543 Ibd., p.361 544 Ibd.,p.359 545 Ibd.,p.361 546 Ibd.,p.362 547 Ibd. ,pp. 381/388 548 Ibd., pp.402/414
na avaliação do real, ou seja para o aparecimento de uma mentalidade quantitativa, emergente dentro de um paradigma ainda em grande medida qualitativo. Como refre Ana Paula Avelar,«A medida, a necessidade de precisão, é algo que atravessa e se
torna premente no século XVI.»549
Segundo A. Marques de Almeida esta quantificação foi possível graças à adopção do sistema árabe de notação numérica, a partir dos séc. XIV/ XV (com resistências porém do velho sistema latino até bem mais tarde) no contexto da vida prática do comércio e navegação, possibilitando uma nova linguagem de descrição do real e do material. Mas esta quantificação não implica uma matematização, nível mais complexo e abstracto de descrição do real (de ocorrência mais tardia com as mudanças epistmológicas do séc. XVII), mas, segundo o mesmo autor, apenas uma
aritmetização do real 550, suficiente para suprir a necessidade de uma nova forma de
descrição da realidade aproximativa às suas medidas e proporções. Com efeito o qualitativo e o quantitativo coexistem ainda na descrição do real, interpenetrando-se.
Todavia, como sublinha V. M. Godinho, «Mas se a formação de uma atitude quantitativista, em campos restritos embora, começa a alterar a concepção do universo e a maneira de viver dos homens, no qualitativo a mudança não é de menor
alcance: trata-se da conquista da precisão descritiva e narrativa.» 551
Esta preocupação com a medida e a precisão denotam-se nas descrições que Álvares efectua do espaço, danatureza e doshabitantes da Etiópia. Tomemos como exemplo a descrição que nos faz das ruínas antigas de Aquaxumo:
«Esta pedra [das ruínas de Aquaxumo] é de comprido de sessenta e quatro côvados e de
largo seis, em as ilhargas têm três, muito direita e muito bem lavrada tôda feita em crastas de baixo até uma cabeça que faz como lua meada, (...) para o meio- dia.(...) E para que não digam como se podia tão alta pedra medir, já disse como era tôda em crastas, até o pé da meia lua. E
estas são de um compasso e aqueles que podíamos chegar medíamos e para estas lançávamos conta às outras e achámos sessenta côvados e à meia lua dávamos quatro, posto que ela fôsse de mais, assim fazem sessenta e quatro.»552
549 Ana Paula Avelar, Figurações da Alteridade na Cronística da Expansão, p.31
550A. Marques de Almeida, «Aritmetização do real na Sociedade Portuguesa-século XIV-XVII» in, Francisco Contente Domingues e Luís Filipe Barreto, op cit., pp. 153-165
551 V. Magalhães Godinho, op. cit., p.86 552 Álvares, op cit ,pp. 91/92
Descrevendo antigas pedras no mesmo local calcula que uma delas «(...)
passa de oitenta côvados e tem dez de largo (...)»; quanto às arcas antigas que se encontram nuns compartimentos subterrâneos estabelece para: «(...) cada uma de
quatro côvados em comprido e um e meio de largo e outro tanto de altura (...)»553. É igualmente exemplificativo a forma como descreve a Igreja de S. Salvador quando visita Lalibela554.
A preocupação com a notação precisa do espaço é patente, por exemplo na
configuração da campina onde está instalada a igreja de Macham Celacem: «(...) para a parte de cima será uma légua e para a outra parte duas e para outra
três e para outra parte, no baixo que é contra o Sul, serão quatro ou cinco
léguas.»555Mas a uniformização do sistema de medidas está ainda muito longe e «misturam-se(...) apreciações mais ou menos exactas,(...), com outras de características acentuadamente empíricas que, no entanto, visam ser precisas.»556, conjugando vários tipos de saberes práticos.
