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Verdade real e verdade formal

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 92-98)

4. A IMPORTÂNCIA DA PROVA NO PROCESSO DO TRABALHO

4.1. Verdade real e verdade formal

A análise sobre a importância da prova no processo remete-nos à reflexão acerca da verdade.

A verdade sempre despertou interesse nas mais diversas áreas da atuação humana, desde a religião até as artes e a filosofia, tendo alguns filósofos questionado a sua existência e outros, em contrapartida, sido condenados à morte por defendê-la e venerá-la, como ocorreu com Sócrates (Platão, Fédon).

Para a ciência jurídica, notadamente no campo processual, a busca da verdade absoluta diz respeito a um problema de ordem política e social do direito, e não a uma questão de ordem meramente lógica.

A propósito, embora a verdade retratada nos autos seja a formal (processual), ou seja, aquela resultante das provas produzidas durante a instrução e, portanto, regra condicionante do julgamento porque a lei assim o estabelece (CPC, art. 131), o objetivo maior da instrução processual é a busca da verdade real (material), isto é, aquilo que efetivamente ocorreu no mundo.

Nas palavras de Nicola Framarino dei Malatesta, “a finalidade suprema e substancial da prova é a verificação da verdade”. 108

A verdade formal, traduzida pelo objeto provado nos autos, todavia, nem sempre corresponde à verdade real, embora o processo moderno tenha

108 A lógica das provas em matéria criminal, trad. de Waleska Girotto, Conan, 1995, apud PAULA, Carlos Alberto Reis de,

munido o juiz de vários instrumentos hábeis a possibilitar a perseguição desta verdade material109.

E a discrepância verificada na prática entre a verdade processual e a verdade material deve-se, em muitas das vezes, à atuação das partes, que negligenciam na demonstração da verdade, ou utilizam de expedientes aptos a imiscuí-la, razão pela qual a atuação do juiz, na visão moderna publicista hodierna do processo, passou da posição de mero espectador (princípio dispositivo) para uma função ativa no resgate da realidade ocorrida (CPC, art. 130; CLT, art. 765)110.

Em que pese a verdade formal vincular as razões do convencimento do juiz (CPC, art. 131) – a sentença deve, por lei, obediência a esta “verdade” dos autos -, como bem ponderou Teixeira Filho, “o processo somente atinge, com plenitude, a sua verdadeira razão teleológica quando a verdade formal coincide com a real” 111.

Importante esclarecer aqui, até mesmo com a finalidade de servir de contraponto ao raciocínio e à conclusão que defendemos neste particular, que a doutrina mais tradicional entende que a convicção do julgador deve contentar-se com as provas que produzidas nos autos, limitando de certa forma a iniciativa do magistrado na busca da verdade real.

Para referida corrente de pensamento, o processo deve concluir com um conhecimento “relativo” dos fatos, sendo que a instrução processual objetiva apenas resgatar a “verdade histórica” – e não a material -, ou seja, aquela que encontra limite natural na demonstração dos fatos alegados pelos litigantes nos autos, possibilitando assim a “tutela dos direitos subjetivos”, conforme

109 Na concepção publicista do processo, a instrução processual atribuiu ao juiz amplos poderes investigativos com a finalidade maior de conferir credibilidade e respeitabilidade ao processo, enquanto método de efetivação concreta do direito e de justiça social.

110 BEDAQUE, José Roberto dos Santos, Poderes instrutórios do juiz. 111 TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio, A prova no processo do trabalho, p. 40.

prelecionava Chiovenda, ou, na lição de Carnelutti, a concreção da “vontade abstrata da lei”.112

Carlos Alberto Reis de Paula assim analisou a dicotomia entre a “verdade real e a verdade formal”, correlacionando-as com a finalidade do processo (pp. 78 e 80): “Na investigação judicial não se buscam verdades absolutas, mas verdades históricas, limitada à comprovação das afirmações e dos fatos alegados pelas partes”. E mais adiante arremata: “A verdade processual é uma verdade histórica, alcançada por um juízo histórico sobre os fatos ocorridos. O julgado ao dizer que um fato é verdadeiro está simplesmente consagrando que a prova foi suficiente para lhe dar a certeza do evento”. 113

