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– PósGraduação em Letras Neolatinas

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Academic year: 2018

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FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS NEOLATINAS LINHA DE PESQUISA: ESTUDOS LITERÁRIOS NEOLATINOS

O

DUPLO

E

A

AUTOFICÇÃO

EM

LA

VERDAD

DE

AGAMENÓN

CARLA VIDAL OLIVEIRA DE LIMA

Orientadora: Profa. Dra. Silvia Inés Cárcamo de Arcuri.

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CARLA VIDAL OLIVEIRA DE LIMA

O

DUPLO

E

A

AUTOFICÇÃO

EM

LA

VERDAD

DE

AGAMENÓN

Volume 1.

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre (Estudos Literários Neolatinos, opção: Literaturas Hispânicas)

Orientadora: Profa. Dra. Silvia Inés Cárcamo de Arcuri.

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Lima, Carla Vidal Oliveira de.

O Duplo e a Autoficção em La Verdad de Agamenón. / Lima, Carla Vidal Oliveira -- Rio de Janeiro: UFRJ / FL, 2011.

09, 112f.: 1il pb;

Orientador: Profa. Dra. Silvia Inês Cárcamo de Arcuri.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, 2011.

1. Javier Cercas 2. Literatura Fantástica 3. O duplo

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CARLA VIDAL OLIVEIRA DE LIMA

ODUPLOEAAUTOFICÇÃOEMLAVERDADDEAGAMENÓN

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos, opção: Literaturas Hispânicas).

Aprovada em:

__________________________________________ Profa. Dra. Silvia Inés Cárcamo de Arcuri. Universidade Federal do Rio de Janeiro (FL/UFRJ)

__________________________________________ Prof. Dr. Julio Aldiger Dalloz

Universidade Federal do Rio de Janeiro (FL/UFRJ)

__________________________________________ Profa. Dra. Ana Isabel Guimarães Borges Universidade Federal Fluminense (FL/UFF)

__________________________________________ Profa. Dra. Eline Marques Rezende - Suplente

Universidade Federal Fluminense (FL/UFF)

__________________________________________ Profa. Dra. Lívia Maria de Freitas Reis - Suplente

Universidade Federal Fluminense (FL/UFRJ)

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pela permissão de alcançar esse momento. Pai, obrigada por toda a dificuldade porque ela serve para buscar e melhorar a forma de caminhar.

Ao meus antepassados, que com seus pés descalços abriram as primeiras trilhas. Aos espíritos de luz que trabalham e ajudam a iluminar os trechos sombrios da estrada.

Aos meus avós, que como agricultor, vendedor de livros, lavadeiras e donas de casa valorizaram o estudo.

Aos meus pais e minha irmã, por me amar, ensinar, orientar e acreditar em todos os momentos.

Ao meu marido, que aguentou e sobreviveu à minha impaciência e insônia. Muito obrigada pela compreensão e pelo apoio silencioso.

Àqueles me ajudaram a aparar algumas arestas. Minha prima Elaine, que em muitos finais de semana e muitas madrugadas leu e opinou sobre a pesquisa. Muito obrigada, minha revisora de plantão.

Ao meu tio Esequiel por aquela caneta.

À minha querida professora, Silvia Cárcamo, pela valiosa orientação, pela paciência e sua grande generosidade.

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“ O verdadeiro conhecimento, como qualquer outra coisa

de valor, não é para ser obtido facilmente. Deve-se trabalhar por ele, estudar por ele, e mais que tudo, rezar

por ele.”

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LIMA, Carla Vidal Oliveira de. O Duplo e a Autoficção em La Verdad de Agamenón. Rio de Janeiro, 2011. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas) Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2011.

Indagamos sobre o sentido da conjunção de literatura fantástica e da proposta autoficcional em La verdad de Agamenón, um conto longo do escritor espanhol Javier Cercas. Por intermédio do duplo - que por sua natureza sobrenatural remete à tradição da literatura fantástica - e da autoficção, termo cunhado por Serge Doubrovsky, fenômeno contemporâneo de ficcionalização crítica, Cercas sinaliza para a necessidade das novas estratégias narrativas, condicionadas pelas transformações ocorridas no processo de escritura e de leitura. As aparições do autor em suas ficções confirmam uma tendência da literatura atual que consiste na coincidência do autor, do narrador e do protagonista, sem, no entanto, deixar de ser um relato de ficção. A literatura acompanha a transformação cultural que tem sua origem no desenvolvimento tecnológico e na democratização do conhecimento na sociedade da imagem e do consumo. O insólito e a ficcionalização da crítica se encontram nesse conto que questiona tanto o racionalismo quanto o fazer literário na atualidade. Embora o corpus esteja constituído por esse conto, estabelecemos relações com os textos ficcionais, críticos e híbridos em nossa reflexão. O objetivo da pesquisa é averiguar a relação existente entre o duplo, a autoficção e a Espanha atual. A busca de novas estratégias narrativas, em nossa proposta, explica a utilização do duplo vinculada à crítica da realidade do mundo literário, o escritor, o leitor, a circulação de obras na cultura pós-moderna.

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We questioned about the meaning of the conjunction of fantasy literature and the autoficcional proposal in La verdad de Agamemnon, a long tale of the Spanish writer Javier Cercas. Via the double - that for your supernatural nature refers to the tradition of fantasy literature and autofiction - a term coined by Serge Doubrovsky, contemporary phenomenon of critical fictionalization, Cercas signalize the need for new narrative strategies, conditioned by the changes occurring in the process writing and reading. The entrances of the author in his fictions confirm a style in current literature is the coincidence of the author, narrator and protagonist, without, however, not to be a story of fiction. The literature accompanying the cultural transformation that has its origin in technological development and diffusion of knowledge in society image and consumption. The unusual and fictionalization of this work are critical questions that both rationalism and literary do today. Although the corpus is made up of this tale, we have established relationships with fictional texts, and hybrids in our critical reflection. The objective of this research is to investigate the relationship between the double, the autofiction and the Spain today. The search for new narrative strategies, in our research, explains the use of dual reality linked to criticism of the literary world, that is, the writer, the reader, the circulation of works in postmodern culture.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO __________________________________________________________ 10

1 O DUPLO NA LITERATURA FANTÁSTICA _______________________________ 13

1.1 TEORIAS SOBRE A LITERATURA FANTÁSTICA _________________________ 15 1.2 A LITERATURA FANTÁSTICA E O DUPLO ______________________________ 22 1.2.1 LEITURAS E INTEPRETAÇÕES ____________________________________ 27 1.3 TEORIAS E FUNÇÕES DO DUPLO ______________________________________ 28 2 PROBLEMAS TEÓRICOS: DA AUTOBIOGRAFIA À AUTOFICÇÃO _________ 31

2.1 AUTOBIOGRAFIA, CONFISSÕES E MODERNIDADE _____________________ 33 2.2 A AUTOFICÇÃO E A PÓS-MODERNIDADE ______________________________ 43 2.3 A AUTOFICÇÃO EM JAVIER CERCAS __________________________________ 54 3 ANÁLISE DE LA VERDAD DE AGAMENÓN___________________________________ 58

3.1 A VERDADE ________________________________________________________ 58 3.2 - ESCRITOR E NARRADOR PÓS-MODERNO _____________________________ 62 3.3 PERSONAGENS: FICÇÃO E REALIDADE. _______________________________ 70 CONCLUSÃO ____________________________________________________________ 76

REFERÊNCIAS __________________________________________________________ 79

ANEXOS ________________________________________________________________ 84

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Javier Cercas é para a literatura espanhola o autor de um dos romances mais famosos do início do século XXI: “Soldados de Salamina. Nesse romance, o escritor narra a história do fuzilamento frustrado de Rafael Sánchez Mazas, ideólogo e fundador da Falange Espanhola. Cercas se apresenta como narrador-personagem para abordar e ficcionalizar os sucessos históricos da Guerra Civil Espanhola e o processo de construção do romance. A leitura do romance despertou o interesse em buscar mais informações sobre o autor e sua produção literária e percebemos que a ficcionalização da figura do autor e a discussão literária são uma constante em sua obra.

