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840 Ibd.,p. 15 841 Vide Cap. I,

Em relação ao reino de Amharâ e a propósito da célebre serra onde era tradição guardar os familiares do Imperador, Guixêm Ambâ, ( e que Álvares tinha localizado no reino de Angote) afirma Pais: «Está no limite de hum reyno q chamão de Amharâ, q antigamente era o meo do Imperio, mas agore he quasi o estremo pera a banda do sul; porq huns gentios, q chamão Galas, forão tomando por aquella parte

muito grandes terras poucos tempos há(...)»843. Quanto ao reino de Tigré, situa-o na

Província, não mencionada na lista, de Tamben. Desfaz a ideia de Álvares de que os territórios do chamado Barnagais constituissem um reino só, especificando a extensão de Tigré:

«(...) as terras que governa Tigré Mohôn [o senhor do reino de Tigré] não são reyno, senão hua çerta parte do reyno de Tigré, mas são terras largas(...); e se por Barnagasso quer [Álvares] dizer Bahâr Nagâx (...) este governa outras terras do reyno de Tigré da banda do Mar Roxo q chegão perto de Arquico(...)»844

Também confirma a localização do núcleo histórico da Etiópia, à volta da antiga cidade de Agçum, nesse reino que se situa perto da costa. O reino interior de Dambiâ assume no relato de Pais, considerável importância. Este reino separado a sul pela lagoa de Dambiâ, do reino de Gojâm, que ficava«(...) muito dentro deste

Império(...)»845, havia-se tornado a região preferida para o assento da corte no início

do século XVII. Também uma nova missão jesuíta se instalará na região846. Daí que

as deslocações do P.e Pais se situem essencialmente entre os reinos de Tigré, onde se localiza a casa inicial da missão, em Fremonâ, e Dambiâ, local onde reside habitualmente, junto da corte.

Na época de Pais as fronteiras do império etíope estão praticamente cercadas por potentados árabes e tribos gentias, nem sempre pacíficas. É um estado sitiado, com pouquíssimas saídas para o exterior e a braços com agitação interna e incursões inimigas que lhe cerceiam o território. A Levante «(...) ne ainda na costa do mar Roxo tem oje porto nenhu; q todos lhe tomarão os Turcos há mais de 60 annos (...)»847.

843 Ibd.,p.70

844 Ibd.,p. 220

845 Pais, op. cit.,Vol. I, p. 15 846 Vide, Cap. I

Contudo, a maior ameaça na época de Pêro Pais aos reinos limítrofes e à própria integridade territorial do império etíope é representada pelas tribos pagãs de pastores (os povos Oromo), que habitavam a sul do território etíope, e cobiçam os férteis planaltos abexins. No século XVII o seu avanço para norte é imparável, assolando vastas áreas pertencentes ao Império. Referências a estas tribos nómadas,

denominadas Galâs por Pêro Pais848, aparecem com frequência ao longo de toda a

obra, a propósito dos assaltos e incursões em várias províncias do Império. Assim, afirma o autor: «(...) ainda q seus antecessores [do Imperador] possuião todos estes reynos e provincias de alguns delles senhoreava elle agora pouco, por terem tomado

a mor parte huns gentios q chamão Gâla(...)»849. E mais à frente especifica a ameaça

dos Gâlas aos limites geográficos do império:«(...) tres ou quatro reynos e alguas Provincias as milhores q o Emperador tinha, e oje são [os Gâlas] sñores absollutos

delles, sem aver quem os possa tirar de suas mãos; (...)»850. Estes são uma ameaça

no reino de Nareâ, como nos é relatado a propósito da viagem do P.e António Fernandes para sul; atacam repetidas vezes o reino de Gojâm; atacam as populações

de Gafates, Agôus e de Damotes nos limites a poente do Império851. Os seus avanços

repercutem-se até aos reinos de Amhâra852 e de Begmedêr853 e a este estão nos

limites do reino de Angôt; ocupam todo o reino de Ôye854 e alcançam mesmo a

região de Tigrei855.

Assim e em comparação com a descrição de Álvares, encontramos um novo centro geográfico de poder no interior do território, a província de Dambiâ; no entanto deparamos com uma idêntica menção a reinos centrais do Império etíope, assim como aos reinos vizinhos seus tributários, com os quais a convivência nem sempre parece ser pacífica. De facto, a Levante e ao longo da costa do Mar Vermelho, os estados muçulmanos e a presença turca, consolidaram-se na época de

848 «(...)em tempo do Emperador Onâg Çaguêd, vierão da banda do sul huns gentios pretos, q chamarão Gâlas, pastores de vaccas, gente muy cruel e fera(...)», Ibd.,Vol. I,p.22

849 Ibd., p.15 850 Ibd.,p. 287

851 « Vierão mts. Gentios Gâlas de hua Provincia q se chama Bizanô e passando o rio Nilo entrarão no reyno de Gojâm e derão em huas terras de Gentios Agôus (...)matando mts. e fazendo extraordinárias crueldades(...,)»,

ibd.,Vol. III, p. 254

852 A este propósito refere autor:«(...) desejei mt. Hir lá [ ao reino de Amharâ], e o ouvera de fazer(...), se o perigos dos ladroens não fora tão grande, por causa dos Gâlas, q por aquella parte fazem guerra.», ibd.,Vol. I, p. 65

