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A ORDEM ECONÔMICA BRASILEIRA E O DIREITO CONCORRENCIAL

2 A NOÇÃO DE PRINCÍPIOS JURÍDICOS

2.3 Princípios de Funcionamento

Para os fins desta pesquisa, os princípios de funcionamento são os inseridos nos incisos I a V do artigo 170, a saber:

a) Soberania Nacional

Soberania é um conceito de dupla significação: do ponto de vista do Direito internacional, expressa a idéia de igualdade, de não subordinação; no âmbito interno, traduz a supremacia da Constituição e da lei, e da superioridade jurídica do poder público na sua interpretação e aplicação. Se o Estado brasileiro decretar embargo comercial a um país, proibindo as exportações, as empresas que se subordinarem às leis brasileiras terão de obedecer a restrição; se partes privadas escolherem contratualmente a aplicação de lei estrangeira, em matéria na qual a norma brasileira seja de aplicação cogente, é esta que prevalecerá. Estes são exemplos de manifestação de soberania nacional na ordem econômica.218

b) Propriedade Privada e Função Social da Propriedade

No século XVIII, quando das Revoluções americana e francesa, a concepção predominante era que a propriedade privada constituiria um dos direitos individuais fundamentais e era tida como o fundamento da liberdade, sem a qual esta não se realizaria. Após esse momento histórico, passou-se a desenvolver o constitucionalismo social, com a Constituição mexicana, de 1917, e a Constituição de Weimar, de 1919219.

Segundo Borges da Fonseca (1997, p. 22), após a I Guerra mundial, o Estado passaria a se preocupar com a definição da estrutura política e também com o estabelecimento de direitos e deveres em relação ao cidadão, visando a garantir-lhe condições mais dignas de vida220. É nesse contexto que podem ser entendidas as limitações à atividade empresarial. O

218 BARROSO, Luís Roberto. A Ordem Econômica. Op. Cit., p. 18-25. 219 SILVA, Luciana Leite Raposo e. Op. Cit., p. 38-45.

Brasil está sob o influxo das novas idéias. A influência da Constituição alemã refletiu no conteúdo da Constituição brasileira de 1934221, sobretudo no que toca à função social da

propriedade e à justiça social como princípios. A Carta de 1937 foi tímida em relação a propriedade “cujo conteúdo e limites serão definidos nas leis que lhe regularem o exercício” (art. 122, XIV). Com a Constituição de 1946 houve avanços ao consagrar que o “uso da propriedade será condicionado ao bem estar social” (art. 147). Apesar dos curtos períodos democráticos da República do Brasil, houve absorção formal das novas idéias.222

Porém, foi nas Constituições de 1967 e 1969, art. 157, inciso III e art. 160, inciso III, respectivamente, no capítulo destinado à ordem econômica, que foi inserida a função social da propriedade223, sendo esta reforçada na atual Carta, no art. 170, inciso III, e apresentada como direito fundamental, no art. 5º, XXIII, que dispõe224:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

Em relação à propriedade privada, o constitucionalista Kildare Carvalho (2002, p. 289) entende que

[...] sem deixar de ser privada, se socializou, com isso significando que deve oferecer à coletividade uma maior utilidade, dentro da concepção de que o social orienta o individual.

A função social da propriedade, que corresponde a uma concepção ativa e comissiva do uso da propriedade, faz com que o titular do direito seja obrigado a fazer, a valer- se de seus poderes e faculdades, no sentido do bem comum.

Afirma Cristiane Derani (1997, p. 249) que a inserção da função social somou novo atributo à propriedade privada, que é a destinação social, ou seja, os frutos deverão ser revertidos de algum modo à sociedade. O sentido que a Constituição atribui à propriedade

221 Com a Constituição de 1934 o ordenamento jurídico brasileiro proibiu o exercício da propriedade “contra o interesse

social ou coletivo, na forma que a lei determinar” (art. 113, XVII).

222 FONSECA, José Júlio Borges da. Direito antitruste e regime das concentrações empresariais. São Paulo: Atlas, 1997, p.

22.

223 Em realidade, foi o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964) que primeiro trouxe o conceito de função

social da propriedade no direito brasileiro, no § 1º, do artigo 2º, reproduzido pela Constituição de 1988, que apenas lhe alterou a ordem.

privada, que compreende a essência do resultado para a sociedade, para Derani (1997, p. 250) permite que se exija por meio do ordenamento jurídico “um uso privado compatível com o interesse público, buscando um equilíbrio entre o lucro privado e o proveito social”. Por sua vez, Luciana Silva225, conclui que a função social da propriedade abrange também a propriedade empresarial, uma vez que os negócios, além envolver questões profissionais, envolvem igualmente os aspectos patrimoniais.