A obra de Javier Cercas é diversificada e reúne desde narrativas ficcionais curtas como

“El móbil (1987), um livro de contos que é sua primeira obra publicada, a textos mais longos como o romance como “La velocidad de la luz (2005). É interessante observar também experiências como Anatomia de um instante (2009), uma crônica sobre a tentativa de golpe de estado ocorrida em 1981, seu mais recente lançamento, e a contribuição na edição catalã do jornal El país. A atuação como professor de literatura nas universidades de Illinois e Gerona compõe uma bagagem cultural e conhecimento técnico que permitem que o autor utilize o discurso da crítica literária como matéria ficcional em sua escrita. Pela particularidade, iniciar uma investigação mais detalhada sobre a obra de Javier Cercas contribui e participa do desenvolvimento dos estudos literários, sobretudo em literaturas hispânicas.

À luz dos estudos e análises comparativas entre teorias sobre o fantástico e do duplo, a autoficção e a cultura pós-moderna, objetivamos explicar uma orientação da narrativa espanhola na atualidade. Embora nosso corpus seja constituído pelo conto La verdad de Agamenón, baseada no caráter exploratório da investigação, a metodologia adotada é a pesquisa bibliográfica e a leitura de textos ficcionais e híbridos .

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Ao tomar a autoficção como uma tendência que mescla a realidade e a imaginação para refletir sobre a figura do escritor e as transformações ocorridas no processo de escrita, trabalhamos inicialmente com duas hipóteses: na primeira, entendemos a autoficção como uma nova dimensão narrativa para explorar a realidade e na segunda, uma forma de revalorizar a figura do escritor. Compreendemos que há vínculos contraditórios que constituem o intelectual na contemporaneidade porque, paralelamente, ocorre a valorização da consciência crítica e negação de se pensar como um produtor de livros para o mercado.

A produção literária e a sua divulgação se dão através dos grandes meios de comunicação e a literatura de Javier Cercas se move dentro dessa lógica. A busca de novas estratégias narrativas, em nossa reflexão, explica a utilização do duplo e da autoficção vinculada à problemática da realidade do mundo literário: a complexidade que envolve a figura do escritor, a necessidade de inserção na lógica mercadológica de circulação de obras e a construção de uma tradição que faz parte do mesmo sistema que critica.

O autor sinaliza que o avanço tecnológico influencia o individuo, sua escrita e a necessidade de buscar novas estratégias narrativas na sociedade da imagem e do consumo. Observamos que a conjunção de elementos de períodos cronológicos díspares, o duplo e autoficção constituem importantes temas de investigação literária. Desta forma, buscamos justificar, mais uma vez, a importância da pesquisa através do diálogo entre textos capitais sobre a literatura fantástica e sua importância como precursora das mudanças sociais e inovação de recursos literários; a autoficção como fenômeno gestado na passagem da modernidade à pós-modernidade, que dentre vários questionamentos, problematiza a figura do escritor e da literatura como instituição mercantilizada para finalmente chegar à análise do conto fantástico, que é a nossa interpretação respaldada na teoria.

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narcisismo primário e a potência que visa contrariar a consciência da efemeridade, que demonstram as preocupações com a identidade.

No segundo capítulo, pensamos nas formas literárias de representação biográfica que aprofundam a discussão sobre a fragmentação do sujeito. Concentramo-nos na autoficção como uma das formas que apontam para a mudança da modernidade para a pós-modernidade e a necessidade de tornar explícita a complexidade que envolve a criação da imagem que o sujeito faz de si e do seu entorno, sobretudo o escritor. Para tanto, recorremos a estudos sobre autobiografia e romance uma vez que em ambos a autoficção encontra elementos constitutivos. No capítulo, acompanhamos o desenvolvimento da autoficção como um processo global, concentramo-nos na particularidade do âmbito hispânico e a forma como está refletida na obra de Cercas.

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1 O DUPLO NA LITERATURA FANTÁSTICA

A literatura, assim como outras formas de manifestação artística do fantástico, nasce como resposta ao desencanto provocado pelo choque entre o racionalismo do período da Ilustração e o subjetivismo romântico, no final do século XVIII e início do século XIX. Na Ilustração são enfatizadas ideias de progresso, que buscam aprimorar o ser humano através da defesa do conhecimento racional como meio para a superação de preconceitos e ideologias tradicionais. O Romantismo se desenvolve confrontando a rigidez da realidade, cultivando a imaginação e o subjetivismo.

Até o século XVIII, o verossímil inclui a natureza e o sobrenatural de forma coerente através da religião. No Século das Luzes, estes dois universos se opõem. Durante o período da Ilustração, ocorre uma mudança radical com relação ao sobrenatural. Com o domínio do racionalismo, o homem deixa de crer na existência destes fenômenos, deixando em descrédito a religião e a superstição como meios para explicar e interpretar a realidade.

Para compreender a abrangência, transformação e conflitos dos modelos culturais entre os século XVIII e XIX é necessário fazer referências às metamorfoses sociais e antropológicas que incidiram profundamente na mentalidade e na sensibilidade coletivas. Tais alterações com raízes fincadas na vida social, contribuem para a construção da nova concepção do trabalho, do amor e da morte. As explicações religiosas e sagradas entram em choque com o crescente ceticismo às explorações filosóficas e científicas, à importância que assumiram os problemas da consciência, da verdade e do duvidoso. Ainda que Iluminismo e Romantismo compartilhassem do objetivo de alcançar uma sociedade igualitária e feliz, o caminho seguido pelos românticos não é o cultivo da razão para indagar sobre as facetas ocultas do homem.

O fantástico fornece ao imaginário do século XIX a possibilidade de representar momentos de inquietação, deixando essa tradição como espólio para modernidade. Remo Ceserani (2006) destaca que há duas tendências contrapostas na crítica literária quanto à

identificação do fantástico. A primeira é referente à “literatura fantástica do romantismo

europeu”, que reduz o fantástico a um gênero limitado a alguns textos do século XIX. A segunda, estende o fantástico, sem limites históricos, a toda produção literária, do romanesco ao fabuloso, da ficção científica ao metarromance contemporâneo.

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com a publicação da obra O castelo de Otranto em 1764. Entre as características deste tipo de romance estão o gosto pelo cenário histórico, estilo de ornamentação da Idade Média e do Renascimento, gosto ambiguamente iluminado pelas manifestações do sobrenatural, visitação e presença de espíritos, atração pelo mistério da maldade humana, perversão dos instintos e do caráter. Esse imaginário gótico recebe particular enriquecimento na França pré-revolucionária por meio de uma ampla exploração da sensibilidade romântica.

Na Alemanha reúnem-se as tendências do romance gótico inglês e francês dando origem a uma síntese equilibrada que serve de modelo para a Europa. Na obra de Ernest Hoffmann, escritor alemão e um dos expoentes da literatura fantástica, é possível observar procedimentos e temas da literatura fantástica, pois em seus textos o inexplicável está inserido na vida cotidiana realista e burguesa. Procedimentos de hesitação fazem parte da técnica narrativa, problematizando pontos de vista, utilizando a potencialidade da linguagem criativa em elementos geradores do efeito fantástico. No século XIX, através de Peças noturnas e o conto O homem de Areia,o autor contribuiu para a difusão da literatura fantástica com temas como o duplo, a loucura, a vida após a morte. No mesmo período, também as obras As aventuras da noite de São Silvestre e Os elixires do diabo são textos basilares para o início da discussão sobre o fantástico.

