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CAPÍTULO 1 – DELIMITANDO O OBJETO: POR QUE BRASIL, ESPANHA E

1.4 A construção do corpus a partir das intervenções dos representantes permanentes do Brasil, da

Após a exposição, de forma mais detalhada, das razões que nos levaram a escolher Brasil, Espanha e França, passaremos a explicitar o processo de construção do corpus da presente pesquisa. O primeiro ponto de partida para a seleção dos textos foi levar em conta a proposta de estudo sobre os discursos institucionais. De acordo com Krieg-Planque (2014, p. 32), “dentro de toda organização, existem pessoas e/ou serviços que possuem a tarefa de contribuir para a produção de discursos, em particular à luz de regularidade e de normas”11.

Nesse sentido, a primeira restrição para a escolha das intervenções que constituem o corpus desta pesquisa foi a de que seu enunciador deveria ocupar necessariamente o papel de representante permanente de cada um dos três países. O status da pessoa responsável pela produção de discursos particulares dentro do CSNU está plenamente de acordo com as normas institucionais desse órgão, as quais descrevemos a seguir.

Em 24 de outubro de 1945, foi criada a Organização das Nações Unidas. Nesse momento, surgiu o seu documento fundador: a Carta da ONU, ratificada pela maioria dos 51 Estados signatários. Atualmente, essa organização internacional conta com 193 Estados membros que são representados por um órgão deliberativo, a Assembléia Geral. A mencionada Carta confere legitimidade à organização para adotar medidas em relação aos problemas que a humanidade enfrenta em nível internacional. Os principais órgãos da ONU são: Assembléia Geral, Conselho de Segurança, Conselho Econômico e Social, Conselho de Administração Fiduciária, Corte Internacional de Justiça e Secretaria.

Na presente pesquisa, o órgão com o qual optamos por trabalhar foi o Conselho de Segurança. O Capítulo V da Carta da ONU12 estabelece as suas normas de funcionamento. Reproduzimos, a seguir, os artigos que julgamos mais relevantes para nossos propósitos.

11 Tradução livre de : « Dans toute organisation, il existe des personnes et / où des services qui sont en charge de

contribuer à la production de discours, en particulier sous le jour de régularités et de normes. »

12 Versão em espanhol disponível em: http://www.un.org/es/sections/un-charter/chapter-v/index.html. Acesso

Alguns deles foram reutilizados na análise do corpus, principalmente para o estudo daquelas categorias destinadas à caracterização das intervenções de representantes permanentes no CSNU, tomadas como um gênero de discurso institucional particular, no âmbito mais amplo do discurso diplomático.

COMPOSIÇÃO Artigo 23

1. O Conselho de Segurança será composto por quinze membros das Nações Unidas. A República da China, França, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda do Norte e os Estados Unidos da América serão membros permanentes do Conselho de Segurança. A Assembléia Geral elegerá outros dez Membros das Nações Unidas que serão membros não permanentes do Conselho de Segurança, prestando especial atenção, em primeiro lugar, à contribuição dos Membros das Nações Unidas à manutenção da paz e da segurança internacionais e aos demais propósitos da organização, bem como uma distribuição geográfica equitativa.

3. Cada membro do Conselho de Segurança terá um representante. PROCEDIMENTO

Artigo 28

1. O Conselho de Segurança será organizado de maneira que seu funcionamento possa ocorrer continuamente. Com tal fim, cada membro do Conselho de Segurança terá em todo momento seu representante na sede da organização.

2. O Conselho de Segurança celebrará reuniões periódicas nas quais cada um de seus membros poderá, se desejar, ser representado por um membro de seu Governo ou por outro representante especialmente designado.

Esses artigos da Carta da ONU evidenciam o status adquirido pelo representante permanente e podem, portanto, ser relacionados à sua produção discursiva dentro da instituição. A partir de tais regras, vimos que a efetividade da representação dos Estados membros do CSNU ocorre com a permanência do representante na sede desse órgão. Compreendemos, assim, o caráter central da produção discursiva do representante permanente nas reuniões periódicas celebradas pelo CSNU, razão pela qual optamos pela seleção de suas intervenções. Ressaltamos ainda que, de acordo com o exposto no parágrafo 2º do artigo 28, as intervenções de outros representantes do Governo nas reuniões do CSNU seguem uma norma específica, que é a participação opcional. Certamente tal condição enunciativa suscitaria outros enquadramentos teórico-metodológicos que fogem ao escopo de nossa pesquisa.