853« No fim do inverno teve novas o Emp.or [Seltân Çaguêd] como se tinhão concertado entre si mtas casa de Gâlas pera darem em hu mesmo tempo em diversas terras; e q hu exercito mto grande hia pera o reyno de Tigrê; e os da Casa de Meraoâ vinhão a Begmedêr e os das casa de Itû, e Boren pera Gojâm(...)» ibd. Vol. III,p.124

854 Ibd.,Volo. I, p.288

855 «(...)porq m.tas vezes ainda agora em nosso tempo vierão Gâlas gentios matando quantos achavão cõ estraordinarias crueldades como sempre fazem, e destruindo a terra(...). depois vierão mais de tres mil (...), e entrarão muito seguros pello reyno de Tigrê(...)», ibd.,Vol. II, p.326

Pais; a norte e a poente encontram-se tribos gentias, nalguns casos relativamente assimiladas; a sul, a irresistível progressão dos Oromo para norte, esboroa os antigos limites do império abexim, cuja extensão, na época de Álvares parecia ser, senão maior, pelo menos mais segura, a despeito da sempre latente ameaça moura a oriente.

2.2 – Da Natureza

«(...) por serras e matos endiabrados(...)», Francisco Álvares, Verdadeira Informação... «(...) fomos nosso caminho por muitas fragas(...)entre as quais passávamos caminhos muito estreitos, e maus e perigosos passos, assim de uma como da outra parte, rocha talhada, cousa para se não crer.», Ibidem

« (...) em nenhua parte vi nem ouvi dizer q ouvesse tantos animais, nem tão differentes sortes delles, como dizem q há em Ethiopia e eu em parte tenho visto; (...)», Pêro Pais,

História de Etiópia

As matrizes dos olhares dos nossos autores sobre a natureza pertencem ainda à cultura clássica e cristã, marcada pelas concepções do mundo e da natureza veiculadas por autores antigos como Aristóteles, Ptolomeu e Galeno e a própria Bíblia. Como refere Luís Filipe Barreto, a ontologia e epistmologia da época são determinadas pelo chamado paradigma «orgânico- qualitativo», onde o aristotelismo naturalista se concilia com a concepção organicista do mundo e com uma visão empírica, factual, e informativa dos exploradores e viajantes portugueses da época. Visão esta que pode criticar, corrigir e superar os dados antigos, mas não rompe com o antigo quadro de referências culturais856.

A forma de notação da natureza é pautada pela preocupação em descrever a

novidade, de forma a possibilitar o seu reconhecimento por parte do leitor, graças ao

sistema de semelhanças/diferenças estabelecidos com a realidade conhecida857. Mas,

856 Idem, «As Viagens Marítimas e a Nova Visão do Mundo e da Natureza» in, ibd.,pp. 86/87 e Idem, «A Herança dos Descobrimentos», pp.6/7

o deslumbramento e deleite ou espanto e estupefacção, face ao diferente, por vezes de dimensão incomensurável, também é uma características destas descrições, assim como a preocupação de apreciação prática e utilitária, mesclando-se o conhecimento da natureza com a avaliação da riqueza e potencialidades da terra.

Em relação ao espaço natural os tópicos abordados pelos autores centram-se na orografia e paisagem; no clima; nos recursos hídricos; na flora e fauna e ainda em frequentes referências à mineralogia, cobrindo no fundo a distinção clássica entre os três reinos da Natureza (o animal; o vegetal e o mineral/geológico), segundo a classificação clássica de Aristóteles e de Plínio.

Iniciando a nossa análise pela descrição da orografia e da paisagem etíope, estas são especialmente abundantes na obra do P. Francisco Álvares, dada a sua componente de itinerário terrestre, e a sua narrativa da progressão para o interior até à corte do monarca etíope. Desta forma são descritas as terras atravessadas, embora o autor não deixe de referir sempre que possível características de outras regiões, das quais toma conhecimento em segunda mão.

Ora a principal impressão que Álvares nos deixa da paisagem abexim é o carácter fortemente acidentado do seu relevo, em que se sucedem extensos planaltos e elevadas montanhas, com enormes desfiladeiros, abismos assustadores, passagens íngremes e vales fundos. A expedição do embaixador parte da campina de Arquico no reino de Tigrei junto ao mar, caminhando junto ao leito de ribeiras secas secas, mas depressa se encontram entre«serranias mui altas» de ambos os lados858. De facto logo no início do percurso somos informados de que a oito léguas de Arquico está situado numa serra muito alta o Mosteiro de Bisão. Para alcançá-lo refere o autor: «Partimos desta meijoada por muito mais fragosas terras e ribeiras que as do dia dantes e maiores arvoredos, nós a pé e as mulas diante vazias não podíamos caminhar. Os camelos bradavam, parecia que os tomava o pecado e a todos parecia

que nos metera ali Mateus para nos matar(...)»859.O caminho parece resumir-se,

como descreve o nosso autor, a «(...)mui bravas serras de montanha, subidas e descidas e mau caminho de pedras. (...) No dia seguinte tornámos a atravessar outra mui alta e bravíssima serra em a qual nem em mulas, nem a pé não podíamos caminhar.»860.