No decorrer dos decênios do século XIX, a produção literária fantástica mescla-se a gêneros literários cuja percepção de mundo, individualidade e construção social é mais otimista como o autobiográfico ou romance de costume, por exemplo. Com isso, o fantástico antecipa experiências da literatura moderna como a representação subjetiva do tempo, fragmentação de personagens unitários e coerentes. Neste sentido, o surrealismo é um movimento de vanguarda que leva ao extremo a escritura automática, linguagem e as imagem dos sonhos, elementos dos quais compartilha o gênero fantástico.

Na Espanha do século XX, merece destaque o cineasta surrealista Luis Buñuel que demonstra também em sua escritura a valorização da imagem em poemas visuais como

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1.1 TEORIAS SOBRE A LITERATURA FANTÁSTICA

O interesse pela literatura do insólito gera um corpus amplo de aproximação entre diversas correntes teóricas como estruturalismo, crítica psicanalítica e sociologia. Como resultado, há uma grande variedade de definições, que ilumina vários aspectos do gênero fantástico. Entretanto, não encontramos uma definição que considere em conjunto as muitas da literatura fantástica.

Em Ceserani (2006), observamos que nos anos 50 e 60 do século XX, Pierre-Georges Cartex, Roger Callois e Louis Vax propõem definições e foram predecessores nos estudos sobre o gênero fantástico1. Entretanto, são os postulados de Todorov (1980) que despertam interesse teórico e crítico sobre a literatura fantástica. Para refletir sobre o gênero literário, ainda que seja para revisar certos conceitos e refutar outros, Introdução a literatura fantástica(1980) é o texto basilar deste estudo.

Segundo Tzvetan Todorov, o fantástico é a vacilação experimentada, frente a um acontecimento sobrenatural, por um ser que não conhece além das leis naturais. O efeito do fantástico nasce da dúvida entre a explicação natural e sobrenatural dos fatos narrados. Diante desse fenômeno, narrador, personagens e o leitor implícito são capazes de discernir se o texto representa uma ruptura das leis do mundo objetivo ou se fenômeno pode ser explicado mediante a razão. Entretanto, quando o leitor elege uma das opções, entramos em terrenos vizinhos - o estranho ou o maravilhoso. O estranho aceita a explicação pelas leis da realidade e o maravilhoso, quando o sobrenatural é aceito.

Existe ainda a subdivisão em estranho puro, fantástico estranho, fantástico maravilhoso e maravilhoso puro. Dessa forma, o fantástico é uma categoria evanescente que se define pela percepção ambígua que o leitor tem dos acontecimentos relatados, compartilhados com um narrador ou personagem. São três premissas básicas para que se produza o efeito do fantástico: O leitor deve considerar o mundo dos personagens e vacilar entre a explicação natural e sobrenatural; a vacilação está representada no texto, ou seja, é sentida pelo personagem e o leitor deve rechaçar a interpretação alegórica ou poética. A maioria dos críticos coincide na ideia de que para que se produza o efeito fantástico é

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necessária a presença do sobrenatural. Para que uma história seja considerada fantástica, o ambiente do leitor deve ser assaltado por um fenômeno que o desestabiliza.

Todorov propõe uma aproximação estruturalista frente aos estudos predecessores de Roger Callois e Louis Vax, que fundamentam-se no aspecto temático. A contribuição de Todorov é a elaboração de um conjunto de características do gênero fantástico. Devido a essa limitação de características do fantástico, há teóricos, como veremos a continuação, que

compartilham da ideia de que é necessário levar em consideração o contexto sociocultural. Seguindo um critério cronológico para recuperar alguns textos referenciais do gênero, recorremos à obra Teorías de lo fantástico (2001) de David Roas. Nesta obra, é apresentado um conjunto de textos fundamentais de teóricos como Irène Bessière, que parte da perspectiva sociológica, apresentando o fantástico como um tipo de relato que explora as dualidades e as contradições culturais. Além da base estruturalista proposta por Todorov, figuram em nossa revisão teórica a dimensão psicanalítica de Bellemin-Nöel, a linguística de Campra e Bozzetto, a ficcional de Reisz e a expressão de alteridade de Jackson e Nandorfy. Por último, os novos caminhos do fantástico, os estudos de Jaime Alazraki sobre neofantástico.

Conforme Bessière (2001), no estudo El relato fantástico: Mixto de caso e adivinanza ,

a vacilação é um dado não específico para qualificar o fantástico, pois exclui o conteúdo cultural. Nesta perspectiva, o fantástico não se distingue das manifestações do imaginário ou expressões da tradição popular e, assim, não deve ser associado a meditações ou ao discurso do subconsciente, pois está dominado interiormente “por uma dialética de constituición de la

realidad y desrealización propia del proyecto del autor (ibid, p.85)”.

O relato fantástico utiliza marcos sociológicos que definem o natural e sobrenatural que variam segundo a época. Leem-se nas estrelinhas o novo universo elaborado na trama, o jogo de imagens, afetos e contradições. O fantástico nasce da relação dialogal entre o sujeito, suas crenças e incongruências. A esse respeito, a autora afirma:

Símbolo de un cuestionamiento cultural, gobierna formas de narración particulares, ligadas siempre a los elementos y argumento de las discusiones - fechadas históricamente sobre el estatuto del sujeto y de lo real. No contradice las leyes del realismo literario, pero muestra que esas leyes se convierten en las de un irrealismo cuando la actualidad es tenida como totalmente problemática. (BESSIÈRE, op. cit., p. 87)

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apenas ao enigma do acontecimento. Assim, o estranho não é senão a circunstância, o indício de transtorno do mundo.

O texto kafkiano se apresenta como separado da realidade. Desse modo, classificado como maravilhoso na medida em que indica uma regulamentação que escapa à ruína e fracasso do mundo concreto. A fim de excluir a ruína da ordem tida como natural, o texto exerce a função sociocultural e representa a emancipação da representação literária do mundo real.

O relato fantástico é um discurso coletivo e disparatado que concentra tudo aquilo que não se pode dizer na literatura oficial, a exigência de uma ordem permanente. Os temas de monstros e de outros mundos traduzem não apenas o medo e o afastamento da autoridade, mas também a fascinação que exerce e a debilidade que suscita. Desse modo, o insólito expõe a debilidade do indivíduo autônomo. A duplicidade se revela no estatuto literário já que em uma sociedade laica, liberal e não hierarquizada diferentes tipos de texto tem valor semelhante. Medos e incertezas calculadas e o desconhecido se convertem em organização lúdica.

A narrativa fantástica marca o limite da leitura individual e privada e sem função coletiva explícita, reafirmando a liberdade total do imaginário. Bessière (2001) adverte que ainda para que o fantástico seja subversivo, não se deve confundir a modernidade literária e a inovação estética como portadoras de uma mudança ideológica.

Há interpretações do fantástico como uma das formas de linguagem do inconsciente, apontando sobretudo alguns aspectos temáticos deste tipo de narrativa e reconhecendo nelas fáceis transcrições simbólicas dos sonhos e pesadelos do inconsciente coletivo. O crítico francês Jean Bellemin-Nöel busca conjugar algumas concessões freudianas do inconsciente e análises das estruturas narrativas e retóricas do fantástico e sustenta que o fantástico é estruturado como o fantasma psíquico.