O princípio que adotamos para caracterizar as intervenções dos representantes permanentes do CSNU como um gênero de discurso institucional autônomo está baseado no conceito de contrato (MAINGUENEAU, 2016, p. 66). Assumimos que, a partir dos artigos da

Carta da ONU aqui expostos, é possível visualizar pelo menos dois contratos distintos. No primeiro, há a delimitação dos parceiros que possuem o estatuto de representante permanente do CSNU. Por isso mesmo, elaboramos a seção Os Estados e seus representantes diplomáticos na qual exporemos o percurso histórico dos diplomatas. No segundo, julgamos que há outros parceiros cujo estatuto de sujeito enunciador é variável. O fato de a participação desse representante ser facultativa seria, nesse caso, avaliado de uma forma muito mais pontual. Logo, julgamos que essas outras pessoas que participam apenas eventualmente das reuniões celebradas pelo CSNU contribuem para a produção de outros discursos, diferentes daqueles que tomamos como objeto de estudo.

Além dessa delimitação, o conceito de contrato também permitiu-nos evidenciar a independência desse gênero de discurso em relação tanto ao debate quanto às atas integrais do CSNU. Assim, propomos uma diferença básica entre os três casos apenas com o intuito de demarcar mais claramente nosso objeto de estudo. Para isso, levamos em conta a abordagem de Charaudeau (1983) que defende a expedição como uma etapa do contrato. Trata-se de um aspecto intencional concebido por um projeto global de comunicação. Para nós, o fato de estarmos trabalhando na esteira do discurso institucional deveria supor, no mínimo, a imposição de dois projetos globais de comunicação para dois agrupamentos de gêneros de discurso cujos traços distintivos se originariam em sua expedição. O primeiro seria aquele em que o projeto de comunicação é determinado pela própria instituição (Conselho de Segurança da ONU). Acreditamos que este seria, por exemplo, o caso dos debates e das atas integrais do CSNU. O segundo caso seria o de gêneros de discurso nos quais o projeto global de comunicação seria associado a um sujeito específico que, embora pertença à instituição, atrela a seu discurso um aspecto intencional próprio.

Ao longo do presente estudo, percebemos que essa distinção seria essencial para compreendermos as intervenções de representantes permanentes do Brasil, da Espanha e da França no CSNU como um gênero de discurso autônomo associado ao discurso diplomático. Aliás, vimos que a própria escolha desses três Estados foi realizada com base nessa hipótese. Nesse sentido, esclarecemos que não estamos desconsiderando o papel dessas intervenções na constituição dos gêneros debate e atas integrais do CSNU. Ao contrário, reforçamos essa função no esquema a seguir. No entanto, nele destacamos o escopo de nossa pesquisa. Interessa-nos estudar as características que, segundo nossas hipóteses, evidenciariam a (relativa) estabilidade dessas intervenções enquanto um gênero específico de discurso institucional, não enquanto traço discursivo da constituição de outros gêneros de discurso cujo projeto global de comunicação seria vinculado às finalidades da instituição (CSNU).

Em outras palavras, o esquema a seguir mostra nosso objeto de estudo, contrastando-o com as intervenções de representantes permanentes no CSNU enquanto traço discursivo da constituição de outros gêneros de discurso. Desse modo, ressaltamos nosso objetivo de examinar os mecanismos linguístico-discursivos que constituem o gênero de discurso "intervenções de representantes permanentes no CSNU" (parte superior), sem perder de vista que ele participa da constituição tanto dos debates no CSNU quanto das atas literais desses debates (parte inferior).

Esquema 1- Relação interdiscursiva entre intervenção, debate e ata literal no CSNU

O último critério para a seleção dos textos do corpus foi o tema das intervenções dos representantes permanentes no CSNU. Nesse sentido, elaboramos o quadro a seguir com os quatro temas que escolhemos. Em decorrência da extensão desses textos, também informamos nesse quadro o número do anexo em que eles foram reproduzidos com a finalidade de não sobrecarregar a composição tipográfica deste trabalho.

