato especial e diferenciado.

As partes do presente Acordo, (...)

Reconhecendo ademais que é necessário realizar esforços positivos para que os países em desenvolvimento, especialmente os de menor desenvolvimento relativo, obtenham uma parte do incremento do comércio internacional que corresponda às necessidades de seu desenvolvimento econômico.

De igual modo se verifica a observância ao trato especial e diferenciado a ser concedida aos países de menor desenvolvimento no artigo XI.2 do referido Acordo:

Artigo XI – Membro originário (...)

2. Dos países de menor desenvolvimento relativo, assim reconhecidos pelas Nações Unidas, serão requeridos compromissos e concessões apenas na proporção adequada a suas necessidades de desenvolvimento, financeiras e comerciais ou a sua capacidade administrativa e institucional.

Cretella Neto reconhece o avanço relativo ao tratamento especial e diferenciado previsto no Acordo Constitutivo da OMC, citando como exemplo, inclusive, o fato de o GATT 1947 ter sido redigido apenas nos idiomas inglês e francês, ao passo que o GATT 1994 foi redigido também em espanhol – língua oficial de quase todos os países da América Latina.519

Nesse sentido, expõe o mencionado doutrinador:

Podemos considerar que a evolução do reconhecimento da situação especial dos PMDs, ficou demonstrada, de forma clara, por um sutil mas eloquente detalhe, entre o GATT 1947 e o GATT 1994, que deu origem à OMC: enquanto o primeiro documento havia sido redigido em duas versões, “both texts authentic”, uma em inglês e outra em francês (Artigo XXVI, § 3 do GATT 1947), o segundo documento ganhava versão equivalentes às versões inglesa e francesa (mas em “single copy”), em um terceiro idioma, o espanhol (Artigo XVI, in fine), língua oficial da Espanha e da ONU, bem como de quase todos os países da América Latina (à exceção do Brasil, de Belize [antiga Honduras Britânica], do Suriname [antiga Guiana Holandesa] e da Guiana Inglesa, além das ilhas caribenhas), sendo ainda idioma de uso corrente na maioria dos Estados dos EUA que fazem fronteira com o México, como a Califórnia, o Texas e o Novo México, ou que contam com parcela significativa da população pertencente ao grupo hispânico, como a

519

CRETELLA NETO, José. Direito processual na Organização Mundial do Comércio, OMC:

Flórida (onde, em alguns condados, supera amplamente o inglês), além de ser uma das línguas oficiais da UE.520

No entender de Cretella Neto, de modo ainda mais significante é verificado o tratamento especial e diferenciado dos países em desenvolvimento no Entendimento relativo às normas e procedimentos sobre Solução de Controvérsias – ESC, em especial nos seguintes dispositivos: Artigos 3.12; 4.10; 8.10; 12.11; 21.7 e 21.8. Assim pondera:

O caráter geral dessa evolução vem espelhado, de modo ainda mais significativo, no Anexo 2 do Acordo Constitutivo da OMC, o Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias (“Understanding on Rules and Procedures Governing the Settlement of

Disputes”), verdadeiro Código de Processo da OMC, o qual, além de manter

o propósito de buscar soluções consensuais e declarar que o procedimento de solução de litígios não deveria ser considerado como um procedimento contencioso, estabelece regras aplicáveis a todos os procedimentos e que sujeitam todos os Membros da organização. O Mecanismo de Solução de Controvérsias-MSC conferiu especial e favorável destaque ao tratamento dos PMDs, o que se observa, por exemplo nos seguintes dispositivos (Anexo 2): Artigo 3, § 12 (...); Artigo 4, § 10 (...); Artigo 8, § 10 (...); Artigo 12, § 11 (...); Artigo 21, §§ 7 e 8 (...).521

De igual modo posiciona-se Varella ao entender que a participação efetiva dos países em desenvolvimento nos contenciosos da OMC – cerca de 60%, segundo o doutrinador –, por si só, demonstra o ganho de legitimidade do sistema como um todo. E argumenta:

No sistema de solução de controvérsias anterior, do GATT, podia-se contar nos dedos o número de contenciosos com participação dos países em desenvolvimento. Isso porque os mais pobres não acreditavam que o sistema funcionava de fato, mas que era um instrumento pouco neutro, mais político do que jurídico, ou seja, mais favorável aos Estados mais ricos.522 Diferente do pensamento desses dois doutrinadores, no entanto, é o entendimento de Amaral sobre esse avanço. Entende esse doutrinador que conquanto o mérito do ESC, não houve nenhum progresso relativo ao trato diferenciado e especial aos países em desenvolvimento. Pelo contrário, relata que: “houve um retrocesso”, e conclui:

Em linhas gerais, os países em desenvolvimento receberam a mesma atenção dispensada aos países desenvolvidos, com a atenuante de que contam com um período de transição mais longo para se ajustarem às

520 CRETELLA NETO, José. Direito processual na Organização Mundial do Comércio, OMC:

casuística de interesse para o Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 39.