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A emergência da literatura fantástica em períodos de relativa estabilidade aponta para a relação direta entre representação cultural e energias transgressoras. Conforme Jackson, a fantasia tem a função de apresentar um revés da formação cultural do sujeito e complementa a argumentação de que as identidades desconstruídas, demolidas ou divididas se opõem à categoria de sujeitos unitários e revelam um sujeito em processo, ou seja, com outras possibilidades. A autora compartilha da ideia de Todorov (1980) de que a fantasia está entre realismo e a literatura:

(...) las fantasías imaginan la posibilidad de una transformación cultural radical, a partir de la disolución o la destrucción de las líneas de demarcación entre lo imaginario y lo simbólico. Se rechazan la s ca tegorías de lo < < real> > y sus unidades. ( JACKSON, 2001, p.149)

A proposta linguística de Campra (2001) sugere que se agrupem os temas fantásticos segundo categorias substantivas e predicativas. As substantivas remetem às situações enunciativas que estabelecem oposições no eixo da identidade do sujeito (eu/outro), do tempo (antes/depois) e do espaço (aqui/ali). As predicativas são referentes às dicotomias concreto/abstrato, animado/inanimado, humano/não humano. Tal terminologia difere daquela utilizada por Todorov como matéria e espírito ou real e irreal. Entende-se por concreto tudo que está sujeito às leis de tempo e espaço, volume e lugar que ocupa no espaço. Abstrato, ao contrário, aquilo que foge a essas especificidades.

Em Lo fantástico: una isotopia de la transgresión, a autora afirma que na atualidade predomina o grupo de temas que constituem as categorias da enunciação (substantivas), proliferação de desdobramentos, usurpações do eu e inversões temporais. Referindo-se à instância narrativa do fantástico, a autora suscita o problema da percepção uma vez que a realidade percebida é a realidade dos sentidos, portanto, uma aparência ou uma imagem parcial. A organização do nível semântico está composta em função da experiência que se contrapõe à verdade científica. O choque entre ambas significa a inconsistência de uma delas e pode seguir combinações partindo do personagem, do narrador e do destinatário para o acontecimento fantástico.

Recebe maior destaque a perspectiva do narrador que se coloca como primeira pessoa no texto:

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permanece en los confines de lo abstracto. La primera persona protagonista tiene el

fatídico don de contaminar de duda la existencia misma del acontecimiento.” (CAMPRA, 2001, p.170)

A verossimilhança no texto fantástico se deve à necessidade de afirmar sua existência, explorando de modo particular aquilo que Roland Barthes chama de efeito de realidade. Pode-se encontrar em textos narrativos sequencias descritivas sem finalidade de ação, apenas para criar a ilusão de realidade. O relato fantástico oferece uma discrepância entre o aspecto semântico e o sintático, consiste na inversão temporal - o fato que desencadeia a ação é revelado ao final. Campra afirma ainda que, de modo geral, o relato fantástico se apresenta como uma longa preparação que leva a um desenlace brevíssimo.

A passagem do fantástico predominantemente semântico ao fantástico do discurso é o resultado da integração dos níveis formais. O nível semântico é referente à identificação de motivos como monstros, vampiros e etc. No nível sintático, aquilo que diferencia o fantástico de outros tipos de texto é a relação inicial de equilíbrio, ruptura e retorno ao equilíbrio que nem sempre se completa. Tais transgressões aparecem como isotopia, ou seja, o mesmo plano temático, que atravessa os limites em diferentes níveis do texto, permitindo a manifestação do fantástico. Através do gênero se pode chegar a uma percepção do mundo representado na escrita.

O horizonte cultural do produtor e receptor ajuda na categorização do fenômeno fantástico. Compartilhando da opinião de que o fantástico nasce do confronto entre esferas excludentes e antonímicas, os autores adotam diferentes nomenclaturas: natural e sobrenatural para Todorov; normal e anormal, para Barrenechea; real e maravilhoso provável, segundo Bessière e finalmente, Reisz2 que opta pela denominação possível e impossível.

Conforme Ana María Barrenechea(1985), na escrita fantástica é importante considerar o marco de referencia histórica e social em que está inserida, pois o autor seleciona, elabora e manipula informações para guiar o leitor e levá-lo a aceitar um contrato especial de leitura.

Ese marco de referencia le está dado al lector por ciertas áreas de la cultura de su época y por lo que sabe de las de otros tiempos y espa cios que no son los suyos(contexto extratextual). Pero ademá s sufre una elaboración especial en cada obra porque el autor_ apoyado también en el marco de referencia específico de las tradiciones del género_ inventa y combina, creando las reglas que rigen los mundos imaginarios que propone(contexto intratextual). (BARRENECHEA, 1985, p.45)

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Seguindo a teoria de que a literatura fantástica depende também dos códigos culturais, normal ou anormal estão diretamente ligados aquilo que é socialmente aceito, portanto não se deve perder de vista que as crenças de uma sociedade não são homogêneas. Ainda que organize um mundo distante no tempo e no espaço, o texto sempre é lido em contraste com o tempo e o lugar da leitura. Como exemplo, podemos recorrer à interpretação da lenda cristã. Tais relatos são considerados ficção somente para aqueles que não fazem parte do universo religioso. Outro apontamento difere o conto de fadas da lenda porque desde o início é distante do cotidiano e familiar. Os modos de começar os contos de fadas sugerem que as histórias ocorreram em qualquer lugar concreto, um tempo que é todos os tempos e por intermédio de

expressões como “era uma vez”, “em um lugar distante” e “há muito tempo”, o narrador

renuncia à pretensão fática. O final feliz satisfaz a situação de que as coisas deveriam acontecer sempre de uma mesma maneira, demanda primordial. Nas ficções fantásticas a situação é inversa. Os impossíveis se localizam sempre dentro de situações de casualidade que se apoiam nas ações cotidianas do homem de nossa época e cultura.

Reisz discorda da opinião de Todorov no que concerne ao narrador e justifica afirmando que o narrador em primeira pessoa não necessariamente faz parte do universo narrado, pode ser somente instância narrativa e não protagonista. Por isso, a visão ambígua

depende mais do “modo” narrativo que da “voz” narrativa. Não é indiferente que o autor esteja presente no texto. O fundamental é que se adote ou não o ponto de vista correspondente ao personagem.

Um dos pontos distintivos do fantástico é o fato de que o acontecimento impossível esteja representado de maneira que não se possa afirmar se ocorreu ou não. É fundamental que a ocorrência possível ou efetiva apareça apresentada como transgressora dentro de certas coordenadas históricas e culturais precisas. Neste sentido é retomanda A metamorfose de Kafka porque há o questionamento de mundos em duas direções. Por um lado, a realidade subjacente da conduta dos personagens e a denúncia desse mundo que propõe a revisão das noções de realidade e normalidade.

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A proposta do autor é opor o discurso mimético, seus pressupostos e estratégias e o discurso fantástico e suas especificidades. O primeiro pressuposto da ficção mimética é que tudo é representável e o segundo, a representação passa a ser análoga, ou seja, a fabricação de uma metáfora do mundo referencial. Como o objetivo de parecer o mundo concreto, homogêneo, coerente são dadas muitas informações sobre a solidez do mundo dos personagens.

Sob a ótica de Nandorfy em La literatura fantástica y la representación de la realidad, o fantástico parece destinado a construir uma categoria negativa projetada contra tudo que é normal, natural e objetivo. Sua proposta é dirigir-se aos problemas teóricos derivados da tendência logocêntrica de excluir experiências da indeterminação da linguagem tomando como base os estudos de Todorov (1980), Jackson (2001) e Alazraki (2001).

Ao falar de literatura oscilamos entre a noção de realidade, mundo da ação, e representação, modalidade artística sujeita a convenções. Todorov (1980) ao considerar o fantástico do ponto de vista estrutural se esquiva das consequências filosóficas sobre a natureza da realidade. No século XX, a partir de várias disciplinas a separação é entendida como ordem arbitrariamente imposta. Daí a tese de Jackson (2001) afirmar que o fantástico não desapareceu, mudou de forma.