Humberto Theodoro, buscando solução intermediária, assevera que, embora o objetivo do processo moderno seja a busca da verdade real, é na verdade formal, ou seja, aquela advinda da prova dos autos, que o juiz deve firmar sua convicção, atribuindo às partes o ônus de demonstrar os fatos:

“O processo moderno procura solucionar os litígios à luz da verdade real e é, na prova dos autos, que o juiz busca localizar esta verdade. Como, todavia, o processo não pode deixar de prestar a tutela jurisdicional, isto é, não pode deixar de dar solução jurídica à lide, muitas vezes esta solução, na prática, não corresponde exatamente à verdade real. O juiz não pode eternizar a pesquisa da verdade, sob pena de inutilizar o processo e de sonegar a justiça postulada pelas partes. (...) Assim, se a parte não cuida de usar das faculdades processuais e a verdade real não transparece no processo, culpa não cabe ao juiz de não ter feito a justiça pura, que, sem dúvida, é a aspiração das partes e do próprio Estado.”114

112 CHIOVENDA, Princípios de derecho procesal civil, Madrid, Réus, I, p. 95; CARNELUTTI, La prueba civil, Depalma, p. 3; apud PAULA, Carlos Alberto Reis de, A especificidade do ônus da prova, p. 67.

113 PAULA, Carlos Alberto Reis de, A especificidade do ônus da prova no processo do trabalho (pp. 78-80). 114 THEODORO JÚNIOR, Humberto, Curso de direito processual civil, Vol. I, pp. 377-378.

Entendemos, todavia, conforme razões exaradas neste capítulo, que a concepção hodierna do processo, cujo principal escopo é assegurar a harmonia social, não mais se contenta com a verdade formal e histórica dos fatos, sem que tenha havido uma comprometida investigação da realidade durante a instrução.

A efetividade da prestação jurisdicional não é assegurada pela mera “versão processual” emergente nos autos, resultante da atuação, muitas vezes deficiente e incompleta das partes, daí porque se mostra adequada e útil a iniciativa instrutória do juiz.

Neste sentido, Nery assim preleciona em seus comentários ao CPC:

“Verdade real e verdade formal. O ideal do Direito é a busca e o encontro da verdade real, material, principalmente se o direito sobre o que versam os autos for indisponível. No direito processual civil brasileiro vige o princípio do livre convencimento motivado do juiz (CPC, art. 131), mas sempre com o objetivo de buscar a verdade real”.115

Na visão publicista contemporânea, para que o processo atinja sua finalidade precípua de pacificar o conflito com justiça, necessária se faz uma atuação mais ostensiva do magistrado na busca da verdade real, ou mais próxima possível dela.

O que não se admite mais é a simples e cômoda adequação do julgamento à verdade processual traduzida pela prova insuficiente produzida pelos contendores, sem que tenha havido efetivo comprometimento do julgador com o resgate da realidade dos fatos controvertidos, garantindo, com isso, credibilidade e respeitabilidade ao poder-dever em que está investido pelo Estado.

Não podemos nos olvidar, a propósito, que toda relação processual é movida por um interesse público estatal superior ao interesse particular dos litigantes, representado pela administração adequada da justiça e, por meio dela, a garantia da paz social.

O sentido ético de que é dotada a relação processual, destarte, permite que o juiz, quando reputar necessário, determine a produção complementar de provas para a busca da verdade real, suprindo a deficiência ou impossibilidade de produção de prova pelas partes.

E no processo do trabalho, cuja relação de instrumentalidade com o direito substancial deve pautar-se, dentre outros princípios, sobretudo na primazia da realidade, a busca da verdade real é o vetor a nortear o julgador, justificando uma atuação mais ostensiva, permanente e, outras vezes, complementar à das partes, na perseguição e no resgate da realidade dos fatos.