521 Ibidem, p. 39-40.

novas obrigações e, em alguns casos, com assistência técnica para esse fim. 523

Em que pese essa conclusão, reconhece o doutrinador que há dispositivos no ESC específicos aos países em desenvolvimento. No entanto, assevera que essas normas “não configuram casos típicos de tratamento especial e diferenciado”.524

O primeiro dispositivo do ESC no qual se previu esse tratamento é o 3.12. Tratou-se, na verdade, de uma regra de transição até a entrada definitiva do Acordo da OMC. Por esse dispositivo conferiu-se aos países em desenvolvimento que apresentassem reclamação contra países desenvolvidos fundamentando seus pedidos com base nas disposições correspondentes da Decisão de 5 de abril de 1966 (BISD 14S/20). Assim, os procedimentos e regras dessa Decisão, que previa trato diferenciado e favorável aos países em desenvolvimento, deveriam prevalecer sobre o Acordo da OMC durante esse período de transição.525

O segundo artigo é o 4.10 na qual se determinou que, durante as consultas (primeira fase do sistema), os Membros devem dar atenção especial aos problemas e interesses específicos dos países em desenvolvimento. O problema que surge, tal como relatado por Amaral, é que a expressão “dar atenção especial” é de redação vaga o que acaba por constituir “obstáculo para aplicação efetiva das disposições sobre tratamento especial e diferenciado”. Sugere, portanto, o doutrinador que sejam criados parâmetros a fim de se definir melhor a referida expressão.526

Como exemplo dessa atenção especial deferida aos países em desenvolvimento pode-se citar a sugestão do Haiti de que as consultas, quando forem ser realizadas com países em desenvolvimento, sejam realizadas na capital do país de menor desenvolvimento relativo.527

Já no artigo 8.10 previu-se a possibilidade de um país em desenvolvimento, quando em controvérsia com um país desenvolvido, solicitar ao painel a inclusão de um integrante de um país Membro em desenvolvimento, considerando-se com essa regra um tratamento diferenciado.

Por sua vez, no artigo 12.11 previu-se que, quando uma ou mais parte na controvérsia forem países em desenvolvimento, o painel indique explicitamente em

523

AMARAL Jr., Alberto. A Solução de Controvérsias na OMC. São Paulo: Atlas, 2008, p. 122. 524 Ibidem.

525 CRETELLA NETO, José. Direito processual na Organização Mundial do Comércio, OMC:

casuística de interesse para o Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 39-40.

526

AMARAL Jr., Alberto. A Solução de Controvérsias na OMC. São Paulo: Atlas, 2008, p. 122-123. 527 Ibidem, p. 123.

seu relatório “a maneira pela qual foram levadas em conta as disposições pertinentes ao tratamento diferenciado e mais favorável para os países em desenvolvimento” Ocorre que essa disposição somente é possível de ser aplicada se o país em desenvolvimento houver feito solicitação expressa.

Entende Amaral que a previsão do artigo 12.11 nada mais é do que “o desdobramento natural do artigo 11 do ESC,528 que impõe aos relatórios dos painéis a obrigação de fazer uma análise objetiva dos assuntos debatidos no curso da demanda”.529 Amaral também pondera que o modo como descrito no dispositivo

12.11 do ESC, leva os Estados membros em desenvolvimento a não invocarem as regras do trato especial e diferenciado sob o “temor de causarem uma situação de desequilíbrio”.530

Ainda acerca desse dispositivo, interessante observa que tem havido propostas no sentido de alterar a solicitação expressa do trato especial e diferenciado. De acordo com a proposta, o próprio painel e o Órgão de Apelação declarariam, expressamente, sem necessidade de provocação, o motivo pelo qual consideraram as disposições concernentes ao tratamento especial e diferenciado.531

Por fim, previu-se trato diferenciado aos países em desenvolvimento nas questões concernentes à fiscalização das recomendações constantes no relatório adotado pelo OSC (artigos 21.7 e 21.8 do ESC). Assim, em se tratando de país Membro em desenvolvimento, ao considerar a providência adequada a ser tomada, o OSC “deverá levar em consideração não apenas o alcance comercial das medidas em discussão, mas também seu impacto na economia dos países em desenvolvimento Membros interessados”.

Portanto, por esses dispositivos mencionados do ESC constata-se que neles se contemplou um tratamento diferenciado e especial aos países em desenvolvimento quando da participação do sistema de solução de controvérsias. Evidencia-se, no entanto, que alguns desses dispositivos apresentam redação vaga

528

ESC, Artigo 11 – A função de um grupo especial é auxiliar o OSC a desempenhar as obrigações que lhe são atribuídas por este Entendimento e pelos acordos abrangidos. Consequentemente, um grupo especial deverá fazer uma avaliação objetiva do assunto que lhe seja submetido, incluindo uma avaliação objetiva dos fatos, da aplicabilidade e concordância com os acordos abrangidos pertinentes, e formular conclusões que auxiliem o OSC a fazer recomendações ou emitir decisões previstas nos acordos abrangidos. Os grupos especiais deverão regularmente realizar consultas com as partes envolvidas na controvérsia e propiciar-lhes oportunidade para encontrar solução mutuamente satisfatória.

529

AMARAL Jr., Alberto. A Solução de Controvérsias na OMC. São Paulo: Atlas, 2008, p. 123. 530 Ibidem.

ou imprecisa a qual, em determinado momento, deverá ser revista para fins de aprimoramento do sistema, mas não parece de bom vítreo chegar à conclusão extrema de que houve um retrocesso, tal qual afirmado por Amaral.