“La obra literaria es un producto social y también un espejo que refleja nuestros deseos inconscientes, y que, en consecuencia, señala la vía de una cura para los males de la sociedad:< < Desmitificar el proceso de lectura de relatos fantásticos nos ofrecerá la entusiasmante posibilidad de neutralizar muchos textos que opera forma inconsciente sobre nosotros.. Ello debería conducir en una última instancia, una transformación social real.> >” ( Ibid, p.254 )

Nandorfy afirma que os estudos de Todorov (1980) e Jackson (2001) valorizam critérios estritamente formais e sociais e, por isso, relegam o fantástico à condição de alteridade negativa da realidade ou da cultura. Para a autora o significado mais preciso do fantástico “ya sea en un contexto científico o artístico, será pues, „potencial‟; un potencial

susceptible de actualización en la experiencia y en la expresión, en tanto en cuanto no se vea

sometido a la práctica racional de la exclusión. (NANDORFY , 2001, p. 259)

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O texto de Jaime Alazraki, ¿Qué es lo neofantástico?, aponta para novos caminhos

para a literatura fantástica extraindo o critério do medo como fundamental à literatura do insólito. Teóricos como Lovecraft (apud ALAZRAKI, 2001), reclamam o medo nesse gênero literário como elemento que o distingue do maravilhoso, já que é o resultado ruptura da ordem natural e desencadeando o questionamento daquilo que se crê como produto da imaginação.

Na atualidade, há controvérsias quanto a essa opinião. Baseado em A metamorfose,

Todorov (1980) sinaliza que no século XIX a literatura fantástica perde a função de manifestar temas tabus, partindo da premissa de que a psique humana sofreu mudanças com o advento da psicanálise, provocando alterações na censura social. O texto de Kafka é exemplar porque rompe o paradigma da literatura fantástica tradicional, pois parte do sobrenatural para o natural. Sem explicação, o protagonista Gregor Samsa é transformado em inseto e, diante da transformação, não ocorre nenhuma vacilação nem assombro dele ou de sua família.

No universo do texto kafkiano o fantástico deixa de ser exceção e passa a ser uma regra de funcionamento. Do mesmo modo, autores como Jorge Luis Borges e Julio Cortázar tem uma nova maneira de cultivar o gênero fantástico; Alazraki (2001) os define como neofantástico e acrescenta:

Una perplejidad o inquietud sí, por lo insólito de las situaciones narradas, pero su intención es muy otra. Son, en mayor parte, metáforas que buscan expresar atisbos, entre visiones o intersticios de sinrazón que esca pan o se resisten al lenguaje de la comunicación, que no caben en las celdillas construidas por la razón, que van a contrapelo del sistema conceptual o científico con que nos manejamos a diario.”

(ALAZRAKI, 2001, p.277)

A literatura fantástica contemporânea se inserta na visão pós-moderna da realidade na qual o mundo é indecifrável. Através de mecanismos diferentes, a literatura fantástica tradicional ou contemporânea indica mudanças de uma sociedade.

1.2 A LITERATURA FANTÁSTICA E O DUPLO

O gênero fantástico se contrapõe à realidade na medida em que utiliza o sobrenatural, induzindo a vacilação do leitor. Neste gênero, nos interessa tratar sobre o duplo, ou

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23

A preservação da identidade é uma das grandes questões do indivíduo moderno, que parte de suas idiossincrasias para identificar-se com um determinado grupo concreto de pessoas ou ainda para diferenciar-se da coletividade. A literatura, a partir de uma reflexão romântica, nos convida a indagar sobre quem somos, reconstruindo a realidade habitual a partir da imaginação. O motivo do duplo, que de modo bastante genérico pode ser definido como cópia idêntica ou desdobramento do ser, é fruto dessa indagação. Suas manifestações podem ser representadas por intermédio das máscaras que o homem utiliza para representar papéis sociais em diferentes contextos, reflexos especulares, sombras, irmãos gêmeos. Essa polissemia da imagem adquire, em cada obra, sentidos diferentes. As inquietações causadas pelo duplo vão além do estranhamento causado pelo aspecto físico e reforçam as evidencias da fragmentação do sujeito, revelando que fragilidade, temores e frustrações fazem parte de todo ser humano.

Os textos canônicos nos quais figura o duplo datam em sua maioria do século XIX. Citamos o célebre William Wilson (1839) de Edgar Allan Poe, que narra a história de um jovem que conhece um indivíduo que, exceto pela voz, se assemelha a ele em tudo. Tal indivíduo o acompanha em todos os lugares e, na medida em que se corrompe, o protagonista passa a entender seu duplo como um perseguidor.

Muitas análises da literatura fantástica privilegiam a perspectiva psicanalítica, marginalizando o componente fantástico e reduzindo-o a casos clínicos. Entretanto, é importante não perder de vista o valor estético. Para estudar o motivo do duplo, é necessário levar em consideração por um lado, suas raízes míticas e antropológicas, que interpretavam a alma humana, as sombras, reflexos e as lendas. Por outro, a sua fundação literária, originada na insatisfação dos postulados da Ilustração, que homogeneizava o homem, suprimindo a liberdade de criação artística. Para a literatura da época o motivo obriga o homem a se dar conta de uma faceta irracional e colocando em xeque a confiança na razão.

Através do estudo do doppelgänger, percebemos a mudança das noções de sujeito na passagem da modernidade para a pós-modernidade. Uma das razões fundamentais para proceder a uma investigação sobre o motivo idôneo é a reescritura de uma tradição e do jogo referencial que elucida a recorrência questão da crise da identidade na modernidade. Desde a antiguidade, o medo da duplicação assola a humanidade e permanece frutífero e ainda hoje com o avanço da tecnologia em vários setores e a possibilidade de clonagem.

É necessário estabelecer um termo diáfano e coerente para explicar o doppelgänger.

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anglo-saxônicas. Em resumo, se distingue tema como matéria em torno da qual se desenvolve um argumento ou uma fábula com o protagonismo de um personagem e o motivo como elementos históricos que conservam sua unidade em diferentes obras.

O duplo costuma aparecer com efeitos concretos como o encontro com o original, a usurpação da identidade no âmbito público e privado e a dúvida sobre a própria identidade. Martín-López (2006) opta pelo termo motivo porque goza de uma forma concreta, paralelismos e interações que remetem o leitor a elaborações. A autora justifica sua escolha:

El doble adquiere dicha calidad cuando se erige en el eje central que estructura la narración, tal y como sucede por citar dos obras paradigmáticas en Willian Wilson (1839) y El Doble (1846). Tanto para Poe como para Dostoievski sirven del motivo para plantear temas universales que tra scienden los límites del texto (MARTÍN-LÓPEZ, op. cit, p. 15).

Conforme Martín-López, embora sejam variadas as designações para definir o duplo, que vão desde alter ego e sósia, a partir das comédias de Plauto ou o outro ou segundo eu

para aproximar-nos a Borges, o termo essencialmente romântico doppelgänger foi cunhado por Jean Paul Friedrich Richter(1796), no romance “Sieblenkais. É difícil ter uma definição do duplo a partir de seus estudos críticos. O motivo se insere na linha de questionamentos entre as noções de identidade e unidade do sujeito. Nestes termos, configura-se como um mecanismo de linguagem e literário para veicular e dar uma forma coerente à digressão de tais noções.

Ocupamo-nos de doppelgänger como personagem nascido no romantismo porque ainda que suas origens reportem às comédias de Plauto, é no século XVIII que ele é adotado como ponto de reflexão que condensa velhas tradições para tornar-se modelo canônico que irá influenciar formulações posteriores. A proposta de estudo de Martín-Lopéz (2006) surge principalmente das fontes de textos literários fundacionais como o de Jean Paul (1796) e a crítica de disciplinas como a antropologia e psicanálise. Suas análises destacam, por exemplo, o tratamento dado por a E.T.A Hoffmam em Os elixires do diabo (1815) e O Homem de areia

(1817) ; Edgar Allan Poe em William Wilson (1839) e O retrato oval (1842); Theóphile Gautier em A morte amorosa(1836); El doble de Dostoieviski (1846); Aurelia de Nerval (1855). A autora resume e analisa os textos esclarecendo sua importância no estudo do doppelgänger.

