• Nenhum resultado encontrado

117 A de Magalhães Bastos, op cit., pp 285/

3- Missão na Etiópia: O empenhamento jesuíta no reino do Preste

Inicia-se no final do século XVI e início do XVII uma segunda fase de contactos com a Etiópia, centrados na questão religiosa.

Com efeito, o afastamento etíope da (considerada) verdadeira religião abre, porém, um novo campo de contactos: o da missionação. Os primeiros membros da Companhia de Jesus aportam na segunda metade do século XVI às costas da Abissínia para converter os hereges, tal como Couto já referira nas suas últimas

Décadas. Esta nova modalidade de contactos insere-se num novo paradigma, que determinará a produção da nossa segunda obra em análise, a História de Etiópia do padre jesuíta Pêro Pais.

137«Da origem, e principios dos Mogores, e Tartaros, e Provincias que possuíram (...) e de como entre elles se constituio a dignidade de Preste João, a que chamam das Indias: e de como se trespassou no Imperador da Ethiopia.» ,Diogo do Couto, Décadas da Ásia, Vols. X a XXIII, Lisboa , Régia Officina TYpographica, 1778/1788

138 «(...) apesar das sucessivas desilusóes, as cousas da Etiópia alimentaram consistentemente o interesse de numerosos autores europeus, que lhes foram dedicando sucessivos tratados monográficos ao longo das centúrias de Quinhentos e Seiscentos.», Rui Manuel Loureiro, op cit, pp. 90-91

Caracterizemos, pois, essa nova mundivisão que se instalara na Europa católica ao longo da segunda metade de Quinhentos. Com efeito à relativa abertura do início do século XVI, à euforia de circulação de ideias e informações do Humanismo e Descobertas e renovação cultural do Renascimento, apoiado pelo

círculo da Corte de D. Manuel I140 e dos primeiros anos do reinado de seu filho, D.

João III (monarca, que numa primeira fase, se assumirá como patrocinador de uma cultura “moderna”, encetando um programa cultural no sentido de um

acompanhamento da Europa141), o sul da Europa será marcado, a partir, grosso

modo, da segunda metade do século XVI, pela ruptura do bloco cristão romano com o norte da Europa reformista, ruptura essa iniciada com a dissidência luterana em 1520. Como refere António Rosa Mendes, cerca de 1552, os campos culturais e religiosos haviam-se extremado; a conciliação entre católicos romanos e reformistas

não seria possível142. Esta conjuntura é acompanhada pelo perigoso e imparável

avanço do império otomano a Oriente143.

Roma vê-se perante a necessidade de reunir as suas hostes e tentar uma solução eficaz para remediar a divisão: efectua assim um prolongado concílio em Trento para reforço da ortodoxia romana, em três fases temporais distintas entre 1545

e 1563, com empenhada participação do clero português144.

Neste contexto a contra-reforma é amplamente recebida e observada na Igreja portuguesa, com apoio incondicional da Coroa: a 12 de Dezembro de 1564, o jovem D. Sebastião, promulga os decretos do Concílio de Trento, terminado em 1563. O tribunal do Santo Ofício havia sido introduzido em Portugal por D. João III em 1536 e estando em funcionamento desde 1539; o seu Index (a primeira lista de obras manuscritas proibidas surgida em 1547; o rol dos livros impressos aparecceria em

140 Cf., Elisabeth Feist-Hirsch, Damião de Góis, 2ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, pp. 9-20, João Paulo Oliveira e Costa, D. Manuel I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005, pp.213-216 e ainda José Eduardo Franco, O

Mito dos Jesuítas, Vol. I, Lisboa, Gradiva, 2006, pp. 91/94

141 Vide Elisabeth Feist Hirsch, « O Humanismo em Portugal no reinado de D. João III » in , op. cit., pp.193-211 e Ana Isabel Buescu, D. João III, Lisboa Círculo de Leitores, 2005, pp.245-259

142 António Rosa Mendes, «A Vida Cultural» in,História de Portugal, José Mattoso (dir.), Vol. III, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p.403

143 O império turco Otomano avança no Mediterrâneo desde a queda de Constantinopla em 1453 ao mesmo tempo que se estende na Ásia: em 1516 toma o império mameluco do Egipto; em 1521, Solimão, o Magnífico conquista Belgrado e ocupa o Iémen; no ano seguinte toma Rodes e em 1525 Argel caí em seu poder; em 1526 o Rei Luís II da Hungria tomba em combate com os Turcos e Buda é tomada no ano seguinte; em 1529 estão às portas de Viena onde regressarão em 1532; em 1534 conquistam Bagdade e a Pérsia; em 1537 atacam Corfu e o Sul de Itália e em 38 tomam a porta do Mar Vermelho, Adém,; no mesmo ano é formada a Liga Católica contra os Turcos ; em 1541 atacam novamente Buda, enquanto as forças do Imperador Carlos V tentam opor-se-lhes no Mediterrâneo; em 1548 tomam Bassorá. , Ana Isabel Buescu « Cronologia » in,op. cit. pp.300/314