Relevante para os objetivos a que se propõe o presente estudo é a afirmação de José Afonso da Silva (1998, p. 780) quanto ao papel da empresa226, que ele descreve como

instrumento que realiza e efetiva o poder econômico. O constitucionalista expõe que, correlacionando-se a função social da propriedade como instrumento realizador da finalidade da ordem econômica - a existência digna a todos e a justiça social -, com vários outros incisos do art. 170, confirma-se a relação intrínseca da concepção constitucional da propriedade privada com a efetiva propriedade dos bens de produção, em dinamismo227. Pode-se falar, portanto, em função social da empresa.

As idéias de justiça baseadas na igualdade e na fraternidade, por estarem dentro da ordem jurídica, política e econômica, devem ser encaradas como um alicerce principiológico para o mundo dos negócios, sendo dessa maneira um caminho necessário para alcançar a justiça social, como esclarece Benedetto Gui (2000, p. 113) ao dizer:

De fato, uma empresa pode distribuir riqueza (e em geral distribui) de muitas outras maneiras além da distribuição do lucro aos sócios. Pode faze-lo, e muitas vezes o faz, (mesmo se em medidas diferentes) oferecendo boas oportunidades de trabalho, boa condições de qualidade e preço dos produtos vendidos, ou ainda, boas oportunidades de colocação para os produtos dos fornecedores. [...] De modo oposto, uma empresa pode “distribuir” prejuízos ecológicos de todo o tipo (talvez muito maiores do que o lucro que obteve), através da poluição do ar e da água para os habitantes da região, da toxicidade dos produtos para os consumidores e etc. E pode influir ainda sobre o ‘ambiente humano’ modificando a estrutura e os modelos culturais.

225 SILVA, Luciana Leite Raposo e. Op. Cit., p. 38-45.

226 Se a iniciativa econômica privada se implementa na atuação empresarial, e esta se subordina ao princípio da função social,

para realizar ao mesmo tempo o desenvolvimento nacional, assegurada a existência digna de todos, conforme ditames da justiça social, bem se vê que a liberdade de iniciativa só se legitima quando voltada à efetiva consecução desses fundamentos, fins e valores da ordem econômica (SILVA, 1998, p. 780).

227 Eros Grau (1997, p. 197) refere-se à empresa como “expressão dos bens de produção em dinamismo, em torno do qual se

A propriedade privada é condição inerente à livre iniciativa e lugar da sua expansão228.

Sua função como princípio setorial da ordem econômica é, em primeiro lugar, assegurar a todos os agentes que nela atuam ou pretendam atuar a possibilidade de apropriação privada dos bens e meios de produção. Ao mesmo tempo, impõe aos indivíduos em geral o respeito à propriedade alheia e limita a ação do Estado, que só poderá restringir o direito à propriedade nas hipóteses autorizadas pela Constituição Federal.229

c) Livre Concorrência e Defesa do Consumidor

Como manifestação do já aludido princípio da livre iniciativa, a livre concorrência poderia ser entendida como a possibilidade de as forças de mercado disputarem livremente a clientela, em igualdade230. Porém, Eros Grau (1997, p. 231) registra que, partindo de uma análise do todo constitucional, tal princípio deve ser entendido como “liberdade de concorrência”, cujo titular não é a empresa, como poder-se-ia pensar, e sim a sociedade.

Quanto a visão que a Carta de 1988 tem sobre a livre concorrência, José Afonso da Silva (1998, p. 761) diz que não se coaduna com a primeira impressão a respeito do princípio, nos seguintes termos:

A livre concorrência está configurada no art. 170, IV, como um dos princípios da ordem econômica. Ele é uma manifestação da liberdade de iniciativa e, para garanti- la, a Constituição estatui que a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. Os dois dispositivos se complementam no mesmo objetivo. Visam tutelar o sistema de mercado e, especialmente, proteger a livre concorrência contra a tendência açambarcadora da concentração capitalista. A Constituição reconhece a existência do poder econômico. Este não é, pois, condenado pelo regime constitucional. Não raro esse poder econômico é exercido de maneira antisocial. Cabe, então, ao Estado coibir este abuso.

Conforme dispõe a Constituição Federal no art. 173, § 4º, este princípio constitui livre manifestação da liberdade de iniciativa, devendo, inclusive, a lei reprimir o abuso de poder

228 Tércio Sampaio Ferraz Jr, Congelamento de preços - tabelamentos oficiais (parecer), Revista de Direito Público n. 91,

1989, p. 77.

