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Segundo Ariés (1988: 309): “Ainda no início do século XX (…) a morte de um homem modificava solenemente o espaço e o tempo de um grupo social que podia estender-se à comunidade toda”.

Este panorama vai, no entanto, sofrer alterações cada vez mais visíveis na sequência da I Grande Guerra Mundial. Estas mudanças instalar-se-ão na Sociedade de forma mais definitiva após a II Grande Guerra Mundial, mostrando tudo o que duas guerras podem produzir ao nível da mudança de atitudes e rituais perante a morte, num mesmo século. Uma das maiores alterações ocorrida reside no Hospital passar a ser o local mais comum da morte ao invés da casa familiar. O hospital do séc. XX, começou por ser o local onde a cura pode ocorrer e transformou-se rapidamente no espaço normal da morte antecipada e consumada. Neste local a morte quase passa despercebida e a família muitas vezes não consegue estar presente nos momentos de agonia e morte.

Gorer (1965), num estudo com base em inquéritos realizado em Inglaterra, constatou diversos aspectos importantes relacionados com as grandes alterações em torno da vivência da morte e dos seus rituais no século XX. Verificou que apenas um quarto das pessoas enlutadas presenciou o momento da morte dos seus familiares mais próximos no hospital; 70% das pessoas inquiridas não tinha participado em qualquer funeral há mais de cinco anos; a prática corrente era a de excluir crianças e adolescentes dos funerais, mesmo quando se tratava do dos seus próprios pais e ocultar-lhes a verdade sobre o sucedido.

Esta prática do evitamento da morte inclui, de uma forma inusitada, a própria pessoa que está a morrer. Se até ao séc. XX um sacerdote estava sempre presente durante a agonia consciente ministrando a “extrema-unção”, durante o decorrer deste século e para que o moribundo não perceba a gravidade do seu estado, o sacerdote só se aproxima depois do paciente estar inconsciente ou morto. A própria Igreja modifica a denominação

“extrema – unção” e passando a chamar-lhe “sacramento dos doentes”, para não suscitar na pessoa que a recebe a consciência de uma morte iminente.

A tentativa de manter as pessoas que estão em final de vida ignorantes da gravidade do seu estado, impõe uma alteração aos rituais familiares de despedida no momento da morte. Agora a pessoa morre sem saber ou, na melhor das hipóteses, sem poder dizer que sabe que está a morrer.

A boa morte é a que não se pressente e passa despercebida, como morrer a dormir, apenas com um breve suspiro a anunciar o termo da vida.

Durante o século XX, assiste-se igualmente a uma pressão da Sociedade, no sentido de suprimir a manifestação pública do luto, bem como a sua expressão privada “demasiado” insistente e longa. A pessoa enlutada é votada ao isolamento social, como se estivesse sujeita a um período de quarentena. Há uma recusa do tema da morte, como se fosse contagioso, “como se cada Homem, perante a morte dos seus semelhantes, tivesse a antevisão da sua própria morte” (Bernardo, 1999: 3)

O silêncio tornou-se a atitude mais comum no confronto com a morte (Lutfey e Maynard, 1998) e a morte foi reduzida a um momento de passagem biológica, desprovida de significado, que não despedaça nem perturba os que ouvem dela falar e que não provoca angústia nos sobreviventes, “Morrer tornou-se um acto solitário e impessoal” (Kubler Ross, 1991: 19)

Já poucos são os que falam, sem ser no espaço restrito de um consultório de uma especialidade aceitável e sujeita a sigilo profissional, de imagens reconfortantes dos que já morreram ou os que dizem esperar um reencontro com os que amam depois da morte. Céu e inferno são agora vultos desmaiados nas crenças da Humanidade. Também a crença numa continuidade da vida depois da morte ganha o cunho próprio de uma seita indesejável.

A Ciência do século XX ditou barreiras físicas concretas sem as quais a vida ou qualquer expressão da mesma não podem existir.