Para ilustrar tal conclusão, confira-se o exemplo: o trabalhador alega recebimento de salário “por fora”, porém, não detém meios de prova, eis que o pagamento era feito através depósito em conta não identificada, não sendo fornecido ao trabalhador qualquer extrato bancário; neste caso, a verdade real somente seria obtida se o juiz, verificando a impossibilidade da prova pela parte, utilizando-se de seus poderes instrutórios (CPC, art. 130 e CLT, art. 765), determinasse a expedição de ofícios ao banco, a fim de obter as informações elucidadoras dos fatos controvertidos relevantes ao deslinde do feito.

Outro exemplo: em demanda em que se pretende o reconhecimento de vínculo de emprego, o reclamante não tem testemunhas; a reclamada, embora negue inclusive a prestação de serviços (razão pela qual o ônus da prova seria do empregado), junta, por equívoco, em sua defesa uma declaração do diretor- presidente da empresa dando ordens expressas de serviços ao reclamante; ante o documento, inquirida, a ré alega que se tratava apenas de um serviço específico e eventual contratado (embora não alegado em defesa); ante a contradição entre o documento juntado pela ré e a defesa apresentada, visando

resgatar a verdade material dos fatos ocorridos, poderia o magistrado determinar o comparecimento do emitente da declaração em juízo, como testemunha, para esclarecer o conteúdo declarado no documento, a partir daí fazendo o elo entre tal prova e o fato que serviu de fundamento ao pedido principal da demanda.

Da mesma forma, com o objetivo de prestigiar a prevalência da verdade material sobre a processual, o julgador pode decidir em desfavor da tese da petição inicial em caso de revelia116, se as alegações de fato do autor forem abusivas, improváveis, inverossímeis ou contrárias aos elementos dos autos. Vejamos: o empregado alega que trabalhava em jornada diária de 22 (vinte e duas) horas, sem qualquer intervalo intrajornada, nem descanso semanal, em contrato que perdurou por mais de cinco anos, sendo que todos os dias demorava cerca de quatro horas para deslocar-se da residência para o trabalho e vice-versa; o empregador é revel; em que pese o quanto preceituado no art. 319 do CPC, a ratio legis do presente dispositivo apenas dispensa a prova do quanto alegado na inicial, todavia, não obriga o julgador a acolher como verdadeiros os fatos alegados na inicial; no caso, ante a jornada absurda e inverossímil alegada pelo trabalhador e a absoluta impossibilidade matemática de cumprimento de tal horário, incompatível inclusive com o tempo de deslocamento residência-trabalho e vice-versa, o julgamento será desfavorável ao empregado, em que pese a revelia do empregador.

A busca da verdade real, assim, deve caminhar em harmonia com a efetividade da prestação jurisdicional, sendo este o sentido a guiar a atividade instrutória e justificar a produção de provas.

Por outro lado e sem prejuízo dos demais argumentos anteriormente expostos, importante notar que a justa pacificação do conflito somente será atingida se a tutela for entregue de forma tempestiva, em prazo razoável (art. 5º, LXXVIII, CF/88), sob pena de comprometimento do ideal de efetividade.

116 AMENDOEIRA JR., Sidnei, Poderes do juiz e tutela jurisdicional: a utilização dos poderes do juiz como forma de

A propósito, a omissão absoluta da parte em produzir a prova do fato que a favorece, embora tendo disponibilidade sobre ela, deixando de fazê-lo por incúria, negligência ou por opção, não justificaria a perpetuação da relação processual em busca da verdade real, eis que, neste caso estar-se-ia postergando a prestação jurisdicional imotivadamente, e aí também causando injustiça com os litigantes que tem direito à entrega célere e eficiente do provimento judicial.

No referido caso, o magistrado deve decidir de acordo com os elementos existentes nos autos, pautando-se nas regras do ônus da prova e, em caso de alegações absurdas e inverossímeis das partes, nortear seu julgamento pelas máximas de experiência comum e científicas, presunções e indícios, bem como juízos de probabilidade, razoabilidade, plausibilidade e verossimilhança.

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 92-98)