Tema das intervenções Brasil-França (2011) Espanha-França (2015)

Haiti 20/01/2011 - ANEXOS A/ B 08/10/2015 - ANEXOS I/J

Síria 27/04/2011 - ANEXOS C/ D 16/11/2015 - ANEXOS K/ L

Proteção de civis 10/05/2011 - ANEXOS E/ F 30/01/2015 - ANEXOS M/ N

Mulheres, paz e segurança 28/10/2011 - ANEXOS G/ H 15/04/2015 - ANEXOS O / P

Quadro 1 - Lista temática das intervenções que compõem o corpus do trabalho e seus respectivos anexos

Em relação à escolha desses quatro temas, utilizamos alguns critérios. O primeiro foi eleger temas que foram objeto das intervenções dos representantes permanentes em dois mandatos diferentes. O fato de haver um intervalo de cinco anos entre as intervenções de Brasil-França (2011) e Espanha-França (2015) exigiu a escolha de temas que tivessem sido abordados pelos três Estados. Isso porque, apesar de esse tempo ser relativamente curto, ele foi suficiente para que houvesse algumas restrições temáticas. A título de exemplo, temas como Guiné Bissau, Sudão, Timor-Leste, Irã etc. não tiveram a mesma produtividade nos dois mandatos. O segundo critério foi a diversidade de temas. Elegemos: a) um país da América (Haiti); b) um país da Ásia (Síria); c) proteção de civis; e d) mulheres, paz e segurança. Por último, coube-nos restringir esses temas apenas às intervenções feitas por representantes permanentes. Desse modo, as intervenções que atendiam aos dois primeiros critérios, mas haviam sido feitas por outros representantes do Governo (ver artigo 28 da Carta da ONU) não foram contempladas.

É preciso ressaltar que a escolha do critério temático para a construção do corpus desempenha um papel relevante também no próprio lugar que a presente pesquisa visa ocupar. Ao trabalharmos com a hipótese de que as intervenções de representantes permanentes no CSNU constituiriam um gênero de discurso institucional autônomo, a imposição temática como parte das restrições discursivas ganha uma dimensão relevante no próprio desenvolvimento do repertório dos gêneros de discurso no quadro institucional onusiano. Nesse caso, acreditamos que o presente estudo contribuirá para desvelar as particularidades temáticas impostas por um dado gênero de discurso do Conselho de Segurança da ONU. Com isso, a pesquisa fornecerá dados linguístico-discursivos concretos que poderiam direcionar outros estudos, por exemplo, sobre os aspectos distintivos dos gêneros de discursos oriundos do Conselho de Segurança em contraposição àqueles provenientes da Assembleia Geral das Nações Unidas. Essa questão,aliás, já vem sendo debatida, ainda que sem um rigor analítico- discursivo: “recentemente, os Estados em desenvolvimento criticaram o CS por tratar temas

como o terrorismo, a mudança climática ou as armas de destruição em massa, que consideram dentro do âmbito de competência da AG” (PÉREZ HERRANZ, 2014, p. 53) 13.

Por fim, acreditamos que todos os dados reunidos neste capítulo contribuem para a compreensão da delimitação do corpus do presente estudo. Nele aprofundamos os diversos aspectos que nos levaram a selecionar o Brasil, a Espanha e a França, a partir de um corpus multifacetado. Ao lançar o objetivo de examiná-lo, por meio das ferramentas teórico- metodológicas da Análise do Discurso francesa, procuramos evidenciar o aspecto interdisciplinar desse corpus (e da própria teoria). Essa interdisciplinaridade encontra-se estreitamente aliada aos estudos do discurso político e do discurso diplomático, razão pela qual nos dedicaremos à contextualização desses dois discursos no próximo capítulo (Capítulo 2).

13 Tradução livre de: “recientemente, los Estados en desarrollo han criticado al CS por tratar temas como el

terrorismo, el cambio climático o las armas de destrucción masiva, que consideran dentro del ámbito competencial de la AG.” (PÉREZ HERRANZ, 2014, p. 53).

CAPÍTULO 2 - CONTEXTUALIZAÇÃO DO DISCURSO POLÍTICO E DO