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658 Vide, História Crítica da Literatura Portuguesa:Maneirismo e Barroco, Carlos Reis (dir,), Vol. III, Verbo, 2001, ; Ana Isabel Buescu, D. JoãoIII, p. 249 e Fernanda Olival, D. Filipe II, p 174

659 Vide, José Eduardo Franco, op. cit.,pp. 127/132

660 Em relação às mentiras de Urreta Pais indigna-se: « (...) porq não he razão se permita q livro livro de tantas mintiras, e q tanto tocão na honra e fama de hua nação tão catholica como a portuguesa, de quem ainda os mouros ,e Turcos, com serem tão grandes seus inimigos affirmão ( como eu ouvi muitas vezes em sette anos q me tiverão cativo (...) q não há nação mais fiel e verdadeira q a Portuguesa(...)» e mais à frente afirmará também em resposta a Urreta acerca dos portugueses no ultramar:« (...) se há gente desapegada de sua patria, e q menos caso faça de climas estranhos a sua natureza he a Portuguesa. Porq nação cometeo senão a portuguesa navegaçoens tão compridas, tam arduas, e difficultosas(...)? Q gente descobrio terras tão remotas e afastadas das suas? Quem abrandou, e domesticou mais barbaras e incognitas naçoens q os Portugueses? E com sua assistencia, exemplo e doutrina seduzirão m.tas dellas a nossa S.ta fee Catholica.», Pais, op. cit.,Vol. I, p. 10 e Vol. II, pp. 275/276

Contudo, o modelo da escrita histórica da época deve obedecer a uma determinada forma de registo. Com efeito, a História, segue um modelo a nível da concepção e da escrita, segundo o princípio da imitatio. Como refere Ana Paula Avelar «O modo de escrever a História subscreve um modelo que parte do princípio humanista da mimesis clássica. A ars historica teria a sua génese a partir da definição aristotélica dos géneros elaborada na Poética e da distinção entre Poesia e História

(...)»661, em que a última se remete para o que sucedeu no passado. Quanto ao estilo

«(...)subscreve a eloquência no seu registo. A arte da História está indissoluvelmente

ligada à arte retórica; afinal ambas procuram demonstrar e encantar.»662 Ora a

retórica é um dos elementos decisivos do ensino jesuíta, dada a importância das

«técnicas de argumentação e domínio da palavra.»663; além do mais estamos numa

época em que, se a poética ainda faz sentir a sua influência, com o seu ideal de equilíbrio e clareza, as ideias de engenho e arte, na criação literária como exemplo de virtuosismo técnico, para edificação e recriação, se começam a impor.664 Vigora o gosto pela vasta síntese histórica, plena de demonstrações de erudição num estilo

elaborado 665. Como refere Ivo Carneiro de Sousa, apropósito da obra mais tardia de

Baltasar Teles: «Esta estrutura oferece um modelo de narrativa

histórica(...)largamente esgotada num problema de compilação literariamente atractiva e competente das verdadeiras fontes(...)»666.

Pais, pelo contrário, tem um estilo simples, directo e despretencioso, afastado do artificialismo que se imporá ao gosto da época. Mas, como afirma Hernâni

Cidade667o seu desempenho nas longínquas missões e as incumbências práticas

podem ter apelado a um estilo mais sóbrio e natural, m que a necessidade de transmitir uma realidade diferente produziu uma escrita minuciosa e concreta, “chã”. Além do mais, o registo cuidadoso e exaustivo, a preocupação de ilustrar, de dar a conhecer, continuando a tradição de Quinhentos, sobrepõem-se aos cuidados de estilo. Assim, a informação e descrição do desconhecido é de tal forma empolgante

661 Ana Paula Avelar, Figurações da Alteridade na Cronística da Expansão, p.26 662 Ana Paula Avelar, op. cit.,p.344

663 Maria Lucília Gonçaloves Pires e José Adriano de Carvalho, História Crítica da Literatura Portuguesa:

Maneirismo e Barroco, Carlos Reis(dir.), Vol. III, Lisboa, Verbo, 2001, p.17

664 Ibd.,p.21

665 Vide,António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, 6ª ed., Porto, Porto Editora, s.d., p. 419

666 Ivo Carneiro de Sousa, A Crónica como Missão-A História da Etiópia-a-Alta ou Preste João do Padre Baltasar

Teles (1660), Lisboa, Granito, 1998, p.127

que dispensa os artificialismos formais que outros géneros cultivarão nesta

época668.Sob este ponto de vista talvez se possa interpretar a rejeição ou indiferença

dos seus superiores perante a obra de Pais e as várias críticas ao estilo utilizado que lhe foram feitas no decorrer do o século XVII.

Com efeito a preocupaçãp de Pêro Pais é a transmissão da informação de modo objectivo. Predomina no seu discurso escrito na pessoa do autor (embora utilize bastantes vezes o pronome “nós”, englobando os seus companheiros de missão) que narra e descreve as suas experiências e o que vê, assumindo uma presença autodiegética; por vezes assume as funções de narrador heterodiegético ao relatar outros acontecimentos ou histórias a que teve acesso.