144 Vide, António Camões Gouveia, «O Portugal do Renascimento» in, Sociedade e Cultura portuguesa 2, Maria José Ferro Tavares ( coord. ), Lisboa, Universidade Aberta, 1990, p.64

1551) controlará a produção e distribuição cultural, dentro da estrita ortodoxia. Também no império se assiste ao reforço da instituição eclesiástica: em 1534 é criado o bispado de Goa, que engloba toda a África Oriental, a Índia e todas as terras a Oriente. Os estabelecimentos religiosos proliferam e a importância da estrutura religiosa no Oriente aumenta significativamente (Goa passa a arquidiocese em 1558 e as dioceses multiplicam-se; em 1572 o arcebispo de Goa recebe o título de primaz e patriarca das Índias).

A uniformização doutrinal, preparação do clero e difusão da fé nos “novos territórios“, compensando os crentes perdidos na Europa e completando o pressuposto do apostolado evangélico, tornam-se uma prioridade na Europa pós- tridentina, conjugando-se com a necessidade de reorganização e consolidação do império português, cuja extensão inviabiliza uma política continuada de conquista militar145.

Por outro lado, o ideal de cruzada e o proselitismo religioso sempre andaram de mãos dadas com a expansão política, militar ou comercial do império português. Aliás esta ligação da Igreja e do Estado é bem patente na instituição do “Padroado Régio“, segundo o qual, certos poderes de Roma são delegados na coroa portuguesa, entre eles a propagação da fé cristã146.

A uma coexistência relativamente tolerante com as religiões locais no início do século XVI segue-se, a partir de Trento, a imposição do credo católico e a sua estreita observância (a Inquisição é instaurada em Goa em 1560; verificavam-se medidas repressivas contra outras religiões já desde 1540), segundo o princípio de um reino, uma fé (cujos regio illius religio).

145 Segundo C. F. Boxer, « No fim do século XVI , os Portugueses tinham em grande parte abandonado as atitudes e mentalidades de conquistadores que os havia inspirado nas primeiras décadas da expansão na Ásia e encontravam-se fundamentalmente interessados no comércio pacífico e em conservarem o que já tinham conseguido.», C. R. Boxer,

op.cit.,p. 92

146 Situação institucionalizada pelas Bulas papais Romanus Pontifex, de Nicolau V e Inter coetera, de Calisto III, datadas respectivamente de 1455 e 1456, que concedem a jurisdição espiritual das terras descobertas à Ordem de Cristo, estreitamente ligada à família real. Regulamentadas pelas bulas Aeterni Regis clementi , 1481, e Dum fidei

constatiam, de Leão X, 1514 (sanciona a jurisdição régia). A Bula Eximiae devotionis, 1522 confirma as os direitos

da Ordem de Cristo, da qual, o rei é mestre. A ordem de Cristo será integradas na coroa através das Bulas Aequum

reputamus, de Paulo III, 1534, e Praeclara Charissimi, de 1551. Vide.Francisco Bethencourt, «Configurações do

Império» in História da Expansão Portuguesa, vol. I , Lisboa , Temas e Debates, 1988,pp.369-386 e Manuel Cadafaz de Matos, «Humanismo e evangelização no Oriente do século XVI» in Revista do ICALP, nº 7-8, 1987, pp. 1-32, [online]. Disponível em http://ww.institutocamjões.pt/cvc/buc/revisraicalp/humanismo.pdf (acesso em 04/01/06) e Hervé Pénnec, op cit., pp.81 -82

Com a nova ordem cristã tridentina, assiste-se ao advento da igreja militante, corporizada nas actividades de missionação das ordens religiosas, onde sobressaem

as da jovem Companhia de Jesus147.

Caracterizemo-la brevemente para que possamos situar a nossa segunda obra em análise. A postura organizada e activa da Sociedade de Jesus na defesa e propagação da fé, pondo a tónica na preparação dos seus membros e na catequização dos próprios católicos através do ensino e pregação, deverá ter contribuído para a sua aceitação na Europa pós-Trento. Tendo por objectivo a uniformização e coesão da igreja romana, esta nova ordem militante era mais do que bem vinda. A “Fórmula do Instituto“ de 1540, um manifesto que constituía a base da bula fundadora da Companhia, falava da “propagação da fé“ como sua obrigação-chave. Em 1550, esta

frase já se tornara “defesa e propagação da fé“.»148

A Companhia de Jesus instala-se rapidamente em Portugal, logo em 1540, tendo sido recomendada ao rei D. João III por Diogo de Gouveia sénior, principal do colégio de Santa Bárbara de Paris; este solicita ao Papa a autorização de entrada da Ordem no reino para a evangelização das conquistas portuguesas. De imediato, a Companhia de Jesus obtém uma posição privilegiada na corte portuguesa; mas deve

igualmente contemporizar com o poder secular, ao qual fica intimamente ligado149.

