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CAPÍTULO 3 CONSTRUÇÃO DO QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO

3.4 As categorias de análise utilizadas no estudo do corpus

3.4.5 Éthos discursivo e embreantes de pessoa

De acordo com Grinshpun (2015, 261-270), no grande campo das Ciências Humanas e Sociais, o conceito de éthos é utilizado em dois principais domínios. Em Sociologia, essa categoria pode ser encontrada nos trabalhos de autores como Max Weber, Norbert Elias e Pierre Bourdieu. Nesse caso, o éthos é apreendido por meio do comportamento de um grupo. Em Análise do Discurso, o éthos é estudado a partir da tradição retórica, sendo considerado, primordialmente, um fenômeno individual.

No que diz respeito à tradição retórica, na Grécia antiga, destacava-se a representação de si como uma prática de influência. Essa perspectiva abarcava a prática oratória inscrita em situações públicas, examinando como um orador agia frente a seu público. Desse modo, o éthos era estudado como parte dos elementos da tríade aristotélica logos, éthos e páthos. Ao analisar uma prática oral dentro de um tribunal, por exemplo, centrava-se, respectivamente, a) nos argumentos válidos utilizados pelo orador; b) na projeção de sua imagem para inspirar confiança; c) nas emoções suscitadas no auditório.

Segundo Amossy (2010), Aristóteles defendia três aspectos na composição do éthos: phrónesis (prudência, competência), areté (sinceridade) e eúnoia (benevolência). Na análise realizada pela autora sobre essas características do éthos aristotélico, verificou-se que o que estava em jogo não era o orador ser, de fato, prudente, sincero ou benevolente, mas mostrar-se como tal. Essa abordagem de Aristóteles passou despercebida durante séculos, mas, finalmente, foi retomada por diferentes pesquisadores, como, por exemplo, Goffman, que influenciou a teoria do éthos nos estudos discursivos.

Segundo Amossy (2010), apesar de o foco dos estudos de Goffman serem os elementos extraverbais, a exploração da categoria “presentation de soi”, em termos interacionais, levando em consideração a construção identitária, forneceu material de suma importância para o estudo do éthos discursivo. Isso porque as propostas teórico- metodológicas desse autor não trataram apenas de uma abordagem sobre a identidade, mas fizeram emergir uma concepção contemporânea da identidade como construção da/na interação de um sujeito com outros, parcialmente condicionada por forças sociais. Esse foi um aspecto central para o surgimento da noção de éthos discursivo.

Grinshpun (2015, 261-270) ressalta que, no campo das Ciências da Linguagem, a noção de éthos foi reelaborada por Ducrot em 1984, a partir de uma perspectiva pragmático- linguística. A autora ressalta, contudo, que foi Maingueneau (1984; 1987) quem propôs o estudo dessa categoria de forma sistemática no quadro teórico-metodológico da AD. Constata ainda que foi a obra coletiva organizada por Amossy (1999) que consagrou definitivamente o retorno do éthos nas abordagens dessa disciplina.

A teoria do éthos discursivo na proposta de Maingueneau ultrapassa os estudos sociológicos e as propostas de analistas conversacionais, casos em que a análise era direcionada exclusivamente aos textos de interação face a face. Segundo Amossy (2010), o teórico francês mostrou a eficácia da categoria de éthos discursivo em todas as práticas do registro escrito oriundas de diversas cenas englobantes, como o domínio político, literário, publicitário etc. A construção da imagem de si passou a ser o centro dos discursos que circulavam no âmbito do espaço social. Logo, essa noção começou a ser estudada como um fenômeno sociodiscursivo unificado dentro de dimensões plurais, que vão do problema da eficácia à construção da identidade (AMOSSY, 2010, p. 15).

Laborde-Milaa (2015, p. 165-176) retomou a noção de éthos discursivo de Maingueneau41 para estudar as campanhas institucionais. Por instituição a autora entende toda coletividade socioprofissional que possa ser tomada como organização em diferentes esferas: empresas privadas, administração, organismo público, associação, partido político etc. Um dos aspectos relevantes apontados em sua pesquisa foi a classificação dos pronomes de 3ª e de 1ª pessoa (singular e plural). A partir do uso da 3ª pessoa, a organização pode falar de si mesma, utilizando seu nome e retomando-o de forma anafórica, o que gera um efeito de objetivação enunciativa. O uso de “nós” constitui a identidade da comunidade no momento da

41 Lembramos que, mais recentemente, o autor postula a existência de um éthos efetivo, subdividido em um

éthos pré-discursivo (a imagem que se tem do locutor antes mesmo que ele “abra a boca”) e um éthos discursivo,

que pode ser dito (nível do enunciado) ou mostrado (nível da enunciação). Para maiores detalhes, ver Maingueneau (2008c).

enunciação, promovendo um efeito de grupo. Por fim, para autora, o emprego da primeira pessoa do singular, “eu”, promove uma fala individual de um locutor autêntico, que constitui uma autoridade reconhecida por terceiros.