A utilização do discurso directo é frequente, conferindo vivacidade à narrativa, assim como a transcrição de diálogos, especialmente nas suas entrevistas com o Imperador. Outro meio de amenizar o discurso, denso de factos, episódios e descrições, é a interpelação ao leitor. Ou seja, Pais escreve com a preocupação de ir ao encontro de um possível leitor. Por isso refere em várias passagens:«(...) e por aqui vai contando tantas cousas q se ouverão de referir, fora (...) cansar ao leitor com q he muito alheio e muy diferente do q em Ethipia se usa.»669 ou apelando à cumplicidade do leitor como neste exemplo a propósito da conversão ao catolicismo de Seltân Çaguêd:«(...) o q tenho por certo folgará de ver o leitor, ainda q seja comprido; porq demais de ser gostosa historia, achará não pequena occasião de

louvar a Nosso Snor pellas merces grandes, q fez a este Emperador(...)»670.

A resposta ao frade de Valência, para lá da correcção e do desmentido, é frequentemente a ironia e o riso. O recurso à ironia é utilizado para repudiar as fantasias de Urreta, no sentido de as desacreditar por tão fantasista que não merecem outra recepção que não seja a incredulidade e o sarcasmo, como podemos constatar nos seguintes comentários: acerca das fabulosas riquezas em pedrarias, «(...) se não quiser alguem dizer q estas pedras tem a propriedade dos Anjos q não

occupão lugar; o q ainda q se não possa verificar de cousas corporais, facilmente concederei eu, q estas não occupaão lugar, pois na verdade não são mais q

imaginarias e fabulosas»671; acerca do rio Marâb, que Urreta chama Negro, e entre

668 Idem, A Literatura Portuguesa e a Expansão Ultramarina, Vol. II, Séculos XVII e XVIII, Coimbra, Arménio Amado, 1964, p.147

669 Pais, op cit.,Vol I, p.108 670 Ibd.,Vol.II,p.30 671 Ibd.,Vo. I, p. 90

muitas imprecisões, a nível geográfico, o dominicano atribui-lhe grande riqueza em ouro e pedras preciosas, pérolas e âmbar, ao que comenta Pais: «(...) não se acha nelle ouro nenhu; nem os Robis, Zafiras; Esmeraldas e Topazios m.to finos, q diz,

antes topadas m.to finas; porq não faltão calhaus q quebrem os pees dos q se descuidão ao passar, q não he tão grande rio q se não passe a pee ainda no Inverno.»672

Pela narração de Pais perpassam inúmeros momentos de convívio na Corte em que o Urreta e suas efabulações provocam o riso do Imperador e dignitários etíopes e é claro do próprio Pais. São dignas de nota pelo seu ridículo, as efabulações acerca dos animais: quer a descrição incrível dos hábitos dos gatos de algalia como a pretensa caçada ao rinoceronte com o auxílio de uma macaca; quer alusão ao fabuloso pássaro do paraíso ou a história das formigas garimpeiras de tamanho

descomunal673, perante a qual«(...) não pode o Emperador conterse, quando lho

contei, senão q, rompendo por toda sua mesura e gravidade, rio bom pedaço, e festejou muito a patranha(...)»674.

Para a sua descrição da sociedade, natureza e história etíope, Pais procura um critério de veracidade que garanta o valor das suas informações, ou por outras

palavras, a instauração de uma nova autoridade face à desmistificação de Urreta675. A

estratégia da escrita de Pais não se afasta muito da utilizada por Álvares, aproximadamente um século atrás: a experiência pessoal como garante de veracidade e a recolha de dados junto de testemunhos credíveis.

Logo no início da sua obra, Pais apresenta-nos o seu programa e método:«(...) no principal falarei de vista e experiência e não por informações (...); e no demais as

tomarei das pessoas mais importantes deste Imperio; e em tudo o que escrever, ora toque aos Portugueses, ora aos de Ethiopia falarei desinteressadamente co clareza e

sem encarecimentos; (...)».676

672 Ibd.,pp.224/225. Podemos destacar ainda outra passagem: « Cousa muy maravilhosa q demais de tão grande multidão de ouro seja tal q tijjolos de tres dedos de grosso se dobre e enrole, como se fora massa; nem nos houvera de ser de menor admiração, se nos fora concedido entrar naquella salla das pedras preciosas(...).Mas sobretudo ouveramos de ficar atonitos, e pasmados, se nos alevantarão aquelle tablon de fino ouro, com q está cuberto o penhasco em q a industriosa natureza, desocupandose das obrigaçoens forçosas, se esmerou tanto, q pos nelle juntas todas as pedras preciosas, q por diversas partes do mundo costuma criar repartidas.», Ibd., pp. 89/90