As consequências desta atitude global, que tem implicações concretas na forma como vivemos e como percebemos a morte, só agora começam a emergir. Esta investigação gira em torno destas consequências para as pessoas que mais de perto têm de lidar com a morte: os profissionais de saúde.

O século da aplicação

O que até ao séc. XX, no âmbito da saúde, tinham sido essencialmente boas ideias e movimentos caritativos, durante este século tornaram-se concretizações e instituições com grande impacto social e político.

A imunização por vacinação tornar-se-á uma prática pouco antes da I Guerra Mundial para os que vão combater. Descobertas adicionais neste campo vão proporcionar o desenvolvimento da vacina BCG para a tuberculose e das sulfamidas para combater diversos tipos de infecções bacterianas. O combate às infecções é o avanço mais importante durante o século XX e torna-se ainda mais significativo com a descoberta da penicilina por Alexander Flemming. È o século dos antibióticos e da esperança de vida sem precedentes históricos.

Surgem os primeiros movimentos com impacto mundial para implementar medidas de prevenção e combate a todas as doenças anteriormente existentes e aos novos problemas que emergem. Surge assim, em 1923, a Organização da Higiene que será substituída em 1948 pela Organização Mundial de Saúde que perdura como a agência oficial de coordenação e vigilância no campo da saúde a nível mundial. Neste século a saúde passará a ser encarada, na maior parte dos países, como um dos mais importantes direitos do Homem, independentemente de todas as suas circunstâncias pessoais, sociais, culturais ou económicas.

Neste século as tecnologias em torno da saúde tornaram-se mais complexas e disseminadas, bem como a formação dos profissionais necessários ao seu uso correcto. A ciência farmacêutica anteriormente rudimentar, tornou-se uma indústria de enorme impacto na vida social e económica dos respectivos países. O movimento de industrialização que caracterizou a maior parte do século XX estendeu-se também à saúde com a consequente hiper-especialização funcional, tecnologização na interface entre o prestador de serviço e o utente ou cliente (cada vez menos designado por “doente”). Surgem os sistemas de saúde organizados de forma mais definitiva em torno de hospitais e centros de saúde, tornando o cuidar num processo organizado e centralizado.

O desenvolvimento das práticas de saúde no século XX provocou grandes alterações nos padrões do adoecer e morrer. O que anteriormente tinham sido padrões de doenças infecciosas e parasitárias, doenças provocadas por falta de higiene e sanidade do meio ambiente e por carências nutricionais, elevada mortalidade infantil e materna e baixa esperança de vida, transformaram-se durante o século XX em padrões de adoecer crónico e degenerativo, em aumento de doenças mentais e de doenças relacionadas com o consumo excessivo de álcool e drogas, doenças associadas ao sedentarismo e à alimentação inadequada, traumatismos e mortalidade associados a acidentes rodoviários, profissionais e domésticos, emergência de doenças resistentes aos antibióticos actuais, entre outras. A actualidade caracteriza-se por um aumento significativo da esperança média de vida e redução muito significativa nas taxas de mortalidade infantil e materna. A morte surge agora sob novas formas a que os profissionais de saúde têm de se ajustar. Com os padrões degenerativos a morte torna-se frequentemente um processo longamente antecipado, partilhado num “ir morrendo” com os profissionais de saúde. Ao nível dos sistemas de saúde vai surgir pela primeira vez em Londres, pela mão de Cecily Saunders um movimento organizado em torno dos cuidados paliativos, como uma nova expressão de cuidar da saúde. Desde o final dos anos 1960, data da fundação do

Saint Christopher´s Hospice, a primeira instituição hospitalar destinada a prestar cuidados especializados de saúde na fase final de vida, e até aos dias de hoje, assiste-se à visível proliferação de instituições e serviços destinados a prestar estes cuidados ao maior número possível de pessoas.

O surgimento dos cuidados paliativos (ou continuados) impõe aos profissionais de saúde uma quebra na atitude face à morte. Agora, para bem tratar dos vivos, os profissionais de saúde nesta área têm de incluir a aceitação da morte na equação dos cuidados a prestar.