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trágica morte quando cai da torre. Para Freud, o texto é caracterizado como estranho, pois suscita no leitor o efeito de incerteza intelectual. A análise de Freud nos conta duas histórias paralelas de um jovem que é levado ao suicídio pelo poder maligno do homem de areia e a gradual deterioração psíquica de um jovem fixado em seu pai pelo complexo de castração. Ambas histórias estão relacionadas entre si pelo caráter ambíguo entre aquilo que é latente e o que é manifesto à consciência e desse modo, O homem de a reia (1817) é resultado do complexo de castração. Neste são trabalhados temas dos olhos e da perspectiva de visão, a cisão do eu e a formação do duplo/ sósia, das presenças e coincidências sobrenaturais.

Em As aventuras da noite de São Silvestre podem ser destacados os procedimentos narrativos das transformações ou metamorfoses interiores e exteriores dos personagens, o contínuo jogo de espelhos entre aparência e realidade, constante debate sobre a identidade dos personagens. É refinada a elaboração dos temas relativos ao duplo como personagens que se refletem em outros personagens, personagens duplicados e outros que se transformam na própria sombra ou imagem.

A chegada dos contos de Edgar Allan Poe, radicados na sensibilidade gótica, promoveram uma grande mudança nos gostos literários e introduziu novas formas no fantástico. Dividido em duas partes, O retrato oval (1842) tem como tema central a relação entre a vida e a morte, permeada pela relação entre a vida e arte. Na primeira parte o protagonista narra ter passado uma noite em um castelo de aparência gótica e adornado com muitos quadros e no qual havia um livro que continha a explicação de cada um. Um quadro oval de uma jovem senhora exerceu sobre ele um efeito especial, pois parecia ter vida. Na segunda parte, o anônimo narrador do conto relata a história da mocinha casada com um pintor. Na medida em que era pintada na tela, perdia vitalidade até a morte declarada com o término da pintura. O relato do livro coloca em crise a explicação fácil e sinaliza para o tema da arte que se nutre da vida.

Em a Morte amorosa(1836), o protagonista-narrador é um homem convicto e fervoroso em suas crenças religiosas que se refere à história de um monge, apresentando o relato como advertência. O tema central é o duplo que joga com a relação de uma personalidade diurna e outra noturna de Romualdo, pároco que no momento de fazer os votos vê pela primeira vez Clarimunda, uma vampira e belíssima cortesã. Durante o dia leva a vida normal de um padre e à noite, em seus sonhos, torna-se amante de Clarimunda.

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montanhas escabrosas (1844), de Poe, A esquina Alegre (1908) de Henry James, Lejana

(1951) de Cortázar e El outro (1975) de Borges. A segunda, dois indivíduos homomórficos coexistem na mesma dimensão, modelo seguido por Hoffman em Os Elixires do diabo

(1815). Já a última variante atesta que o indivíduo que assiste ao seu próprio funeral e contempla a si mesmo morto. De acordo com o estudo de Rebeca Martín-López (2006) essa variante é parte do acervo espanhol.

O estudo menciona as diferenças entre o duplo subjetivo e o objetivo, bastante útil na descrição literária. O subjetivo apresenta as formas interna e externa. A personalidade múltipla ou possessão são de ordem interna enquanto a externa é representada na forma física. É importante relembrar que o duplo interno, em muitos casos é analisado como crítica psicanalítica. Martín-López(2006) entende que o romance O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde(1886) é um caso particular no estudo do duplo, pois nele é possível apontar a carência de duplicação e presença sincrônica que mais se assemelham ao transtorno psicológico que ao motivo literário.

O estudo de Todorov (1980), por exemplo, marca essa tendência destacando que no século XIX, a literatura fantástica perde sua função porque os temas tabus por ela explorados passam a ser explicados pela psicanálise. O duplo objetivo é quando o protagonista testemunha uma duplicação alheia como em “O homem de Areia”(1817). Tal tipo de duplicação é muito peculiar quando se pensa na reificação da mulher amada como em retratos, estátuas .

As raízes antropológicas do duplo são muito anteriores a sua constituição como motivo literário, pois remetem à mitologia e ao folclore universais como mito dos gêmeos e o simbolismo que existe entorno da alma e suas representações como sombra, espelho e estátua. Em ambas está associada a ideia do homem como ser binário. Devemos acrescentar as origens míticas e lendária que dão fundamentos ao imaginário popular, o mito de Narciso, pares independentes como D. Quixote e Sancho Panza e a tradição teatral. Segundo Rank (1914) e Freud (1919), o instinto de conservação é a razão das origens ancestrais do duplo antropológico.

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27

literário daquele período3. Na Espanha o desenvolvimento da literatura fantástica e, consequentemente, do duplo estão diretamente ligados ao desenvolvimento em suas fronteiras.

O conto La verdad de Agamenón é também uma forma de demonstrar a dificuldade de conciliar a vida social e a dedicação literária. Cercas utiliza o duplo para refletir sobre o posicionamento do escritor frente sua obra e a vida cotidiana. Doppelgänger se faz presente para substituir o protagonista, incapaz de sustentar a fachada de artista que construiu. Em “La verdad de Agamenon(2006), Cercas busca fugir de uma vida que o aborrece e desfrutar da clandestinidade. A indiferença inicial do narrador se transforma em raiva quando percebe que o duplo possui talento e uma capacidade de trabalho superiores às suas.

1.2.1 LEITURAS E INTEPRETAÇÕES

As distinções entre o doppelgänger e outros seres sobrenaturais está em sua própria essência, pois é o aspecto físico que lhe dá sentido. A crítica psicanalítica extingue os aspectos estéticos do duplo, entretanto, os estudos de Otto Rank e Sigmund Freud transcendem as estreitas barreiras da psicocrítica e até hoje, oferecem importantes dados à investigação literária. Otto Rank (1914) foi pioneiro no estudo do duplo no contexto literário, pois sua perspectiva antropológica e histórica continuam a oferecer indispensáveis recursos para chegar a gênese do doppelgänger. O estudo de Freud (1919) também tem importantes reflexões sobre obras capitais na história do sobre a literatura fantástica e do duplo.

Em 1914, Otto Rank em seu estudo Don Juan et le doublé estabelece a ligação entre o

eu e a morte. Já para Freud em O estranho (1919) , contraria a pulsão de morte, sendo o narcisismo primário. O duplo funciona nessa relação como uma potência que visa contrariar a consciência da efemeridade e finitude do eu. O relato fantástico provoca o medo físico e o medo intelectual. O medo metafísico define com melhor exatidão o sentimento suscitado pelo

doppelgänger e o temor da perda da identidade será desenvolvido na narrativa através da descrição das sensações, pensamentos e atitudes do protagonista.

O duplo se insere no estudo dos temas do eu, caracterizados pela realização dos desejos entre o homem e o mundo. Na autoficção de Javier Cercas (2006), a trama do gênero fantástico é tecida em torno da relação desenvolvida entre o narrador e seu duplo. O conto narra a história de um escritor insatisfeito tanto no campo profissional como no pessoal. Essa figura, conforme Todorov (1980), cumpre duas funções. Na primeira, é signo de perigo e

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morte, resultado do isolamento com o mundo concreto. Descrito como o mundo no qual está inserido, o narrador-personagem, que precisa corresponder às exigências manter-se no sistema com novos romances e entrevistas; na segunda, a possibilidade de recuperar o contato estreito com pessoas e reintegrar-se ao convívio social, estando à margem do mesmo sistema.