229 BARROSO, Luís Roberto. A Ordem Econômica. Op. Cit., p. 18-25, passim.

230 Tal igualdade seria meramente jurídico-formal, uma vez que é reiteradamente recusada por vários dispositivos

econômico que visar a dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e aumento arbitrário dos lucros (MORAES, 1999, p.595). Citando José Afonso da Silva, semelhante argumentação colhe-se em Paganella (2007):

A livre concorrência, configurada no art. 170, IV, [...] é uma manifestação da liberdade de iniciativa e, para garanti-la, a Constituição estatui que a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. Os dois dispositivos se complementam no mesmo objetivo. Visam tutelar o sistema de mercado e, especialmente, proteger [...] contra a tendência açambarcadora da concentração capitalista. A Constituição reconhece a existência do poder econômico. [...] Não raro esse poder econômico é exercido de maneira anti-social. Cabe, então, ao Estado coibir este abuso.231

Já em Celso Bastos, a citação referida por Paganella (2007) mostra que

A livre concorrência é um dos alicerces da estrutura liberal da economia e tem muito que ver com a livre iniciativa. É dizer, só pode existir a livre concorrência onde há livre iniciativa. (...) Assim, a livre concorrência é algo que se agrega à livre iniciativa, e que consiste na situação em que se encontram os diversos agentes produtores de estarem dispostos à concorrência de seus rivais.232

Por sua vez, Proença (2001, p. 5) assevera que a Constituição não considera a livre concorrência como uma conseqüência natural ou necessária da livre iniciativa. O que é consa- grado, como atividade econômica legítima é a livre iniciativa concorrencial. Sendo a livre concorrência é um princípio ao qual a livre iniciativa deve submeter-se, a ordem econômica brasileira rejeitou a concepção dos liberais clássicos, segundo a qual a livre concorrência é uma conseqüência natural da livre iniciativa. Ao mesmo tempo, adotando-se uma ordem econômica neoliberal, consagra-se a opinião de que a livre iniciativa concorrencial aproveita à coletividade.

Portanto, o princípio da livre concorrência apresenta-se como um elemento desejável, ou mesmo necessário, para possibilitar a presunção de que a livre iniciativa promove a realização do bem-comum, elemento favorável para que encontre seu valor social e possa be- neficiar a coletividade (PROENÇA, 2001, p. 5).

231 PAGANELLA, Marco Aurélio. A Constituição, o princípio da livre concorrência e o sistema de mercado dual ou misto.

Jus Navigandi, Teresina, a.8, n.222, 15 fev. 2004. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4823> Acesso em: 23 ago. 2007.

A livre concorrência pode ser definida como a situação em que se encontram os diversos agentes econômicos de competirem, entre eles, de forma leal. Sobre esse particular, Aguillar (2007)233 esclarece que concorrência “significa liberdade de competir de forma correta e honesta, não se admitindo embaraços artificiais à entrada de novas empresas no mercado ou ao desenvolvimento da atividade empresarial.”

O princípio da livre concorrência, reflexo da liberdade de iniciativa, expressa a opção pela economia de mercado. Nele se contém a crença de que a competição entre os agentes econômicos e a liberdade de escolha dos consumidores, produzirão os melhores resultados sociais: qualidade dos bens e serviços e preço justo. Daí decorre que o poder público não pode pretender substituir a regulação natural do mercado por sua ação cogente, salvo em situações de exceção. Por outro lado, os agentes privados têm direito subjetivo à livre concorrência e também o dever jurídico de não adotarem comportamentos anticoncorrenciais, sob pena de se sujeitarem à ação disciplinadora e punitiva do Estado234.

A idéia de livre concorrência desenvolvida pelo constituinte evidencia que o mercado não é dependente da chamada “mão invisível”, pois os agentes do mercado têm livre iniciativa para buscar a melhor oportunidade, no sentido da produção de riquezas, porém, fica obrigado ao respeito à livre competição. Qualquer indício, possibilidade ou tentativa de eliminação da concorrência deve ser, por força do § 4.º, do art. 173 c/c com o 170, IV, coibidos com firmeza pelo poder público235.

Derrubado o muro de Berlim e ultrapassados tanto o comunismo e o socialismo como o capitalismo selvagem, como registra Fonseca (1997, p. 12), uma nova visão política e econômica passa a prevalecer, com o fortalecimento da empresa na sociedade pós-capitalista, com um novo sistema de freios e contrapesos, com o advento de uma espécie de social- capitalismo dominado pelo espírito empresarial associado às preocupações sociais.

Esse conjunto de princípios setoriais é que limita e obriga a conduta dos particulares. O destinatário principal dos princípios de funcionamento da ordem econômica é a iniciativa

233AGUILLAR, Eduardo Maimoni. Artigo O Fenômeno Moderno das Concentrações Empresariais e o Direito Antitruste.

Disponível em: http: <www.ipdci.org.br/revista/arquivo >. Acesso em: 8 ago. 2007.

234 BARROSO, Luís Roberto. A Ordem Econômica. Op. Cit., p. 18-25, passim. 235 SILVA, Luciana Leite Raposo e. Op. Cit., p. 38-45, passim.

privada, e também o Estado quando atua empresarialmente, nos termos do art. 173 da Constituição236. A maneira pela qual o Direito encara as operações empresariais237, os reflexos na seara econômica, finalidades, tendências, a prevenção dos ilícitos concorrenciais por meio das concentrações serão abordados como parte do Direito de concorrência.