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O contacto continuado com a morte e com o cadáver durante as epidemias de peste que assolaram a Europa até ao séc. XIV, deixaram marcas profundas na vida e nos rituais em torno da morte dos homens dos séculos vindouros. Os homens desta época, sentiam que a morte a todos ameaçava de igual forma e que o mais importante era garantir a vida depois da morte e a salvação da alma.

O surgimento do caixão como primeira forma de ocultação do corpo constitui um de muitos outros rituais florescentes. Um deles será o uso de mortalhas que, mesmo dentro do caixão, ocultam todo o corpo e até o rosto mantendo a tradição cristã primitiva de envolver o cadáver num lençol. Também se passou a usar uma cobertura em cima do caixão (pallium). A visão do morto é substituída pela visão de estátuas de corpo inteiro ou só o busto, feitas com base em moldes retirados logo após a morte e que depois são colocadas sobre o caixão fechado e coberto, denominadas “representantes”. Outras vezes uma imagem da pessoa falecida era pintada na parte exterior do caixão. Desta forma a pessoa estaria presente sem que a visão do corpo morto fosse necessária (Ariés, 2000).

Outro dos rituais instituído de forma regular nesta época, será o de rezar missas por alma da pessoa falecida, sendo que em muitos casos as pessoas, antes de falecer, expressavam nos seus testamentos o número de missas que desejavam fossem rezadas pela sua alma depois da morte. Ciclos regulares de missas começavam no momento em que a pessoa morria e podiam prolongar-se durante vários anos, conforme os desejos e posses da família da pessoa falecida.

O corpo é agora levado para uma igreja até ao momento do enterro e passa a ser realizado um serviço fúnebre que compreende sempre uma missa de corpo presente e um ritual de vígilia do corpo.

As missas podiam ser pagas através de doações testamentárias em dinheiro ou mais frequentemente em bens (ex. casas, terrenos, etc) ou ainda ser a família sobrevivente a garantir o pagamento destas obrigações (Ariés, 2000).

O medo predominante, entre os séculos XVII e XVIII, era o de se ser enterrado vivo. Deste receio, também vão emergir vários ritos e cerimónias para atrasar o sepultamento, tais como velórios de 48 ou mais horas.

Relativamente à prática da inumação, o costume prevalecente nesta época será o de fazer enterrar os corpos em caixões de chumbo, nas caves das igrejas ou no terreno adjacente à igreja, recobertos por uma laje funerária mais ou menos elaborada. As inscrições anteriormente colocadas junto ao túmulo, são agora gravadas na pedra tumular. Nestas inscrições constavam, para além da identificação do falecido, as doações que havia realizado e os compromissos assumidos pelos familiares do morto face à Igreja.

Só no final do séc. XVIII tenderá a voltar a inumação em cemitérios devido ao aumento da população. Quer nos cemitérios dos terrenos adjacentes às igrejas, quer nos novos cemitérios, começam a emergir estátuas e ornamentos esculpidos a acompanhar a laje funerária (ex: anjos , caveiras e ossos, livros). Surgem igualmente de forma disseminada

os epitáfios alusivos à efemeridade da vida e ao nada a que a morte reduz todos. Verifica-se uma progressiva descristianização dos rituais.

Despertares

O recrudescimento das epidemias, permitiu o lento retomar de alguma ordem social e o resurgimento do espírito investigativo que precedeu a Idade Média na tradição grega clássica. Dois contributos de ordem diferente podem ter possibilitado esta mudança: 1) através da invenção da imprensa muitas das obras clássicas manuscritas, até então abertas apenas a núcleos intelectuais muito restritos, tornaram-se mais acessíveis e de circulação mais alargada e 2) através do contacto com culturas não-europeias, através dos descobrimentos, novas formas de pensar ajudaram a quebrar a inércia intelectual da Idade Média (Walker, 1958).

O estudo da Anatomia e da Fisiologia começou a interessar espíritos mais inquisitivos e menos temerosos. Os tempos em que seriam julgados pela Igreja e excomungados por pensar de outro modo, ainda não se tinham dissipado inteiramente e jovens médicos e barbeiros-cirurgiões como André Vesálio, Ambroise Paré, Paracelso, Thomas Linacre ou John Caius abriram, com o seu esforço e enfrentando muitas dificuldades, caminhos que permitiram pensar o corpo-humano e a medicina curativa como dignos de um olhar objectivo e científico. Durante o séc. XVII novas dimensões até então desconhecidas da Medicina vão emergir através dos sistemas de ampliação inicialmente estudados por Galileu e mais tarde desenvolvidos até ao aspecto de um microscópio devido ao trabalho sistematizado de nomes como Marcello Malphigy e Van Leeuwenhoek. Surgiram durante estes séculos numerosos inventos que ainda nos acompanham: o termómetro, o estetoscópio, o focéps. Foram igualmente os anos que permitiram conhecer funções orgânicas até então mal conhecidas como a circulação sanguínea, os processos digestivos, o funcionamento muscular e toda a fisiologia em geral (Moreno, 1998).

Isaac Newton através do estudo das leis universais da existência física, Antoine Lavoisier pelas suas experiências no âmbito dos processos químicos subjacentes à respiração e combustão e Renné Descartes pela sua postura filosófica acerca do corpo humano como “uma máquina engenhosa” (Walker, 1958: 154), vão promover um olhar desprovido de intervenção divina sobre o mundo e uma visão mais materialista do ser humano.

Estes séculos trouxeram consigo contributos de intensa dedicação e incansável busca de compreensão para a parte física associada à vida, ao adoecer e à morte. No final do séc XVIII os primeiros ecos destas descobertas começavam a chegar ao conhecimento público com aplicação prática na melhoria dos cuidados prestados aos pacientes.