A palavra alemã Heimlich analisada linguisticamente no estudo de Freud (1919) significa, simultaneamente, aquilo que é familiar e agradável e o que está oculto e se mantém fora da vista. Assim, a natureza estranha do duplo está radicada na transformação daquilo que é familiar, o corpo do indivíduo, naquilo que é incompreensível, a presença sinistra da duplicação. Refletindo a ambivalência de sentimentos provocada pela presença do

doppelgänger, sua concepção como produto da cisão entre o familiar e o estranho, ou seja, o consciente do inconsciente está ligada a aplicação literária do conhecimento de si mesmo e as consequências desse ato. Utilizam-se diferentes máscaras a depender da situação e a identidade é construída em contextos determinados. O aparecimento do duplo obriga o indivíduo a observar-se, revelando aspectos desprezíveis de sua personalidade como em

Willian Wilson (1839).

1.3 TEORIAS E FUNÇÕES DO DUPLO

No período de esplendor do romantismo, o protagonista da literatura sobre o duplo é antagônico ao herói clássico, hipersensível e incapaz de discernir o real do imaginário. No textos de Hoffman, Nataniel, de O homem de Areia; Medardo, de Elixires do diabo e em menor grau Willian Wilson de Edgar Allan Poe são exemplos de anti-herói, personagem introspectivo e de imaginação exacerbada torna-se característico da literatura fantástica.

Se considerarmos que o indivíduo modela sua identidade em função do seu entorno, a presença do duplo modifica o vínculo com tudo aquilo que o rodeia. É dessa forma que o duplo mostra sua face sombria, pois começa por apropriar-se da vida privada até suplantar a existência pública do original. Por isso, do ponto de vista narrativo, predomina o relato homodiegético e, quanto ao caráter subjetivo da experiência do desdobramento, parece mais oportuno partir da perspectiva do eu.

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29

Jean Baudrillard (1991) afirma que o duplo é uma figura imaginaria que como a alma, a sombra, a imagem no espelho, persegue o sujeito como o seu outro, fazendo com que faz com que seja ao mesmo tempo ele próprio e nunca o mesmo. Conforme seu raciocínio, a riqueza e poder do duplo encontram maior ressonância na sua imaterialidade, ser e permanecer um fantasma. Isso equivale ao jogo de estranheza e intimidade do sujeito consigo mesmo, ou seja, aquilo que lhe é natural e aquilo que lhe causa inquietação.

As manifestações do duplo estão ligadas ao gênero fantástico não apenas pelos mecanismos de repetição do semelhante e acúmulo de coincidências, mas também pela função subversiva de desmascaramento moral e social aos quais o protagonista é submetido com o aparecimento da figura fantástica. É próprio do nosso tempo querer exorcizar este e outros fantasmas e para tanto, é necessário torná-lo material, dar-lhe um corpo de carne e osso. Essa necessidade é um contrassenso porque significa mudar a lógica do duplo que equivale a trocar a morte do outro pela eternidade do mesmo. Umas das interpretações que cercam

doppelgänger é o pressagio de morte iminente do original ou real. Ao contrário, na escrita de Cercas(2006) é o elemento fantástico o eliminado.

Em La verdad de Agamenón (2006) , as inquietações causadas pelo duplo vão além do estranhamento causado pelo aspecto físico e reforçam as evidencias da fragmentação do sujeito no mundo em que a diferença é articulada através do sentido e do valor. Tal elemento, testemunha a insuficiência do ser. Utilizando a forma de diálogo, a inserção de dados e locais reais como Los Manueles y El diván de Tamarit na região de Granada, o narrador envolve o leitor na atmosfera do fantástico e cria um terreno propício para seu desenvolvimento. Conforme Felipe Furtado em A construção do fantástico na narrativa, a linguagem cotidiana, o detalhamento das circunstâncias e a ideias de testemunho são estratégias adotadas para estabelecer o pacto de leitura. O autor afirma que documentos, referências factuais e testemunhos são recursos à autoridade daquele que escreve, são processos que buscam adequar os dados insólitos à realidade objetiva, contribuindo para contaminar e cooptar o leitor.

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recuperar o contato estreito com pessoas e reintegrar-se ao convívio social, estando à margem do mesmo sistema e cumprindo a função de reconciliação com o ambiente familiar.

O primeiro nível da usurpação tradicional promovida pelo elemento fantástico é a existência na vida privada. Enquanto o narrador Javier Cercas, protagonista, inicia o convívio com a família do duplo e assume suas responsabilidades profissionais como zelador na universidade, paralelamente, o outro reconquista sua esposa e filho, anulando sua existência privada. O medo metafísico que define com melhor exatidão o sentimento suscitado pelo

doppelgänger é a identidade do sujeito. Além do nome, o traço que os unirá definitivamente será a literatura. A identidade do narrador-personagem é totalmente assumida pelo duplo com a publicação do romance La velocidad de la luz (2005)4, corresponde à invasão do último

espaço protegido, a vida pública.

Segundo a opinião de Felipe Furtado (1980), a hesitação construída pelo fenômeno encenado é fruto do discurso verossímil que é construído e desconstruído, sucessivamente, e é este efeito que é responsável pela percepção do leitor. Doppelgänger, no conto simbolizando a impostura do narrador, é portador de aniquilação e morte. O desaparecimento progressivo do narrador-personagem é resultado da incapacidade de assumir seu fracasso como escritor.

Em forma de um diálogo entre o protagonista e um interlocutor cuja identidade não é revelada, o conto é construído com riqueza de detalhes e com um desenlace muito breve, como convém não somente à narrativa de cunho fantástico como também ao romance policial. Todorov (1980) afirma que, embora o romance policial com enigmas se relacione com o fantástico, é ao mesmo tempo, seu oposto. Nos textos fantásticos, inclinamo-nos à explicação sobrenatural, enquanto no romance policial, uma vez concluída, a explicação não deixa dúvida alguma quanto à ausência de acontecimentos sobrenaturais.

Incapaz de manter a fachada de artista, o narrador abandona sua ambição literária e muda de vida como doppelgänger para fugir do aborrecimento, desfrutando da clandestinidade. A indiferença do escritor é transformada em raiva na medida em que constata que o duplo tem capacidade laboral superior e talento para desempenhar bem seu papel social:

Me llamo Javier Cercas, igual que tú. Te escribo para que sepas de mi existencia; yo sé de la tuya desde hace tiempo. Soy aficionado a la literatura, y cuando apareció tu primera novela la compré y la leí. Me gusto. Luego leí la segunda y me gustó menos, igual que la siguiente. (...) Perdona que te hable con tanta franqueza, pero supongo que el hecho de llamarme como tú me da el derecho a hacerlo, ¿no te parece? (...) pero tenemos muchas afinidades, sobre todo literárias. (CERCAS, 2006, p.270)

4

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2 PROBLEMAS TEÓRICOS: DA AUTOBIOGRAFIA À

AUTOFICÇÃO

Dentre as diversas formas de representação biográfica, nos interessa pensar de que modo os homens representam suas vidas na contemporaneidade utilizando a linguagem, em outras palavras, os modelos de construção do percurso vital com os quais criamos nossas histórias pessoais. O ato de narrar envolve a elaboração de uma figura interior e outra exterior, que não deve ser confundida com facticidade das experiências. No estudo Filiações e rupturas do modelo autobiográfico na pós-modernidade, Delory-Momberger parte de dois pressupostos para explicar os modelos que impregnam as construções biográficas bem como o processo que desencadeou a sua transformação.

O primeiro pressuposto é que os homens não têm uma relação direta com o vivido, eles o apreendem a partir de esquemas e figuras que tomam a forma de narrativas. As formas às quais os indivíduos recorrem para biografar suas experiências são de dimensão histórica, cultural e social. O segundo pressuposto é que os modelos biográficos variam de acordo com os tipos e os modos de relação que os indivíduos mantêm com a coletividade segundo as épocas e as culturas. No desenrolar de seu argumento, a autora toma como exemplo a clivagem histórica que marca a passagem do período pré-moderno para o moderno, que permite fazer a distinção entre o modelo de construção heterônomo e autônomo.