A sua acção evangelizadora fora da metrópole inicia-se com a chegada de um fervoroso Francisco Xavier a Goa em 1542; em 1549 é constituída a Província de Goa da Companhia. No início da década de 60 afirma-se a autonomia de Província de Goa face a Roma, na organização e distribuição do pessoal missionário no Oriente português, o que atesta a sua crescente importância .

A Companhia de Jesus, especialmente vocacionada para a evangelização, é-

o igualmente para o ensino, cujas instituições acaba por dominar no reino150. A sua

147 Esta era uma recente ordem religiosa, nascida da inspiração de Inácio de Loyola, cavaleiro espanhol, desejoso de defender o catolicismo. Depois da sua revelação estuda em Paris desde 1528, onde se cerca de um grupo de colegas. Num clima de crescente dissensão protestante, o pequeno grupo parte para Roma, onde reúne simpatias e em Setembro de 1540, a nova ordem religiosa, denominada Companhia de Jesus, é oficialmente reconhecida na bula Regimini militantis ecclesiae do Papa Paulo III. Vide, Jonathan Wright, Os Jesuítas..., Lisboa, Quetzal, 2005, p. 30 e José Eduardo Franco, op. cit.,p. 60

148 Jonathan Wright, op. cit., p. 34

149Cf., Hervé Pennec, op cit, pp.47-54 e José Eduardo Franco, op. cit., pp. 87/8

150 A preponderância jesuíta no ensino talvez se possa explicar através das simpatias dos conservadores de Paris (onde Loyola havia estudado) e da prática de estabelecimento de Colégios para a formação dos seus membros. Detendo já o Colégio de Santo Antão em Lisboa e do Espírito Santo em Évora (transformado em Universidade em 1559 pelo cardeal infante D. Henrique, ele próprio membro da ordem), o rei concede-lhes o Colégio das Artes de Coimbra em 1555. Do ponto de vista cultural, a grande inovação jesuíta parece ter sido a conjugação dos estudos clássicos, com a ortodoxia católica: «Haveria, pois, que lustrar a doutrina com o esmalte das boas letras. O escopo era conformar o “homem religioso“, munido da panóplia erudita que a

influência no campo da educação alargar-se-á a todo o Império, onde fundaram seminários e colégios, praticamente equivalentes ao ensino universitário. No quadro de conversão dos gentios, é fundada em Goa (1540) a Confraria da Santa Fé, cujo patrono era S. Paulo, que procede à construção de um colégio e seminário sob a direcção inicial dos franciscanos; mas, a partir de 1542, a sua direcção cabe aos

jesuítas, que tomam plena posse do colégio desde 1551, por acordo com o rei151.

A dinâmica cultural jesuíta é comprovada pela indubitável importância que o livro e a leitura assumem para os seus membros. A biblioteca oferecida por D. João III a Francisco Xavier aquando da sua partida para o Oriente ilustra bem esta faceta dos Jesuítas ,«(...) uma vez que os missionários eram, por excelência, os homens da “palavra” ou, melhor dizendo, do “discurso“, fosse este oral ou escrito,

manuscrito ou impresso.»152

O êxito da sua tarefa missionária pode explicar-se pela preparação, eficiência e motivação dos seus membros, além do interesse e apoio da monarquia portuguesa, como já atrás referimos. A Companhia tinha levado a sério as recomendações de Trento quanto à necessidade de formação intelectual nas suas fileiras. Segundo Rui Manuel Loureiro «Os missionários jesuítas (...)possuíam, regra geral, uma preparação cultural mais aprofundada, que lhes permitiu assumirem de

imediato um evidente protagonismo no ensino e na missionação.»153. Já

anteriormente C. R. Boxer afirmara: «(...) suspeito que, no conjunto, o padrão dos Jesuítas era mais elevado e que frequentemente, demonstravam maior espírito de

sacrifício do que os seus colegas de outras ordens (...)»154. Com efeito, os “soldados

de Deus“ da Companhia, internando-se em regiões longínquas, entre povos

desconhecidos, são os “homens de fronteira”155, essenciais na manutenção do