As dificuldades de aferição de medidas são resolvidas de diversas formas pelo autor: o circuito da igreja de Aba Pantaleão, em Aquaxumo «Não é mais de largueza do peitoril [muro que cerca a igreja] ao corpo da igreja que quanto três homens
juntos puderem andar por maõs.»557; na terra Abugima, em Angote, o mosteiro em Acate, construído numa gruta, «(...)Ante a porta desta casa está um muro de dez ou
doze braças de comprido e alto(...) e entre o muro e as portas do mosteiro (...) são
cinco braças (...)»558;outra igreja a duas jornadas da de Acate: «(...) tem uma grande e rica igreja em outra lapa, a qual lapa a meu juízo em ela caberão três grandes naus
com seus mastros e a entrada dela, não é mais que quanto poderão entrar dois carros com seus fueiros.»559. Como podemos constatar as referências oscilam entre padrões mais ou menos uniformizados e ainda muito assentes na medida humana e outros retirados do contexto náutico e militar. Tal é o caso do «tiro de besta» ou «tiro de espingarda» ; das medidas em «lanças»; utiliza-se também um espaço padronizado: o campo de jogo de mancal, por vezes também chamado malhão, uma
553 Ibd.,pp. 92 e 93
554 « (...) está só em uma roca talhada, é muito grande, tem no vão comprido duzentos palmos e de largo cento e vinte.
Tem cinco naves, em cada uma sete colunas de quadra, a grande quatro palmos e outro tanto têm as paredes da igreja. As colunas muito bem lavradas e arcos que descem , quantidade e grossura, de um palmo no baixo da abóbada (...)», Ibd.,p.134
555 Ibd.,p.165
556 Ana Paula Avelar, op cit.,p.41 557 Álvares, op cit.,p.96
558 Ibd.,p.128 559 Ibd.,p.129.
espécie de jogo da malha: «Há outra casa [entre as ruínas de Aquaxumo] que é mais larga e não tem mais que casa dianteira e uma câmara. Da porta de uma à porta da outra será um jogo de mancal (...)»560.
As distâncias entre as localidades serão da mesma forma medidas através de um processo empírico, ou seja o tempo levado a percorrê-las, como é patente nos exemplos seguintes: «(...) e a grandeza desta terra de Doba, será de comprido
grandes cinco jornadas(...)»561 ou «Será esta terra de Abugima de comprido seis dias
de caminho e de largo três.»562. A serra onde vivem os parentes do Preste «(...)
dizem ser redonda por cima andadura de quinze dias e parece-me que o será(...)»563.
A correlação com o sistema incipiente de medição de distâncias etíope, não deixa de ser notado pelo nosso autor:
« Nesta terra nem em todos os reinos do Preste João não há léguas e se preguntais quanto há dêste lugar a tal lugar dizem-nos:- Se partirdes pela manhã quando sair o sol, chegareis quando o sol fôr em tal lugar e se andardes pouco chegareis lá quando encerrarem as vacas à noite; e, se é longe ,dizem:- Chegareis em um sambete, que é uma semana, e, assim , assinam segundo as distâncias. E porque eu disse que de Baruá a Barra haveria três léguas e meia até quatro, isto é, ao nosso parecer (...),e, nós as andámos depois por muitas vezes e partíamos de um e íamos jantar ao outro e negociávamos e tornávamos donde partíramos com sol e os da terra contam isto por andadura de um dia, porque caminham muito pouco.»564
A preponderância assumida pelo quantitativo no quotidiano quinhentista é patente na preocupação da tradução de certas realidades em números: «Eu sempre ouvi dizer que havia neste mosteiro [de Bisão] três mil frades e porque eu muito o
duvidava, vim aí ter uma festa de Nossa Senhora de Agôsto para ver se se ajuntariam. (...). A meu juízo os frades não passariam de trezentos e os demais mui velhos.»565
Com efeito torna-se comum entre os viajantes coevos a enumeração de listas
de números e dados566. Estes são ainda meramente aproximativos, no entanto,
560 Ibd., p.93 561 Ibd.,p.113 562 Ibd.,p.127 563 Ibd.,p.153 564 Ibd, p. 51 565 Ibd., p.41
566 Vide, Antoni Maczak, «Renaissance Travellers’ power of measuring» in, Voyager à la Renaissance, Colloque de Tours 1983, pp.245/253
Álvares tem em conta a sua procedência e verosimilhança567, pessoalmente testada como acabámos de ver.