A teoria está baseada nas diferenças entre a Idade Média e Renascimento. O homem medieval, exemplo do modelo heterônomo, busca seu principio de construção nos moldes de tipos históricos e funcionalidades sociais conforme os parâmetros das sociedades feudais. O processo que o torna um indivíduo, sua identificação, busca aproxima-se o máximo possível de figuras típicas como o santo, o cavaleiro e o rei. Ao contrário, desde o principio da época moderna, que se inicia com o Renascimento, a tendência do indivíduo é buscar em sua própria experiência recursos para sua individualização.

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Bildungsroman 5, o modelo germânico de narrativa, é formado pelo relato do processo de formação de um ser humano, desde a situação primaria de inocência e inexperiência até a maturidade, fase na qual consegue viver em harmonia consigo e com o ambiente ao qual pertence, contexto europeu do final do século XVIII. A Europa, nesta fase evolutiva do modelo biográfico, é marcada pelo aumento do poder da burguesia nas esferas política, econômica e cultural. O princípio que rege o indivíduo impulsionado pela sociedade burguesa liberal é a de um ser autônomo e responsável, que integra as noções de concorrência, luta pela vida e busca alternativas. Tais características estão baseadas na relação de transformação do mundo pelo capital. Esse modelo de projeção propagado pelo capitalismo será a base da representação e das práticas biográficas modernas.

Daí se justifica o pensamento de Biuldung, entendido como o processo de formação com a finalidade de desempenho de atividade produtiva na sociedade, ser o modelo que impregna as práticas biográficas contemporâneas. A partir da retrospectiva, a relação dialogal estabelecida entre situação final de adequação e harmonia e a inicial de inexperiência, a relação de causa e efeito dá sentido de orientação e significação à didática do movimento de aprendizagem. Na era moderna, a narrativa de formação corresponde a um estágio sócio-histórico da relação entre o indivíduo e a sociedade, gerando o sentimento de identificação pessoal atrelado ao percurso profissional.

Até os anos 70 do século XX, as narrativas biográficas apresentavam um padrão com estrutura linear, contínua e orientada na qual a atividade profissional tinha a função de integração e organização. Esta fase responde à concepção de que o indivíduo tem um lugar na sociedade e que deve encontrá-lo através da experiência. No período posterior, denominado pós-modernidade, as sociedades ocidentais iniciaram o processo de transformação que alterou profundamente suas estruturas. O percurso biográfico e as atividades sociais são conduzidos por relações temporárias e reversíveis de inserção em subsistemas como os de classe social e gênero, que reduziu a capacidade de organizar uma narrativa de vida unificada.

A mudança da heteronímia para a autonomia, assim como a passagem do moderno ao pós-moderno, trazem consequências como a perda de parâmetros e hierarquia. O compêndio dessas transformações, unidos às descontinuidades dos percursos pessoais e profissionais contribuem para a diversidade de tipos biográficos na atualidade. Surgem novos e variados tipos de narrativa de representação biográfica às quais recorre o homem pós- moderno. Uma

5 Bildungsroman

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vez que são indissociáveis as experiências pessoais e as contribuições do meio social do qual somos portadores, a consciência reflexiva do indivíduo pós-moderno é resultado dessa tensão que resulta na construção da imagem de si e seu lugar na sociedade, a construção de figuras e valores desse mesmo mundo.

Sob a denominação de escritas do eu, diferentes tipos de textos como confissões, memórias, cartas e autobiografias são exemplos de narrativa biográfica que, além de socializar a experiência individual, refletem a necessidade tornar explícita a complexidade que envolve a criação da imagem que o sujeito tem de si e do seu entorno. Dessa forma, a autoficção se torna um meio para realizar o desejo de narrar experiências vividas, conflitos e inquietações sem ônus autobiográfico. Em La verdad de Agamenón(2006), o autor Javier Cercas faz o jogo de esconder e mostrar, questionando a figura do escritor e a posição do mesmo na produção cultural na pós- modernidade.

2.1 AUTOBIOGRAFIA, CONFISSÕES E MODERNIDADE

Em termos literários, a passagem da época moderna à pós-moderna significou a busca de novas formas literárias que demonstrassem as novas configurações sociais e culturais. As relações entre o homem e o mundo, a natureza crítica da ficção e os elementos a ela vinculados se converteram em solo fértil para narrativas que mesclam realidade e ficção na construção de novas subjetividades. A autoficção constitui uma estratégia literária capaz de sugerir a identificação irônica do autor com o narrador, transgredir a autobiografia e a referencialidade do nome próprio, uma vez que imita e subverte o pacto autobiográfico proposto por Philippe Lejeune (1975). Por se tratar de uma estratégia relativamente recente, os teóricos discutem ainda se a autoficção seria um gênero autônomo ou uma categoria em formação.

Independente da concepção adotada, é importante ressaltar que proposta autoficcional reforça a ideia da fragilidade identitária e a produtividade da confusão autor/narrador/protagonista. Seu centro de discussão é a confusão entre a pessoa real e o personagem escritor, a figura pública. A autoficção induz a reflexão sobre os limites entre o referente e sua representação literária, em outras palavras, ficção e realidade.

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estabelecimento do pacto entre autor e leitor, recuperação do passado e a estruturação do eu. Todos esses estudos buscam apoio em ciências como a história, antropologia, psicologia e filosofia para desenvolver sua argumentação e garantir sua validade. Por isso, convém comentar brevemente as principais propostas que tentam responder às indagações acerca desse tipo de escrita e que consideramos pertinentes a nossa análise. Em seguida, vamos observar a teoria de Lejeune por ser aquela o ambiente propício para o desenvolvimento da autoficção.

O primeiro grande modelo de obra autobiográfica surge na Idade Média, século IV, com a obra Confissões (AD 397 ou AD 398) de Santo Agostinho. Embora teóricos não tenham chegado a um consenso sobre o objetivo do escrito ou a existência de um elemento unificador, é possível perceber diversos temas conectados entre si através de toda a obra. A finalidade original poderia ser descrever a conversão de Agostinho do maniqueísmo ao cristianismo católico. Outra teoria aponta para a possibilidade da obra ser a breve história das origens do monacato africano. Entretanto, há aqueles que defendam com a razão o reconhecimento da atuação da graça divinal na salvação alma humana e, com isso, a utilização de episódio da própria vida para ilustrar a postura teológica.6

Confissões é amplamente estudada por destacar as complexas relações entre o indivíduo e a sociedade, demasiado problemática ainda hoje, mesmo que o interesse se estenda somente ao reconhecimento de sua vida ilustre em uma antropologia teológica que não oferece a um leitor mais curioso informações biográficas bastante relevantes. Adquire simbolismo porque seu conteúdo expõe a eterna disputa entre a vida terrena e a espiritualizada, a constituição interior do ser humano e a constituição externa da sociedade. Ainda que não proporcione uma autobiografia na acepção contemporânea da palavra, Santo Agostinho contempla pontos fundamentais que serviram de base para o desenvolvimento da autobiografia como gênero literário.

Antes de comentar as teorias sobre a autobiografia vamos tentar localizá-las dentro de uma linha evolutiva que compõe a palavra. O empenho em estabelecer traços constitutivos da autobiografia faz com que muitos autores se dediquem ao seu estudo. Assim, seus pontos de vista e, consequentemente, suas conclusões são diferentes quanto aos problemas levantados pelo gênero. No ensaio Problemas teóricos de la autobiografia, como aponta a postura crítica de Loureiro (1991), são variados os recursos aos quais recorrem os teóricos para justificar a

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Imagem

Ilustração 1 – Capa do livro “ La Verdade de Agamenón ”
Ilustração  2 – Capa do livro La Verdad de Agamenón

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