673 Ibd., pp.200/202, 207 e 240 674 Ibd.,p.240

675 Isabel Boavida, op cit.,p. 187 676 Pêro Pais, op cit., Vol. I, p.11

Assim o seu testemunho pessoal, o facto de ter testemunhado a realidade e a sua longevidade na missão etíope (18 ou 19 anos), constituem uma base para essa autoridade assumida.Como nos refere Pais«(...) não há cousa nenhua q [Urreta] diga co a verdade do q quá se passa como eu tenho visto em 18 annos, q há q entrei em

este Imperio, e o mais deste tempo gastei na Corte;(...)»677.O testemunho presencial e repetido é garante de veracidade, mesmo perante, o que pela sua estranheza, parece incrível: «Sobre ella [lagoa de Dambiâ] vi deçer m.tas vezes das nuvens mangas como redemoinho e levantavão tanta agoa (...) e co tanta furia q, se o não vira, não o

pudera crer;(...)»678.

Também as informações que recolhe têm subjacente uma preocupação de credibilidade. O P. Pais recolhe dados junto a personagens cujo conhecimento das realidades em questão, difícilmente pode ser posta em causa, tanto pelo seu cargo ou sua longevidade, como pela experiência em determinada situação. Movimentando-se na Corte, tem aí um precioso terreno de prospecção: os familiares do Imperador, os

Grandes da Corte, os altos oficiais e o próprio Imperador, como o nosso jesuíta não deixa de sublinhar:«(...) segundo a informação q me derão os Principes (...), e outros

senhores da Corte e o Emperador Seltân Çaguêd, a que, pera mais me çertificar, por ter mais confiança pera fallar co elle, lhe perguntei de proposito as cousas principais, dizendo q as queria escrever; (...)»679.

O P. Pais salienta particularmente as personagens de provecta idade referindo numerosas informações de frades muito velhos (perto dos sessenta ou setenta anos ou até oitenta anos); socorre-se ainda de informações provenientes do povo, não descurando os testemunhos dos descendentes dos portugueses, que formam o núcleo do seu “rebanho” católico, e que lhe relatam factos e reminiscências ouvidas a seus pais. Também entre estes os anciãos são uma fonte de eleição pois podem aferir dados coevos e relatos do passado. Entre eles Pais distingue, em várias passagens, o capitão dos portugueses, João Gabriel, homem que alia a provecta idade à ilustração e ao posicionamento na Corte: «(...)o Capitão, (...)e se chama Ioão Gabriel, momem de muito ser, me disse q sendo pequeno, estive 3 annos continuos naquelle mosteiro aprendendo os livros de Ethiopia, e q nunca vira tal cousa, nem atee agora q he de idade 70 annos ouvira falar nella a ninguem, com andar ordinariamente no paço dos

677 Ibd.,p.157

678 Ibd.,p. 235 679 Ibd.,p.100

Emperadores(...)»680.Também é igualmente referido o veneziano João António, residente na Etiópia à largos anos681.

A estratégia de confirmação das suas inquirações está bem patente nesta passagem: «(...)tudo por informação de Erâz Cela Christôs irmão do Emperador e

do thesoureiro, q não me avião de enganar, dizendo menos do q era; porq demais de serem homens tão graves e de grande primor, se confessão comigo, e lhes declarei q lho perguntava pera o escrever.»682. Pais repete ao longo da sua História, por oposição às mintiras e patranhas de Luís de Urreta, a preocupação em se certificar

mais, para mais se enteirar ou pera averiguar esta verdade, sublinhando a

diligencia grande q fiz pera tirar em limpo certos factos, recorrendo a pessoas de

vista e fidedignas ou a homens de muito crédito.

Frequentemente o seu conhecimento e esses testemunhos, são por vezes, a única fonte que o padre tem à mão para redigir a sua obra. Por exemplo em relação às histórias dos imperadores Za Denguil e Jacob, mortos prematuramente, afirma,«(...) não poderei referir aqui mais q o q me contarão alguas pessoas grandes,

q continuarão sempre seu paço, e o q eu passei cõ elles(...)»683. O relato da conversão

do Imperador ao catolicismo também revela o testemunho directo do P. Pais, que estando na Corte, teria presenciado os acontecimentos, que relata, reproduzindo os

discursos do Imperador e os diálogo que mantém com os seus opositores684.

Para os assuntos etíopes, Pais recorre às fontes que encontra no local, ou seja a velhas crónicas e livros religiosos abexins. Como afirma Hervé Pennec, as competências linguísticas adquiridas pelos Padres da Companhia, permitem a recuperação dos registos históricos locais e sua utilização e divulgação na Europa, na qual o P.e Pais se revela pioneiro685. Por outro lado, o que está escrito pode ser confrontado e cotejado com outras informações, constituindo um garante de verdade. Assim, Pais inicia a sua obra precisamente com a história dos imperadores etíopes e sua linhagem, que se reporta à lenda bíblica da rainha de Sabá e de Salomão. Para tal socorre-se de um velho texto local: «Atee aqui são palavras de hu