Uma nova mentalidade em relação ao económico transparece na tentativa, quiçá um pouco confusa, de estabelecimento de equivalências e preços entre os sistemas conhecidos: «Em todos os reinos do Preste João não corre moeda, senão ouro a pêso e o principal pêso se chama ouquia e o que é uma onça faz em pêso dez cruzados e por miúdo meia ouquia e daí doze o drame e dez drames fazem uma
ouquia.»568Noutra passagem P.e Francisco ensaia uma tentativa de estabelecer o
câmbio dos valores etíopes:
«Neste lugar onde se colhe êste sal [que serve como medida de valor e troca] dizem que valem cento e vinte, cento e trinta pedras o drame e o drame (como já disse) vale trezentos reais segundo nosso estimar. E logo em uma feira que está em nossa estrada[Corcora] (...), que será uma jornada , onde se o sal tira, já vale menos cinco, seis pedras, e aasim vai diminuindo de feira em feira, Quando chega em côrte vale seis, sete pedras o drame. Eu as vi já cinco o drame quando é inverno. É o sal muito barato onde se tira e muito caro na côrte, porque não corre caminho.»569 Também os tributos pagos ao são objecto de escrutínio do clérigo: as colchas ou basutos «(...) são de preço o que menos vale, não desce de ouquia e valem dois, três, quatro até cinco ouquias e mais trinta mil panos de algodão de pouca valia que valem dois um drame e à vezes menos. E mais diziam que traziam trinta mil ouquias
de ouro; já se sabe que uma ouquia pesa onze cruzados.»570No reino de Angote tenta
estabelecer uma correlação entre uma espécie de pás de ferro que usam como meio de troca nessa região e o cruzado português, a moeda árabe (o drame) e as já referidas pedras de sal etíopes571; o roubo de que foram vítimas os portugueses no
arraial do Preste é estimado em duzentos cruzados572.
O quantitativo estende-se também à noção de tempo, que passa a ser medido, cronometrado, impondo-se tanto o tempo astronómico, abstracto, necessário para a
567«(...) quanto ao número[de clérigos ordenados numa cerimónia] que nomeei que foram dois mil ,
trezentos e cinquenta e sete, eu os não contei, mas preguntei a quem tinha o cargo e êle me disse êste número e certo me parece que seria verdadeiro.»,Ibd.,p.260
568 Ibd., p.108 568 Ibd., p.331
571 Ibd., p.127 572 Ibd., p.205
navegação, como o tempo marcado pelo desenrolar do dia, ou marcado pelos serviços religiosos, adaptando-se também ele às necessidades da vida prática. Isto, segundo as palavras de Ana Paula Avelar, porque «Tendo como um dos propósitos da narrativa o contar o que aconteceu, é essencial localizar o registo, encontrar o modo como o presente e o passado se dispuseram, assinalar os dias, os meses, e os anos. Estas são, a par do fluir cíclico das estações, as unidades naturais. Denota-se
um cuidado neste registo.» 573
A precisão na localização temporal estende-se mesmo ao precisar das horas, embora mesclado frequentemente com dados do calendário litúrgico. Encontramos este tipo de notações de tempo em Francisco Álvares. Logo no início da sua narrativa começa-nos por referir: «(...) chegámos à dita ilha de Maçuá segunda feira das
oitavas da Páscoa, 7 dias do mês de Abril de 1520 (...)»574. A notação dos dias e
meses permite-nos acompanhar cronologicamente a progressão da embaixada em direcção à corte do Preste e a sua estadia inicial. Como já vimos, a narração dos seis anos que passa em terras etíopes não será tão detalhada, perdendo-se a forma de entradas diárias, mas é retomada no final da narração, quando da partida. Também a segunda parte da obra tem numerosas e precisas notações temporais, permitindo acompanhar o regresso da expedição ao reino e à presença do rei.
Por vezes são mesmo dadas referências aproximadas de horas: «Á quarta feira, primeiro dia do mês de Novembro, uma hora ou duas andadas da noite, nos
mandou chamar o Preste por um pagem.»575 ou «Nós jazendo dormindo em nossa
tenda, pouco mais ou menos meia-noite, ouvimos grande trapala de mulas e gente
que passava junto de nós (...)»576, recorrendo o autor frequentemente às horas
litúrgicas, como as “horas de vésperas“. Álvares utiliza igualmente o calendário litúrgico para apoiar a referenciação precisa do tempo, com expressões como «um
Sábado antes da Ascensão»; o dia da Santa Cruz de Maio ou de Santa Catarina577. No
entanto, e como observa Antoni Maczak, «The age still had very little experience with quantifications and not many travellers had personal experience with counting and evaluating figures.» 578 Com efeito as dificuldades encontradas no uso de uma correcta quantificação e meios de a avaliar são consideráveis, tendo em conta, por