A partir desse trabalho, percebemos que a categoria de éthos discursivo teria um papel relevante na presente pesquisa. Por isso, articularemos essa categoria com os embreantes de pessoa em 4.7. Esse termo foi utilizado por Maingueneau (2016) para analisar pronomes como “nós”, “tu/você”, “eu”, de forma indissociável da cena enunciativa correspondente aos textos de um corpus. Nossa proposta de análise ainda encontrou forte respaldo nas duas citações seguintes, oriundas, respectivamente, do domínio da Análise do Discurso e do domínio das Relações Internacionais:

O pronome pessoal “nós” pode portar, segundo diferentes contextos, valores flutuantes que o transformam em um precioso vetor de indeterminação do ponto de vista da enunciação. O representante de um partido político em uma campanha eleitoral que proclama à tribuna de um encontro “nós temos um grande projeto para a França”, refere-se de uma só vez ao “nós” do aparelho do partido (“o Partido tem um grande projeto”) e ao “nós” que ele forma juntamente com a platéia de participantes do encontro (“todos nós que estamos aqui temos um grande projeto”). Os membros do público que participam do encontro têm a possibilidade de privilegiar a primeira interpretação (por exemplo, aqueles que vieram por curiosidade) ou a segunda (por exemplo, os que manifestam adesão ao partido e são seus fervorosos apoiadores)42 (KIEG-PLANQUE, 2014, p. 7).

(...) se alguém declara em termos de uma negociação multilateral: nós obtivemos um

bom resultado. Quem é esse nós? A França, a União Européia, o conjunto de

participantes?43 (FOUCHER, 2016, p. 22; grifos do original.).

Com isso, a própria estrutura da seção dedicada ao estudo do éthos discursivo foi moldada tendo em vista esses aspectos, o que direcionou a análise do éthos para a proposta (mais ampla) de Kerbrat-Orecchioni (2010), para quem o éthos pode caracterizar: a) um indivíduo que interage com outro indivíduo; b) uma coleção de indivíduos que partilha as mesmas normas comunicativas. Logo, de 4.7.1 a 4.7.4, nos dedicaremos ao exame dos casos de éthos coletivo e em 4.7.5 estudaremos particularmente o éthos individual do representante brasileiro, francês ou espanhol, a partir de embreantes de primeira pessoa do singular.

42 Tradução livre de: « Le pronom personnel ‘nous’ peut être porteur, selon les contextes, de valeurs fluctuantes

qui en font un précieux vecteur d'indétermination du point de vue de l’énonciation. Le représentant d’un parti politique en campagne électorale qui proclame à la tribune d’un meeting ‘Nous avons un grand projet pour la

France’, renvoi tout à la foi au ‘nous’ de l’appareil du parti (‘le Parti a un grand projet’), et au ‘nous’ qu’il forme

avec la foule des participants au meeting (‘nous tous ici, nous sommes porteurs d’un grand projet’). Les membres du public qui participent au rassemblement gardent la possibilité de privilégier la première interprétation (par exemple pour ceux qui sont venus en curieux) ou la seconde (par exemple pour les adhérents et fervents soutiens de ce parti) ».

43 Tradução livre de: « (...) si on déclare au terme d'une négociation multilatérale: nous avons obtenu un bon

Finalmente, recorremos a duas características que marcam o éthos discursivo na proposta de Maingueneau (2016). Para ele, em todo texto oral ou escrito, o ato de fala está marcado por um enunciador encarnado. Esse sujeito mostra, por meio de sua própria enunciação (sua maneira de dizer), a sua personalidade, o seu caráter (sua maneira de ser). O enunciador torna-se, assim, o fiador (garant) dessa imagem. Ao termo caráter são reservadas todas as feições psicológicas manifestadas textualmente para que o leitor interprete a personalidade projetada pelo fiador. Além dessa dimensão, há a corporalidade, a partir da qual são apreendidas as manifestações físicas dessa projeção enunciativa: movimentos do corpo, maneiras de se vestir, de andar etc. Ressalte-se que essas características não se manifestam apenas em textos orais, mas também em textos escritos, como aqueles que analisaremos (ver, especialmente, a seção 4.8.).